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Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung

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Academic year: 2021

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(1)

coleção

artefíssil

H

a n s

U

l r i c h

G

u m b r e c h t

Atmosfera,

ambiência,

Stimmung

Sobre um potencial

oculto da literatura

T R A D U Ç Ã O

Ana Isabel Soares

COBITRAPOnTO

Ed i t o r a

PUC

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(3)

PUC

R [ o

Reitor

Pe. Jo s a fá C arlo s de Siqueira, S.J.

Vice-Reitor

Pe. Francisco Ivern Sim ó, S.J.

Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos

Prof. Jo sé R icard o Bergm ann

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos

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Decanos

Prof. P aulo Fernando C arneiro de A n drade (C T C H ) Prof. Lu iz R ob erto A. C unha (CC S)

Prof. Luiz A lencar R eis d a Silva M ello (C T C ) Prof. H ilton A u gu sto K och (C C B M )

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© 2 0 1 1 , C arl H an ser V erlag M ünchen

Título original: Stim m ungen Lesen: über eine verdeckte W irklichkeit der Literatur

D ireitos ad qu irid os p ara a língua portu gu esa por C on trapon to E d itora Ltda. V edada, nos term os da lei, a reprodução total ou parcial deste livro, p or qu aisqu er m eios, sem au torização, por escrito, da Editora.

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C onselho E ditorial: A u gusto Sam paio, C esar R om ero Ja c o b , Fernando Sá, H ilton A ugusto K och, Jo sé R icardo Bergm ann, Luiz A lencar Reis da Silva M ello, Luiz R ob erto C un ha, M iguel Pereira e P aulo Fernando C arneiro de A ndrade P rep aração de originais: C ésar Benjam in

R evisão tipográfica: Tereza da R ocha

C ap a e projeto gráfico: Aline Paiva e A ndréia Resende C oleção dirigida por Tadeu C apistran o

Es c o l ad e Be l a s Ar t e s / Un i v e r s i d a d e Fe d e r a ld o Ri od e Ja n e i r o

Ia edição: m aio de 20 14 Tiragem : 1 .200 exem plares

CIP-BRASIL. CATALOGA ÇÃO-NA-PUBLICAÇÀO SINDICATO N A C IO N A L D OS ED ITO R ES DE LIVROS, RJ

G 9S4a

Gumbrecht, H ans Ulrich,

1948-Atm osfera, ambiência, Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura / Hans Ulrich G um brecht; tradução Ana Isabel Soares - 1. ed. - Rio de Janeiro : Contrapon­ to : Editora l’ UC Rio, 2014

176p. ; 2 lcm

Tradução cie: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte Wirklichkeit der Literatur ISBN 978-85-7866-097-0

ISBN (PUC-Rio) 978-85-8006-132-1 I. Filosofia. 2. Literatura. I. Título.

14-11253 CDD: 833

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A Coleção ArteFíssil se propõe a pensar a experiência estética no mundo contemporâneo, refletindo sobre as condições e as forças históricas, políticas e cultu­ rais que marcam seus caminhos. A coleção publica­ rá textos que contribuem para a análise das práticas artísticas na atualidade, enfatizando a influência das novidades conceituais, tecnológicas e midiáticas. O caráter interdisciplinar desta proposta visa a am­ pliar o campo da historia da arte, priorizando diá­ logos cada vez mais intensos com a filosofía, a lite­ ratura, os estudos de mídia e as teorias da imagem.

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Sumário

Ler em busca de Stimmung: como pensar hoje

na realidade da literatura 9

Momentos 35

A legrias fugazes nas canções de

Walther von der Vogelweide 37

A existência precária do pícaro 45

As m uitas cam adas do m undo dos sonetos

de Shakespeare 55

M elancolia am orosa nas novelas de M aria de Z ay as 69

M au tem po e altas vozes:

O sobrinho de R am eau , de D iderot 75

H arm onia e ruptura na luz de C asp ar D avid Friedrich 83

O peso da Veneza de T h om as M ann 95

Tristeza linda no último rom ance

de Jo aq u im M ach ado de A ssis 107

A liberdade na voz de Jan is Joplin 121

Situações 129

A energia iconoclasta do surrealism o 131

“ O sentido trágico da v id a” 145

D esconstrucionism o, ascetism o e autocom placência 161

Agradecimentos 169

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Ler em busca de Stimmung:

como pensar hoje na realidade da literatura

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Ao longo dos dez últimos anos, a ligação do mundo acadê­ mico com a literatura - ou com a “ ciência da literatura” , como se diz em alemão - tem sido marcada por um am­ biente de incerteza. Em rápida sucessão e com diferentes níveis de produtividade intelectual, os estudos literários foram dominados durante a segunda metade do século X X por uma grande variedade de paradigmas teóricos. O “ new criticism” deu lugar ao estruturalismo, que, por sua vez, cedeu o passo ao marxismo. M arxismo e estru­ turalismo abriram passagem para o desconstrucionismo e para o novo historicismo. Essas duas correntes viriam a ser substituídas pelos estudos culturais e pelos estudos de iden­ tidade. A norma passou a ser a mudança quase compassada dos pressupostos básicos acerca da interpretação literária. M as desde o começo da década de 1990 não surgiu nenhu­ ma nova teoria da literatura que trouxesse um verdadeiro desafio intelectual ou institucional. Isso não significa que faltem publicações interessantes, nem que sejam poucos os pensadores de respeito, nem que escasseiem as discussões. Pelo contrário: agora que relaxou um pouco a pressão de rever constantemente cada epistemologia, muitos de nós encontramos tempo, mais do que nunca - além de mais inspiração -, para nos concentrarmos nas literaturas das diferentes épocas e para olhar para as complexas realida­ des históricas que lhes deram o eco do tempo. N ão é por

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acaso que testemunhamos hoje um regresso às obras literá­ rias mais canonizadas e mais clássicas. Em nossos dias, sem sacrificarmos a honra acadêmica, podemos até admitir que lemos essas obras pelo puro prazer de as ler.

Libertou-se espaço para novas pesquisas. Este fato é ainda mais notável porque durante muito tempo esse espa­ ço pertencia a figuras cuja imponência levava os seus con­ temporâneos a se declararem apoiadores ou opositores das suas ideias. Que não se encontrem mais personagens assim é ao mesmo tempo sintoma e causa da mudança que se foi operando. Os estudos literários não podem, pura e sim­ plesmente, manter-se inalterados com o desaparecimento de professores tão distintos e tão intelectualmente vivazes quanto Erich Auerbach, Kenneth Burke, Paul de Man, Jac- ques Derrida, Lucien Goldmann, Wolfgang Iser, Claude Lé~ vi-Strauss, Wolfgang Preisendanz, Richard Rorty, Edward Said ou Raymond Williams.

Hoje, após essas faltas, essas reorganizações e meta­ morfoses (as quais, em regra, não foram geradas por ne­ nhum projeto ou programa explícito), damos por nós a encarar profundas diferenças - quantas vezes aparente­ mente inconciliáveis e mutuamente exclusivas - entre os pressupostos básicos relacionados com a ontologia da li­ teratura. (Desnecessário referir que a atual paisagem inte­ lectual é bem mais complexa, mas creio que sua estrutura começa com uma divisão básica.) O que quero dizer com “ ontologia da literatura” é o conjunto de modos funda­ mentais como os textos literários - enquanto fatos mate­ riais e enquanto mundos de sentido - se relacionam com as realidades que existem fora deles.

De um lado, o desconstrucionismo. Apesar de insisten­ temente se proclamar inovador, ele sempre pertenceu àque­ la “ virada linguística” da filosofia. Isso significou - e, para

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os seus defensores, continua a significar - que não pode existir contato entre a linguagem e a realidade que existe fora dela; as sugestões em contrário são vistas como ingê­ nuas e logo descartadas com desprezo. Paul de Man, o ami­ go de Derrida, mais do que nenhum outro, foi quem suge­ riu - como se fosse dado adquirido - que todas as funções da literatura e dos modos de relacionamento com os textos, por serem “ alegorias da leitura” , demonstram que a lingua­ gem jamais se refere ao mundo.

Do outro lado estão os estudos culturais. Pelo menos em parte, eles compartilham os pressupostos metodológicos (talvez fosse melhor dizer: ideológicos) do marxismo, que consideram seu precursor e seu ponto de partida. Ao con­ trário do desconstrucionismo, os estudos culturais - tal como surgiram na Grã-Bretanha e vieram a transformar-se, na Alemanha, em Kulturwissenscbaften (sem grandes dife­ renças) - nunca foram céticos quanto à relação da literatu­ ra com realidades extralinguísticas. Quando muito, os pes­ quisadores nessa área de estudos fundiram de tal maneira sua fé na validade da pesquisa quantitativa e empírica e sua atitude de despreocupação relativa à epistemología, que os modestos resultados filosóficos desta convergência fazem o desconstrucionismo, com sua rejeição do referente, parecer quase sedutor, ao menos em termos filosóficos.

Acredito que o campo dos estudos literários, no qual se combinam diferentes forças intelectuais, arrisca ficar estag­ nado enquanto permanecer empacado entre essas duas po­ sições, cujas tensões e contrastes podem anular-se mutua­ mente. Para ultrapassar tais perigos - que, em parte, já se materializaram -, precisamos de “ terceiros” . A palavra ale­ mã Stimmung (muito difícil de traduzir) exemplifica um “ terceiro” que eu gostaria de defender. Por analogia com a noção de “ ler para conhecer a intriga” , desenvolvida por

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Peter Brooks já há alguns anos, eu gostaria de propor a ideia de que os intérpretes e os historiadores da literatura leem com a atenção voltada ao Stimmung. Uma das razões pelas quais recomendo tal abordagem é que esta é a orientação de grande número de leitores não profissionais (que não estão - e, claro, não têm de estar - conscientes desse fato).

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Para podermos ter consciência e perceber o valor dos dife­ rentes sentidos e das nuances de sentido invocados pelo

Stimmung, será útil pensar nos conjuntos de palavras que

servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em in­ glês existem mood e climate. M ood refere-se a uma sensa­ ção interior, um estado de espírito tão privado que não pode sequer ser circunscrito com grande precisão. Climate diz respeito a alguma coisa objetiva que está em volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física. Só em ale­ mão a palavra se reúne, a Stimme e a stimmen. A primeira significa “ voz” ; a segunda, “ afinar um instrumento musi­ cal” ; por extensão, stimmen significa também “ estar corre­ to ” . Tal como é sugerido pelo afinar de um instrumento musical, os estados de espírito e as atmosferas específicas são experimentados num continuum, como escalas de mú­ sica. Apresentam-se a nós como nuances que desafiam nosso poder de discernimento e de descrição, bem como o poder da linguagem para as captar.

Interessa-me muito a componente de sentido que rela­ ciona Stimmung com as notas musicais e com escutar os sons. E bem sabido que não escutamos apenas com os ou­ vidos interno e externo. O sentido da audição é uma com­ plexa forma de comportamento que envolve todo o corpo. A pele, assim como modalidades de percepção baseadas no

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tato, tem funções muito importantes. Cada tom percebido é, claro, uma forma de realidade física (ainda que invisível) que “ acontece” aos nossos corpos e que, ao mesmo tempo, os “ envolve” . Outra dimensão da realidade que acontece aos nossos corpos de modo semelhante é o clima atmosféri­ co. Precisamente por isso, muitas vezes as referências à mú­ sica e ao tempo atmosférico aparecem na literatura quando os textos tornam presentes - ou começam a refletir sobre - os estados de espírito e as atmosferas. Ser afetado pelo som ou pelo clima atmosférico é uma das formas de experiência mais fáceis e menos intrusivas, mas é, fisicamente, um encontro (no sentido literal de estar-em-contra: confrontar) muito concreto com nosso ambiente físico.

Toni Morrison, ganhadora de um Nobel de literatura, descreveu uma vez esse fenômeno através do paradoxo exa­ to de “ ser tocado, como que de dentro” . No caso, interes­ sava-lhe, creio, uma experiência comum a todos: que as atmosferas e os estados de espírito, tal como todos os mais breves e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno material, afetam também as nossas mentes; porém, não conseguimos explicar a causalidade (nem, cotidianamente, controlar os seus resultados). N ão quero afirmar que com­ preendo a dinâmica que aqui está em causa, nem que con­ sigo fazer dela uma imagem completa. Ainda assim, a cir­ cunstância não é motivo para não se chamar atenção para o fenômeno e descrever as suas variantes.

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À primeira vista, poderia parecer que a música e o clima atmosférico não seriam nada além de metáforas para aquilo que chamamos de “ tom” , “ atmosfera” , ou mesmo o Stim-

mung de um texto. M as o meu argumento é que esses tons,

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atmosferas e Stimmungen não existem nunca completamente independentes das componentes materiais das obras - principalmente da sua prosódia. Então, os textos afetam os “ estados de espírito” dos leitores da mesma maneira que o clima atmosférico e a música. Por essa razão acredito que a dimensão de Stimmung abre toda uma nova perspectiva so­ bre - e a possibilidade de existir - a “ ontologia da literatu­ ra” . N a já mencionada oposição entre o desconstrucionis- mo e os estudos culturais, ambas as partes fazem afirmações sobre a ontologia dos textos em termos do paradigma da “representação” . Pressupõe-se que os textos “ representem” uma realidade extralinguística (ou, dito de outro modo, “ queiram” fazê-lo, mesmo que tal seja impossível). A prin­ cipal diferença entre o desconstrucionismo e os estudos cul­ turais tem a ver com a rejeição ou a afirmação da capacida­ de que os textos têm de se ligar a outras coisas. Ao contrário, uma ontologia da literatura que depende de conceitos resul­ tantes da esfera do Stimmung não põe o paradigma da re­ presentação no centro da questão. “ Ler com a atenção vol­ tada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envol­ vem nossos corpos, enquanto realidade física - algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas. De ou­ tro modo, seria impensável que a declamação de um texto lírico, ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa, com ênfase na componente rítmica, alcançasse e afetasse mesmo aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão. De fato, existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung.

Sem exceção, todos os elementos que contêm textos po­ dem contribuir para produzir atmosferas e ambientes, o que significa que obras ricas em Stimmung não terão de ser

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primordialmente - e, com certeza, não exclusivamente - de natureza descritiva. Existe uma relação entre certas formas de narração e determinadas atmosferas específicas (por exemplo, a convergência entre um ambiente elegíaco e a estrutura de Memorial de Aires, de Machado de Assis, que se discute em um dos capítulos deste livro). O cânone da literatura mundial oferece uma série de exemplos de prosa narrativa que, sem hesitar, poderíamos associar ao Stim-

mung. Veja-se o caso de Morte em Veneza, de Thomas

Mann. N ão consigo pensar num único leitor conhecedor desse texto que alguma vez se tivesse surpreendido com o fato de Aschenbach e Tadzio nunca ficarem juntos; ou de que a existência de Aschenbach - pelo menos desde que chegam a Veneza - seja a de um ser-para-a-morte. O livro é mesmo a evocação de uma decadência fin-de-siècle, em toda a sua complexidade - em nuances, odores, cores, sons e, acima de tudo, nas dramáticas alterações do clima at­ mosférico, que tanta fama deram a essa obra. Em outras palavras (e dito de um modo mais filosófico, ao menos na perspectiva de Nietzsche e de Eleidegger), o que de mais fascinante há nesse livro é uma atmosfera específica, que só pode ser experimentada numa consciência historicamente específica da presença da morte em vida.

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Numa nota à margem, alguns dos meus bons amigos fize­ ram-me ver - e revelo-o aqui para não deixar nada de fora - que devo apontar a relação entre minha defesa do Stim-

mung e o objetivo mais amplo, mais ou menos filosófico,

de tornar os efeitos de “ presença” um objeto de pesquisa nas humanidades. N a relação que mantemos com as coisas- -no-mundo (e isso é uma consequência do processo de

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dernização), consideramos a interpretação - a atribuição de sentido - um processo da maior importância. Por oposi­ ção, eu gostaria de sublinhar que as coisas estão “ sempre- -já” - e simultaneamente ao nosso hábito irrefletido de atri­ buir significações a respeito do que as coisas supostamente implicam - numa relação necessária com os nossos corpos. A essa relação chamo “ presença” . Podemos tocar os obje­ tos ou não. Os objetos, por seu turno, podem nos tocar (ou não), e podem ser experimentados como coisas que se im­ põem ou como coisas inconsequentes. Tal como aqui as descrevo, as atmosferas e os ambientes incluem a dimensão física dos fenômenos; inequivocamente, as suas formas de articulação pertencem à esfera da experiência estética. Per­ tencem, sem dúvida, àquela parte da existência relacionada com a presença, e as suas articulações valem como formas de experiência estética. (Claro que isso não significa que cada articulação da presença que vale como “ estética” va­ lha também como atmosfera ou como ambiente.)

Em termos conceituais, tudo fica mais complicado. Contra o pano de fundo histórico da modernização abso­ luta, podemos considerar que “ a experiência estética” con­ siste numa muito carregada simultaneidade de efeitos de sentido e efeitos de presença (por oposição à experiência cotidiana, que apenas registra os primeiros). Pode dar-se o caso de agora prestarmos mais atenção às atmosferas, aos climas e à dimensão da presença em geral do que se presta­ va há cinquenta, duzentos ou quinhentos anos. Escusa di­ zer que isso não significa que ficou mais fácil causar efeitos de presença (e, entre estes, atmosferas e climas). Em vez disso, poderá ter alguma coisa a ver com um modo cotidia­ no de ser-no-mundo que, para a maioria de nós, funde consciência com software - um modo que, por assim dizer, suspende a experiência da presença. Talvez esse estado de

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retirada tenha provocado uma necessidade aumentada - e um maior desejo - de encontros com a presença.

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Numa brilhante contribuição para o dicionário Ästhetische Grundbegriffe, David Wellbery recentemente reconstruiu - pela primeira vez - a história do Stimmung e explorou as várias camadas históricas e semânticas do termo. Gostaria de revisitar alguns pontos-chave desse artigo, principal­ mente porque ilustram o modo como a abertura às atmos­ feras e aos climas pode engrandecer nossa experiência da literatura, mas também porque seus métodos de pesquisa nos incitam a refletir sobre a forma específica da historici­ dade própria ao Stimmung. Wellbery começa por examinar o ensaio “ Falconet” , de Goethe, publicado em 1776; esse texto põe em discussão a sensação de unidade e harmonia que tudo abarca, frequentemente vivenciada em contextos absolutamente triviais (por exemplo, na loja do sapateiro). Os artistas, observou Goethe, procuram dar forma objetiva - num texto, por exemplo - às coisas intangíveis que en­ contram. Pouco tempo depois da publicação do ensaio, o

Stimmung viria a desempenhar um papel determinante no

início do discurso da estética filosófica, que começava a surgir naquela altura; esse fato sugere que a homogeneida­ de das situações e das experiências tinha se transformado num tema para a sociedade contemporânea, que rapida­ mente se via sujeita à diferenciação interna. N a Crítica do

juízo - em que a metáfora de referência é a afinação de um

instrumento musical -, Kant afirmava que “ um Stimmung equilibrado” é condição necessária às faculdades emocio­ nais e racionais da compreensão humana quando se combi­ nam em juízos de gosto. A interseção de sentimento e razão

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também determinava o sentido do termo para os filósofos do idealismo alemão (que muitas vezes faziam equivaler sentimento e razão a subjetividade e objetividade). O con­ ceito é importante até hoje. De modo semelhante, lê-se na vigésima carta de Schiller, D a educação estética·.

Para passar da sensação ao pensamento, a alma atra­ vessa uma posição de equilíbrio na qual a sensibilidade e a razão atuam simultaneamente. Sensibilidade e razão combinam-se para suspender a energia que determina ambas; isto é, o antagonismo delas gera a sua negação. Essa situação de equilíbrio - em que a alma não está constrangida nem física nem moralmente, mas está ati­ va de duas maneiras - merece ser chamada de estado de liberdade.

Friedrich Hõlderlin propôs uma concepção de Stimmung que divergia da visão dos seus amigos e dos seus contempo­ râneos. Para ele, a palavra referia-se aos sons que eram dife­ rentes daqueles que existiam no seu tempo e no seu espaço, que ele acreditava ter encontrado no mundo - e nas obras - da Grécia antiga. Setenta e cinco anos depois, Nietzsche postulava uma conexão semelhante em estrutura, mas mui­ to mais especulativa. Para Nietzsche, a palavra Stimmung designava as memórias e intuições das fases primordiais da existência humana. Essas maneiras de empregar o conceito de Stimmung produziram um novo sentido, cuja complexi­ dade ia muito além das tarefas de mediar entre posições opostas (inclusive as radicalmente contraditórias) e de forjar unidade e harmonia. Agora, Stimmung passava a significar uma existência completa, unificada - um estado impossível de atingir na idade moderna. A partir dessas reflexões, Alois Riegl estava convencido de que o Stimmung teria boa fortu­ na no século X X como “princípio de nostalgia” . Duas cor­

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rentes intelectuais seguiram-se a tal previsão. Enquanto princípio de nostalgia com “ futuros” (isto é, “ escolhas” ),

Stimmung tornou-se o objeto de pensamento que se pode

considerar como pertencente à filosofia da história. Ao mes­ mo tempo, a ligação entre Stimmung e as fases pré-históri­ cas da evolução humana sugeriam que o futuro da humani­ dade passava por ceder às forças do irracionalismo.

Tomando como ponto de partida principalmente o últi­ mo sentido dessa plêiade (e deixando de fora os conceitos arcaizantes), Heidegger concede ao Stimmung um papel fundamental em Ser e tempo (1927), sua obra mais impor­ tante. Nessa obra, Stimmung é descrito como parte inte­ grante da condição existencial de “ estar-lançado” . Am­ bientes e atmosferas variados - e em constante mutação -, escreve Heidegger, condicionam nosso comportamento e nossas sensações na existência do dia a dia; não somos li­ vres para os escolher. E certo que esse aspecto da obra de Heidegger - seu entendimento da noção de Stimmung - não foi muito difundido. M ais importante para a sua re­ cepção, no século X X , foi um uso do conceito que, de modo paradoxal, confirmou a anterior previsão de Riegl sobre o futuro. Essa confirmação era paradoxal porque a carga de sentido que Riegl atribuíra a Stimmung demons­ trava, por um lado, como essa sua definição tinha se torna­ do um ponto de referência na filosofia da história; por ou­ tro lado, fez que surgissem influentes vozes que negavam sua aplicabilidade no presente.

Era desse modo que Leo Spitzer (judeu nascido em Vie­ na e filólogo das línguas românicas) concluía o seu Ideias

clássicas e cristãs sobre a harmonia do mundo - Prolegó­ menos para uma interpretação da palavra “ Stimmung”

(publicado em duas partes, em 1944 e 1945, depois de o autor ter emigrado para os Estados Unidos): com a afirma­

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ção de que, em vista da Guerra Mundial que então termina­ va, a “harmonia” perdera para sempre o lugar enquanto enquadramento potencial para a cosmologia e a existência humana. Durante os meses finais do conflito, o poeta ale­ mão (e médico militar) Gottfried Benn também sublinhou - quase com uma nota de desdém - que o Stimmung, enten­ dido como mediação entre contrários, tinha ali o seu fim. Haveria de escrever depois - e não fica claro se essa contra­ dição aparente foi proposital ou se escapou à sua atenção - que a atmosfera e o ambiente do seu tempo se caracteri­ zavam pela frieza e a sobriedade do “ existencialismo” . Nessa altura, deu-se uma viragem na história do conceito; a partir daí, Stimmung - mais precisamente, uma das varia­ ções semânticas da palavra - deixou de exercer o papel de “ mediação” e de “ harmonia” .

6

Desde que Stimmung deixou de implicar qualquer forma de reconciliação ou de harmonia - inflexão totalmente incom­ patível com seu sentido original - , ou seja, desde que a au­ sência de Stimmung no sentido clássico passou a valer como uma das formas de Stimmung, o conceito ficou dis­ ponível para uso universal. Hoje não existe situação sem sua atmosfera própria, sem seu ambiente “ próprio” , o que significa que é possível procurarmos o Stimmung caracte­ rístico de cada situação, obra ou texto. Por isso, o livro que o leitor agora tem em mãos não se limita a contextos histó­ ricos em que o desejo de mediação e de harmonia ocupe lugar central. N a verdade, acontece o contrário: o Stim­

mung é explorado como categoria universal. N ão há cultu­

ra nem época que não admita a questão universal das at­ mosferas e dos ambientes específicos.

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N o entanto, restam algumas outras questões, de nature­ za histórico-filosófica. Que sentidos e dimensões particula­ res do Stimmung se obtêm sob determinadas condições his­ tóricas e culturais, e por quê? Desse enquadramento faz parte outra questão coadjuvante: que períodos da tradição ocidental entenderam o Stimmung (ou seus equivalentes funcionais) como matéria a ser explicitamente tematizada? Para ser breve, a seguir proponho três teses como resposta.

Em primeiro lugar, é significativo que, no início da era moderna, as antologias de narrativas e de poemas literários fossem acompanhadas de indicações sobre o espaço onde deveriam ser desfrutadas e sobre a música que deveria acompanhar a sua apreciação. O Decameron, de Boccaccio, é o exemplo mais conhecido; mas a obra de M aria de Zayas (de que falarei adiante) é também exemplar. Niklas Luh- mann chamou tais instruções de “ comunicação compacta” . Com isso, ele queria dizer que, à medida que a literatura se autonomizava e se tornava independente dos contextos e dos lugares específicos da sua performance, os autores iam definindo enquadramentos de comunicação (eu acrescenta­ ria: enquadramentos de atmosfera) para sua recitação e para sua recepção. Talvez a maior atenção e consciência do

Stimmung tenha se desenvolvido a partir da experiência de

isolamento que condicionou a emergência das modernas formas de subjetividade. O Romantismo é a segunda - e talvez a mais exemplar - época de atmosfera e ambiente.

Stimmungen que exprimiam nostalgia ou revolta opunham-

-se à monotonia da vida na sociedade “ burguesa” .

Vejo o final do século X IX como o terceiro momento em que o Stimmung ganhou forma condensada e intensi­ ficada, quando se tom aram populares a pintura histórica e a arquitetura historicizante. Foi também quando Riegl declarou que a atmosfera e o ambiente se desenvolveriam

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no século X X enquanto apetite crítico de nostalgia - uma previsão que viria a confirmar-se de modo paradoxal. O final do século X IX foi um tempo cuja complexidade parece cada vez mais escapar às formas tradicionais da lite­ ratura e da arte; em consequência, tornou-se cada vez mais pronunciado o desejo de pontos individuais de acesso à harmonia. N ão por acaso, nesse momento Wilhelm Dilthey propôs fundamentar os métodos humanísticos de interpre­ tação nos encontros pessoais com os textos literários e com as situações que os tinham originado.

Já no tempo de Dilthey - embora essa tendência se tives­ se acentuado de forma mais marcante na década de 1920, e à medida que se aproximava o meio do século (com conse­ quências que alterariam para sempre, como vimos, os con­ tornos semânticos do termo) - o protesto se fazia ouvir contra a sobrevalorização da harmonia nas obras culturais. É interessante notar que, a partir de uma concessão univer­ salizada de Stimmung, podemos afirmar que esses mesmos protestos pertenciam a uma atmosfera particular ou a um ambiente cultural específico. As reservas críticas sobre a análise desse aspecto do fenômeno foram surgindo - e continuam a surgir, na medida em que ainda persistem - da crença de que o Stimmung só está acessível a partir da experiência rara e subjetiva. Aliás, esse tipo de objeção pode mesmo ser formulado contra este livro. Hegel já le­ vantara questões sobre a falta de objetividade:

A principal tendência da [...] filosofia superficial é fundamentar a ciência não no desenvolvimento do pensamento e do conceito, mas na percepção imediata e na imaginação contingente; e, do mesmo modo, re­ duzir a complexa articulação interna do ético [...] à arquitetônica da sua racionalidade - que, através de

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determinadas distinções entre as diferentes esferas da (...] vida [...] e através das estritas proporções em que cada pilar, arco e proteção se sustentam, produz a for­ ça do todo a partir da harmonia de suas partes redu­ zir esta refinada estrutura a uma tolice de “ coração, amizade e entusiasmo” .

7

A tese deste livro - e o desafio que nele se apresenta - é a de que concentrar-se nas atmosferas e nos ambientes permite aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade estética que, em grande parte, desapareceram. Essa atitude só será eficaz se tivermos em conta obras determinantes, como as de Hegel, que ao mesmo tempo nos alertam e nos motivam. Não se trata de procurar possibilidades de existên­ cia há muito desaparecidas, para as quais uma vez ou outra pudéssemos querer escapar. (Essa orientação logo seria - ine­ vitavelmente - suspeita de incentivar os maus hábitos da ilu­ são e da compensação.) Em vez disso, o objetivo é seguir as configurações da atmosfera e do ambiente, de modo a en­ contrar, em formas intensas e íntimas, a alteridade.

O ponto de partida e o catalisador da experiência da al­ teridade histórica e cultural residem, contra a polêmica de Hegel, no campo mais fenomenal e objetivo dos textos li­ terários: na sua forma prosódica e poética. Sem saber com rigor do que se tratava, ou de quais “ sentimentos” estavam ali envolvidos, podemos ter certeza de que os dramaturgos, os atores e os espectadores da Paris do século XVII estavam obcecados com o verso fortemente grave, pesado de páthos, com a forma que chamavam de “ verso alexandrino” . Num sentido literal, ele fazia parte da realidade material da cidade naquele tempo. Em vez de revelar o sentido ou os objetos

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de referência, o tom desses versos é uma componente texto- -imanente do passado da cidade. Sempre que recitamos os monólogos ou os diálogos da maneira que Corneille ou Ra- cine os imaginaram, convocamos esses textos para uma nova vida. Os sons e os ritmos das palavras são atirados contra nossos corpos do mesmo modo que eram atirados aos cor­ pos dos espectadores naquele tempo. Aí reside um encontro - um imediatez, uma objetividade do passado-feito-presente - que não pode ser minado por nenhum ceticismo.

Sobretudo nesse sentido, mas claro que não se concen­ trando exclusivamente na prosódia, os capítulos deste livro revisitam casos de presença, imediatez e objetividade - e prestam particular atenção aos contextos sempre já asso­ ciados com atmosfera e ambiente. Por exemplo, relaciono o tom surpreendentemente “ nervoso” (ao menos da pers­ pectiva atual) das cantigas compostas por volta de 1200 por um homem conhecido pelo nome de Walther von der Vogelweide com o clima de instabilidade política e de incer­ teza religiosa que deve tê-lo rodeado, e no qual ele dirigiu suas polêmicas lutas. Através das novelas picarescas do sé­ culo XVI, acredito que seja possível vivenciar uma atmosfe­ ra de tensão entre a vida do dia a dia e a ortodoxia religiosa que deve ter sido típica da Espanha da Contrarreforma. Os sonetos de Shakespeare abrem todo um mundo de dese­ jo erótico, inseparável do seu entorno material específico. O sobrinho de Rameau, de Diderot, através do seu prota­ gonista e do ambiente em seu redor, nos confronta com a rudeza quase asfixiante de uma atitude que deve ter sido dominante nos anos que antecederam a Revolução Fran­ cesa. Memorial de Aires - o diário ficcional que Joaquim M achado de Assis, grande luz das letras brasileiras, escre­ veu no começo do século X X - nos conduz à melancolia e ao vago abandono que deve ter sido o cenário do Rio de

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Janeiro no tardo-império. N o contexto europeu, Morte em

Veneza, a famosa obra de Thomas Mann, torna presente

esse mesmo período; o texto combina de modo fatal as sen­ sações inefáveis do protagonista com o clima atmosférico da cidade - o seu entorno material.

De maneiras diferentes, por meio de diferentes elemen­ tos textuais, todas essas obras permitem que o leitor encon­ tre realidades do passado. Temos tendência para desconsi­ derar os efeitos de imediatez que provocam; mas, de fato, é quase uma obrigação profissional, para os acadêmicos e os críticos de hoje, que os desconsiderem. Essa imediatez na experiência de presentes passados ocorre sem que seja ne­ cessário compreender o sentido das atmosferas e dos am­ bientes; não temos de saber quais motivações ou circuns­ tâncias os ocasionaram. E que aquilo que nos afeta no ato da leitura envolve o presente do passado em substância - e não um sinal do passado, nem a sua representação.

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Uma tendência recente nos estudos literários é ler as obras - especialmente as canônicas - como se elas se propusessem enquanto alegorias de argumentos ou agendas filosóficos. (É evidente que, aqui, não se trata de, uma vez ou outra, recorrer a conceitos ou argumentos filosóficos para ler lite­ ratura.) Tal abordagem parece procurar libertar o conteúdo ideacional das entediantes complexidades da forma. M es­ mo no melhor dos casos, esse modo interpretativo é inca­ paz de responder à questão sobre o motivo de os escritores decidirem tão enfaticamente usar formas literárias compli­ cadas, complexas, para sugerir afirmações filosóficas. En­ contro aqui a confirmação da minha crença de que uma função mais importante dos textos literários é o potencial

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contido na sua concretude e na sua imediatez histórica. En­ tendo por “ concretude” que cada atmosfera e cada am­ biente - por mais semelhantes que sejam a outros - têm a qualidade singular de um fenômeno material. Podemos apontar para essa singularidade; porém, qua singularidade, nunca poderá ser definida em absoluto pela linguagem, nem circunscrita por conceitos.

As leituras que se concentram no Stimmung - por opo­ sição aos esforços de encontrar as alegorias dos argumen­ tos filosóficos (que, naturalmente, não devem ser rejeitadas sem mais) - insistem na distância. Isso não significa que não se possa querer atingir a “ presentificação” das atmos­ feras e dos climas do passado tendo objetivos filosóficos em mente. N o começo da Segunda Guerra Mundial, por exem­ plo, o grande filólogo Karl Vossler - que na década de 1920 já tinha escrito uma série de ensaios que podem ser consi­ derados reflexões sobre o Stimmung - publicou um livro sobre a poética da solidão na Espanha do século XVII. Da sua leitura, pelo menos aos nossos olhos hoje, resultou um ambiente - e talvez também um sentido de esperança - a partir do misticismo lírico dos judeus marranos. Acredito que Vossler compreendeu essa componente dos textos que analisou como “consolo da filosofia” , que pretendia con­ trapor às ameaças e às imposições de silêncio da Alemanha do seu tempo. A ênfase da imediatez histórica na leitura que tem como foco o Stimmung não deveria corresponder a uma ingenuidade política. N o entanto, aquilo que distingue a leitura voltada para o Stimmung de outros mo­ dos de interpretação literária - em muitos dos casos - é uma ausência da distinção entre a experiência estética e a experiência histórica. A leitura que Vossler faz das obras espanholas do século XVII torna presente um momento do passado. Esse passado-tornado-presente se define no seu

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caráter estrangeiro. Simultaneamente à experiência históri­ ca, então, a leitura produz consolo e edifica; e, porque são de qualidade diferente da alteridade histórica, é correto chamar esses fenômenos de “ estéticos” .

Aquilo que Vossler transformou em objeto de expe­ riência - com base num número limitado de obras de um só gênero - foi a atmosfera de um momento histórico, não o ambiente de uma situação individual. Além de tornar pre­ sente o ambiente de textos particulares, deveríamos tentar capturar os ambientes predominantes de situações históri­ cas mais abrangentes, a partir da análise de obras de dife­ rentes origens, formas e conteúdos. Foi o que procurei fazer nos capítulos que escrevi sobre o “ surrealismo” do início da década de 1900, sobre a ausência de representações da alegria nessa mesma década e sobre o ambiente intelectual do “ desconstrucionismo” no fim do século X X . Ao fazê-lo, deparei-me com uma curiosa continuidade entre diferentes sentidos da (suposta) impossibilidade de representar o mundo. A princípio - e isso deve ser sublinhado - não exis­ te nenhum período histórico, nenhum plano fenomenológi- co, nenhum gênero e nenhum meio que revele uma afinida­ de exclusiva em relação ao Stimmung. Um quadro, uma canção, convenções gráficas, uma sinfonia, qualquer uma dessas obras pode absorver atmosferas e ambientes e, pos­ teriormente, devolvê-las para uma experiência num novo presente. Por isso mesmo há capítulos deste livro que se debruçam sobre as telas de Caspar David Friedrich ou Me

and Bobby McGee, a canção de Janis Joplin.

Ainda assim, é importante retomar a questão: depois de caminharmos para além da objetividade da forma, ao ten­ tar encontrar a atmosfera e o ambiente, como podemos evi­ tar nos afogar na “ tolice do coração” ? N ão há resposta definitiva a essa pergunta, nem um modo de garantir imu­

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nidade a esse afogamento. Concentrar-se nos fenômenos formais permite evitar o pior, mas é igualmente importante não atribuir qualidades absolutas - nem fazer afirmações existenciais sobre uma suposta superioridade - ao deparar- -se com atmosferas e ambientes de culturas do passado ou de outras. Ao ser acrescentado à experiência da empatia, o ato de leitura com foco no Stimmung deveria ser acompa­ nhado de uma medida de sobriedade e de moderação ver­ bal. Em muitos casos, mais vale apontar na direção de am­ bientes possíveis do que descrevê-los em seus pormenores (muito menos celebrá-los).

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M as como poderemos revelar atmosferas e ambientes, voltar a percorrer o seu caminho e compreendê-los? Haverá alguma abordagem profissional - ou “científica” ? Precisa­ mente pelo fato de que cada Stimmung é histórica e cultural­ mente único, e porque os mesmos elementos que constituem o fenômeno desaparecem quando está em causa o sentido - e, com certeza, pelo pouco interesse que nosso campo de estudos tem demonstrado pela questão duvido do poder das “ teorias” para explicar atmosferas e ambientes, e olho com suspeição para a viabilidade de “ métodos” que os iden­ tifiquem. Aliás, meu ceticismo quanto aos métodos é mais forte ainda, pois acredito que os pesquisadores na área das “ ciências humanas” devem confiar mais no potencial do pensamento contraintuitivo do que em uma “ trilha” ou um “ caminho” preestabelecido (ou seja, o sentido etimológico de método). O pensamento contraintuitivo não receia des­ viar-se das normas da racionalidade e da lógica que regulam o cotidiano. (E isso por boas razões!) Antes, o seu movimen­ to se inicia por “ palpites” . Muitas vezes percebemos um po­

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tencial ambiente do texto a partir da irritação ou do fascínio que uma palavra ou um pormenor nos provoca - o palpite de uma diferença de tom ou de ritmo.

Seguir um palpite significa confiar durante algum tempo numa promessa implícita e dar os passos no sentido de des­ crever um fenômeno que seja desconhecido - que nos des­ pertou curiosidade e, no caso de atmosferas e ambientes, chega a nos envolver ou até nos encobrir. Quando tal des­ crição acontece, referindo-se a uma obra literária, é prová­ vel que - até certo ponto - o efeito coincida com o do texto “ primário” . Escrever assim tem algumas semelhanças com a ideia do ensaio crítico-literário desenvolvida por Georg Lukács no seu livro A alma e as formas, de 1911. Lukács talvez tenha seguido Dilthey no seu desejo de uma expe­ riência imediata na leitura de textos literários - porém, cer­ tamente estava do lado contrário ao da defesa que Dilthey fazia da “ interpretação” como prática central das Geis-

teswissenschaften [ciências do espírito], Lukács reclamava

que os ensaios desviam-se do objetivo “ científico” de des­ coberta da verdade. “ É correto que o ensaísta busque a ver­ dade” , escreveu, “ mas deve fazê-lo à maneira de Saul. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um rei­ no; assim será com o ensaísta - aquele que é de fato capaz de procurar a verdade -; encontrar, no final de sua busca, aquilo que não procurava: a própria vida.”

A distinção que Lukács estabelece entre “ a verdade” e “ a vida” situa os seus objetivos num lugar diferente daquele próprio às questões de “ interpretação” - isto é, o da tarefa de desnudar a “ verdade” (isto é, o conteúdo proposicional) que se presume estar contida nas obras. Um ensaio que se concentre nas atmosferas e nos ambientes não chegará ja­ mais à verdade inclusa num texto; antes, abarcará a obra como parte da vida no presente. Tal abordagem tem

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quências para este meu livro; em alguns capítulos, começo por sondar as profundidades, mas é impossível dar conta das suas reais dimensões. Ler em busca de Stimmung não pode significar “ decifrar” atmosferas e ambientes, pois estes não têm significação fixa. Da mesma maneira, tal leitura não implicará reconstruir ou analisar a sua gênese histórica ou cultural. O que importa, sim, é descobrir princípios ativos em artefatos e entregar-se a eles de modo afetivo e corporal - render-se a eles e apontar na direção deles. Claro que não há qualquer problema em reconstruir a gênese ou a estrutura de atmosferas e ambientes particulares, mas análises assim são secundárias. Acima de tudo, meu intento é chamar atenção para os Stimmungen, revelar o seu po­ tencial dinâmico e promover - tanto quanto seja possível - seu tornar-se-presente. Para conseguir realizar esses gestos expressivos, nem sempre é necessário escrever na escala dos tradicionais debates acadêmicos, com suas pesadas notas de rodapé e todo esse aparato. Aliás, não é necessário sequer acompanhar o desenrolar de um ambiente ao longo de toda uma obra, conforme esta vai se desenvolvendo em toda sua complexidade. O que estou buscando é uma experiência em que as certezas e as convenções de como se escreve estão ainda por definir. A longo prazo, imagino, escrever sob a influência do Stimmung poderá bem significar atirar os tão propalados “ métodos” no rio do esquecimento.

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Como já foi dito mais de uma vez, a possibilidade de ir além dos meros gestos expressivos pode concretizar-se se seguirmos a emergência histórica das atmosferas e dos am­ bientes, e seu modo de articulação textual. Tais exercícios são o que proponho, por exemplo, nos capítulos sobre a

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novela picaresca e sobre a ausência de representações de felicidade na década de 1920. Ao mesmo tempo, é impossí­ vel formular uma teoria geral acerca das condições que são necessárias à produção de Stimmung em geral - ou até em particular. As circunstâncias favoráveis podem ser cumpri­ das por meio de eventos de tipo variado: derrotas ou vitó­ rias militares, prosperidade ou pobreza, a construção de nações ou a frustração de tais esforços. Para que a exigida densidade de sensações seja articulada nos textos, mais do que no nível da representação - ou seja, para que as formas e os tons sejam “ carregados” , como se de carga elétrica -, é necessário que ocorra a habitualização. Em outras pala­ vras: sempre que um texto seja penetrado pelo Stimmung, poderemos assumir que terá ocorrido uma experiência pri­ mária, ao ponto de tornar-se reflexo pré-consciente. Algo semelhante acontece - em um nível mais abstrato - quando a sensibilidade ao Stimmung foi refinada, como é o caso do nosso presente cultural. Este livro, por exemplo, começou por ser um conjunto de ensaios breves sobre atmosferas e ambientes literários publicados há alguns anos no comple­ mento Geisteswissenschaften do jornal alemão Frankfurter

Allgemeine Zeitung. Essa série viria a fazer amplo sucesso,

e sua recepção foi mais empolgante e mais complexa do que a de outros textos meus, também com temas específicos e publicados nas páginas daquele mesmo jornal.

Talvez essa reação fosse um indicador de que qualquer coisa, entre o que referia Wellbery no final do seu artigo sobre Stimmung, começara já a tornar-se realidade. N a altu­ ra em que escrevia, Wellbery descartava a possibilidade para o seu tempo, mas admitia que poderia vir a se concretizar:

Poderíamos supor que o desaparecimento do Stimmung dos vocabulários de estética tenha algo a ver com o fato

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de as metáforas musicais terem deixado de ser autoevi- dentes enquanto meios de dar às realidades físicas uma expressão figurativa. Se assim for, terá morrido uma tradição semântica que data da Antiguidade. Seja como for, a atual discussão sobre o conceito revela que, na mudança das noções e dos paradigmas estéticos que en­ tretanto ocorreu, a ideia de Stimmung, sempre que pos­ sível, comprova a capacidade de revelar novos aspectos do sentido. Talvez a adaptabilidade do conceito tome possível ultrapassar a sua atual irrelevância e, em confi­ gurações futuras, venha a manifestar-se um inesperado potencial para o sentido.

Desde então, Wellbery já alterou sua afirmação - preci­ samente, já sublinhou o cumprimento surpreendentemente veloz de suas previsões.

No que toca ao meu entendimento da situação nos dias de hoje, gostaria de falar menos no desenvolvimento de um novo “ potencial para o sentido” do que no intensificado fascínio estético que agora surge associado a Stimmung·, aqui, são secundárias as questões de sentido e de significa­ ção. O que me interessa são os ambientes e as atmosferas absorvidos pelas obras literárias enquanto forma de “ vida” - ambientes com substância física, que nos toca “ como se de dentro” . A ânsia pelo Stimmung tem aumentado, pois muitos de nós - talvez principalmente pessoas de mais ida­ de - sofrem de uma existência cotidiana que é muitas ve­ zes incapaz de nos rodear ou de nos envolver fisicamente. A ânsia pelo ambiente e pela atmosfera é uma ânsia pela presença - talvez uma variante dessa ânsia que pressupo­ nha o prazer de lidar com o passado cultural.

Para debelar essa ânsia, como sabemos, já não é neces­ sário associar Stimmung e harmonia. E, desde que as at­

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mosferas e os ambientes continuem a nos tocar física e afetivamente, também é secundário procurar demonstrar que as palavras que usamos podem designar realidades extralinguísticas. O ceticismo do “ construtivismo” e a “ virada linguística” têm a ver apenas com ontologias da literatura baseadas no paradigma da representação. Isso não importa quando estamos lendo com a atenção volta­ da às atmosferas e aos ambientes: eles pertencem a subs­

tância e à realidade do mundo.

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Alegrias fugazes nas canções

de Walther von der Vogelweide

A Idade Média, tal como foi imaginada pelos românticos - valentes cavaleiros em combate, lindas donzelas nas torres altaneiras no meio da densa floresta e outras imagens do tipo -, essa Idade Média não durou muito tempo. O ce­ nário imaginado resultou de algumas centenas de canções, entoadas pelos bardos nas cortes dos reis e dos nobres - primeiro, no Sul da França, depois no Norte e nas terras de língua alemã. Desde então, essa fantasia tem dado o tom - de modo específico, mas também de modos historicamente variados - para toda a nossa compreensão da boa ou da má sorte no amor; em alguns casos, pode até ter determinado o sucesso ou o fracasso de vidas individuais.

Com uma infinitude de variações, a partir de um repertó­ rio finito de situações e motivos, esses textos estimulam uma alegria autoconfiante entre os nobres provavelmente obce­ cados pela excentricidade desafiadora dos seus gestos. “ Amigos, cantarei uma canção ao nosso gosto” - assim co­ meça um poema atribuído a Guilherme IX da Aquitânia (um dos príncipes mais poderosos do seu tempo). “Nela, o amor, a alegria e a juventude são mais de loucura que de razão. Que aquele que não compreender as suas palavras seja considerado um peão.” Os pesquisadores não chegarão nunca a um acordo sobre as circunstâncias exatas que pos­ sam ter favorecido o desenvolvimento desse tom - que vei­ culava um sentido do eu típico da altivez das elites. Porém, não deve haver dúvidas de que o surgimento dele se deu por

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oposição às rigorosas condições da vida medieval (nessas canções, nada é mais celebrado do que o final do inverno solitário e cinzento), assim como para contrariar os manda­ mentos religiosos de austeridade (na Idade Média, o casa­ mento e as paixões do amor eram vistos como coisas incom­ patíveis, e Guilherme IX, o “ primeiro trovador” , levou a vida em lutas com a Igreja). Décadas atrás, Hugo Kuhn - um medievalista inultrapassável na sua capacidade de imagina­ ção - especulava que o orgulho nos papéis de homem e de mulher, que se detecta nas Minnesang, pode ter dado origem aos mais antigos conceitos de felicidade e de sofrimento, só experimentados como realidade social meio milênio depois pela alta burguesia influenciada pelas ideias românticas.

A questão que ocupava Kuhn nas suas interpretações filológicas era a de saber se, nos comparativamente reserva­ dos tons da lírica amorosa germânica, seria possível perce­ ber alguma impressão não mediada da elevação dos espíri­ tos nas cortes medievais. As respostas dadas pelo próprio Kuhn revelavam, por vezes, dúvida e, por vezes, até pare­ ciam encurraladas na melancolia do Romantismo. Os seus sucessores mais capazes concordam que as formas e as fór­ mulas literárias sempre encobrirão a verdadeira natureza da atmosfera nas cortes. Nunca seremos capazes de recons­ truir, nem mesmo parcialmente, a música e as melodias das canções com base apenas na notação musical e nas formas dos versos (divididas em “ tons” ) que chegaram até nós. As poucas fontes que nos restam sobre os festivais das cortes - por exemplo, a ordenação dos filhos do Barba Ruiva no Pentecostes, em Mainz, em 1184 - dão pouca informação acerca dos rituais sociais e das circunstâncias da cerimônia. As pistas de individualidade que se encontram nos textos líricos e nos levam a papéis convencionais revelaram-se, de uma vez por todas, ilusórias.

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É verdade que já deveríamos saber disso; mas continua a ser tão difícil para nós como para um leitor desavisado, desde o século XIII, evitar a tentação de ceder à emoção quando, por exemplo, lemos as palavras de Walther von der Vogelweide:

Consegues ver o poder da magia, entregue a maio? Agora, em breve, tudo, para nós, ficará bem. Seremos alegres,

Dançaremos, riremos, cantaremos, Livres do rude e entediante prazer.

Ainda que os versos de Walther lembrem os de William IX, compostos cem anos antes, o seu distinto ambiente de­ riva - quase obsessivamente - de um contraste entre o cená­ rio da primavera e as cores e os sons do inverno:

O mundo brilhava, amarelo, vermelho e azul, Verde nos bosques e noutros lugares.

Ali trinavam as avezinhas.

Mas agora crocita o corvo encapuzado. Terá agora o mundo outra cor, também? Sim, ficou todo pálido e cinza,

Assim se enrugaram muitas frontes.

Estaria em perfeita concordância com o que sabemos sobre a maneira como a poesia medieval era composta, se conseguíssemos distinguir entre poemas da primavera e poemas do inverno. M as, nas obras de Walther, o duro frio do inverno sempre ameaça a bênção do mês de maio. Q ua­ se todos os prazeres referidos nos seus textos aparecem car­ regados com o fatal pressentimento do seu próprio fim. Para transmitir esse estado de emoção, vez por outra as canções retomam uma imagem que se destaca da mudança das estações - imagem incompatível com os gostos e com as

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cores que pertencem a cada uma delas. Essa imagem tam­ bém surge na chamada “ Elegia” - um texto que, por uma boa razão, os comentadores interpretam como a visão amarga que o autor tem quando se volta ao seu passado:

Ai de mim, como me desviaram do caminho as coisas doces deste mundo!

Vejo entre o mel flutuar a bílis:

Por fora, a beleza do mundo alva, verde, vermelha -Mas por dentro negra, escura como a morte.

Aqui, a combinação de doçura e de obscuro amargo - o alemão usa o verbo scbweben para representar o modo como o mel e a bílis flutuam um no outro - alcança um ápice de ascetismo religioso segundo o qual todos os pra- zeres mundanos se revelam grandes decepções. Dez anos antes, numa invectiva que se compôs contra o papa Ino- cêncio III (que se aliara aos Guelfos e ao rei da França con­ tra a dinastia Staufen), Walther utilizara a imagem da bílis como metáfora do que interrompe a ordem e as alegrias do mundo fugaz:

Súbito, o anjo exclama:

Ai de mim, ai de mim, três vezes ai de mim! A Cristandade já esteve lindamente ornada; Agora lhe entrou veneno.

Seu mel se tornou em bílis. Isso o mundo lamentará.

N o tom e no ambiente que percebemos ao ler essas can­ ções e essas declarações políticas, prazer e alegria ocupam posições precárias em face da amargura do mundo. Con­ trapondo-se aos gestos altivos e desafiantes dos trovadores de antanho, a intensidade da alegria nas obras de Walther é fundamentalmente ameaçada.

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O contraste entre o calor da alegria e o frio “ existen­ cial” nada tem a ver com as tensões entre paixão erótica e sofrimento que encontramos nas canções de seus con­ temporâneos. N os madrigais, por exemplo, a celebração do sofrimento no amor exprime ainda a autoconfiança do pessoal da corte. N as canções de Walther, esse orgulho nos prazeres e nas dores mundanas transforma-se num am­ biente de fugacidade e de flutuação. O mesmo vale para o poema aparentemente autoconfiante que teria inspirado Hoffmann von Fallersleben, quando exilado em Heligo- land, a compor o infame verso inicial do hino alemão:

O jeito dos alemães é um melhor tipo de vida. Desde o Elba até o Reno,

E regressando, até a Hungria, Ali, estou certo, vive o melhor Que no mundo tenho conhecido.

Os especialistas concordam que esses versos, que pare­ cem destinados à autoglorificação, foram escritos, de fato, como resposta às canções francesas que ridicularizavam os hábitos e os modos nas cortes germânicas.

Os poemas de Walther contêm uma espécie de “ irritabi­ lidade” que é uma reação ao caos dos conflitos entre os poderes políticos do seu tempo, os quais interferiam na vida do cantor; de algum modo, ele tinha que ser bem acei­ to em todas as cortes, onde prevaleciam distintas relações de lealdade. As alterações constantes de alianças de Wal­ ther são menos relevantes do que a permanente dor que sentia perante o fato de que, onde quer que fosse, o mundo o desiludia no que ele acreditava serem as previsões do Di­ vino. Em junho de 1198, depois da morte inesperada do imperador Henrique IV, subiu ao trono em Aachen o filho e herdeiro de Barba Ruiva, o príncipe guelfo Otto; o

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bispo de Colônia presidiu à entronização. Porém, a coroa e as insígnias do império permaneceram em posse da Casa de Hohenstaufen. A época, Walther (assim como a maioria dos príncipes) apoiou Filipe da Suábia, irmão do falecido imperador e ele mesmo pretendente ao trono. Por ocasião da coroação do príncipe Filipe em Mainz, presidida por um arcebispo da Burgúndia, e três meses depois da de Otto, Walther compôs um poema afirmando que a velha coroa tinha sido feita especialmente para o novo rei:

A coroa antecede o rei Filipe Todos se admirarão com o milagre: O ferreiro a forjou justa,

Cabendo na imperial cabeça.

Que ninguém jamais separe coroa de coroa.

M ais do que uma alegoria da legitimidade política, a imagem da coroa sobre a cabeça de Filipe foi o modo que Walther encontrou para exprimir essa certeza em uma esca­ la cósmica; assim ele se convencia - e convencia a corte de Hohenstaufen - de que tal ordenação do mundo temporal correspondia aos desígnios de Deus. Um ano depois, ele descrevia, da mesma perspectiva, as comemorações de N a­ tal na residência dos Hohenstaufen em Magdeburg:

Avançou o rei Filipe, a todos visível, Na tripla dignidade de ser rei,

Filho de imperador, irmão de imperador. Levava o cetro e a coroa do reino Com gravidade e confiança.

A rainha, bem-nascida, prossegue Walther, é “ uma rosa sem espinhos, pomba sem am argor” . Essas descrições cen­ tram-se na correção cósmica: o casal real ocupa a sua posi­ ção em consonância com o plano divino.

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Apesar de tudo isso, nem a corte dos Hohenstaufen nem nenhum outro centro de poder escapava da “ bile” de Wal­ ther (ou, para ser mais preciso, dos poemas que chegaram até nós sob seu nome). Sua ânsia pela retidão cósmica e pela paz temporal nunca era satisfeita. Transformada em irritabilidade atenta, ela aparece no centro de todas as suas canções e lhes determina o ambiente. Porém, precisamente porque seu trabalho está cheio de lamentações e de avi­ sos, os momentos de calma e de alegria que evocam têm também uma intensidade - aliás, uma dignidade - própria. A magia das últimas composições de Walther, que expri­ mem o amor terreno, não é apenas o poeta asseverando as qualidades de uma nobre dama sobre as de uma moça plebeia; também nasce da esperança de que uma situação erótica, mais básica, poderá garantir-lhe maior satisfação do que o cenário “clássico” e da corte, com seus prêmios por excentricidade e paixão.

Como agradecimento pelo feudo concedido a ele em 1220 em nome de Frederico II, Walther atenua seu anterior tom exaltado, que tocava o grotesco. Informa a seu destina­ tário imperial que deixou de temer “ a dentada de fevereiro nos seus pés” . Ora, tal leitura não violará todos os tabus estabelecidos - por uma boa razão - pela moderna crítica literária contra as interpretações biografistas? É certo que o Walther von der Vogelweide “tardio” e grato pelo feudo ganho não deve ter sido o mesmo que o Walther “inicial” , cantando na coroação de Mainz. Porém, duvidar de que o ambiente de irritabilidade - surgido da ânsia de perene ale­ gria - era um aspecto objetivo das décadas por volta de

1200 me parece ser desnecessariamente acadêmico.

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A existência precária do pícaro

Talvez os leitores do século XVI tenham tido uma expe­ riência diferente, mas, da perspectiva da história literária, o gênero do pícaro surgiu, por assim dizer, de maneira inespe­ rada na cultura castelhana, sem avisar. A partir de então, ele logo encantou autores e leitores por toda a Europa. Em 1554, foram publicadas, ao mesmo tempo em Burgos, em Alcalá e em Antuérpia, as primeiras três edições da obra anônima La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y

adversidades. O fato de, aparentemente, o gênero não ter

precursores - de não ter sido descoberta uma tradição tex­ tual que culminasse na estrutura narrativa e no tipo de pro­ tagonista característicos dele - tem levado, há décadas, à especulação acadêmica sobre possíveis “ modelos” e “ in­ fluências” que remontam às Confissões de Santo Agostinho.

E verdade que durante a Idade Média havia obras e gê­ neros que incluíam - como incluem as novelas picarescas - séries de episódios do tipo mais ou menos “ aventuroso” ; nelas se davam vários encontros que permitiam exibir os diferentes aspectos do protagonista. Muito influentes eram os “ romances corteses” de Chrétien de Troyes, compostos no terceiro quarto do século XII, em que brilhavam os jo­ vens cavaleiros que - pelas mais variadas razões - haviam perdido a honra e status na corte do rei Artur. Os cavalei­ ros recuperam suas posições por meio de um ciclo de duas

aventiures·, durante o processo, exibem paradigmas do

comportamento aristocrático. Em meados do século X X ,

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o grande medievalista Hugo Kuhn foi o primeiro a mostrar de que modo os componentes específicos desse comple­ xo “ ciclo duplo” cumpriam funções narrativas essenciais. Como encarnavam valores abstratos e imutáveis, os heróis do gênero pícaro, assim como seus percursos de aventura, podem ser considerados “ alegóricos” . N os chamados “ ro­ mances em prosa de condição espanhola” - que os roman­ ces de cavalaria de Miguel de Cervantes logo iriam parodiar

a estrutura bem diferenciada e as várias componentes surgiam aplanadas, condensadas numa série de episódios que poderiam ser resumidos ou, até com mais frequência, ser ampliados sem nenhum critério. N o século XIV, uma única obra - no sentido literal do termo - foi composta em língua castelhana com essa mesma estrutura: o Libro

de buen amor. Esse livro conjuga diferentes níveis narrati­

vos e formas linguísticas para contar o desaparecimento de um grande pecador chamado Juan Ruiz, “ el Arcipreste de

H ita” . A complexidade resultante dessa combinação não

chega a alcançar total coerência (o que torna o Libro de

buen am or ainda mais fascinante, ainda que faça excluir a

possibilidade de essa obra ser um precursor direto da nove­ la pícara). M ais tarde, a historiografia vernácula do século XV sobre a Península Ibérica revelaria coleções de peque­ nas obras biográficas em que os traços de distinção e as cas­ tas virtudes que se esperariam de monarcas e de membros da alta nobreza - várias vezes de maneiras surpreendentes e sem uma ordem clara - se mesclam com notas sobre suas fraquezas físicas e seus vícios.

A inovação e a notável descontinuidade histórica repre­ sentadas por Lazarillo de Tormes residem na maneira como os episódios da obra formam, no conjunto, um arco narra­ tivo que, por seu turno, permite fazer emergir o tipo distin­ tivo do protagonista - a personalidade do pícaro. E neces­

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