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nas novelas de Maria de Zayas

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 69-75)

O período conhecido como Século de Ouro da literatura espanhola coincidiu com o drama da monarquia dos Habs- burgo na Península Ibérica: ascensão e domínio mundial, seguidos de declínio. Esse arco dramático começa em mea­ dos do século XVI, depois de Fernando e Isabel - os reis católicos - terem unido seus territórios feudais para formar um Estado moderno, e de o gênero pícaro ter assegurado leitores por toda a Europa, através de traduções e de imita­ ções. Depois dos descobrimentos no Novo Mundo, o Sécu­ lo de Ouro atingiu o seu radiante pico no começo do século XVII, tendo como ápice literário Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1605 e 1615). Em seguida, a “ época clássi­ ca” da Espanha cai numa série de erros militares e desastres econômicos que duram até 1700. Foi nesse contexto que surgiram as comédias de Lope de Vega e a peça de Pedro Calderón, O grande teatro do mwido, que juntou no palco a existência terrena e a vida no além.

M as aquele longo século não foi uma época de ouro só na literatura espanhola. Foi também o tempo de Shakes­ peare, Corneille, Molière e Racine. As obras desses autores definiram as expectativas dos leitores europeus desde en­ tão. Talvez a sua canonização - que parece ser um fato na­ tural, se não mesmo verdade eterna - explique também por que as várias autoras que escreveram naquele tempo não obtiveram qualquer reconhecimento durante mais de três séculos, e só nas fases mais recentes da história literária

foram redescobertas (certamente com a celebração progra­ mática de alguma efeméride). Entre essas escritoras encon- tra-se M aria de Zayas: nascida em 1590 numa família da nobreza madrilenha, entre 1635 e 1650 distinguiu-se com a publicação de duas coleções de Novelas ejemplares, que ti­ veram grande número de leitores e também foram admira­ das pelos escritores homens da época.

As Novelas ejemplares - de acordo com as expectativas herdadas da Idade Média - deveriam ser narrativas curtas, em que o conhecimento derivado do passado (exemplum) se aplicava ao sempre inovador e incerto presente, a bem da instrução e da orientação. Nesse sentido, as novelas de Zayas são todas histórias de amor nas quais as mulheres - determinadas e inteligentes, mas também protegidas pela segurança de instituições como o casamento e o véu - afir­ mam a vontade feminina contra a dominação masculina. Assim, uma de suas personagens chega mesmo a relatar ao seu marido cada pormenor imaginável de uma escapadela sexual, apenas para lhe dar a certeza de que nunca se atre­ veria a ser tão liberal no relato se a história fosse verdadei­ ra. Ora, que outra interpretação inspirada no feminismo se poderia fazer dos textos de Zayas senão a do seu caráter “ subversivo” ? Somente em certas ocasiões - em glosas mar­ ginais - se fazia notar que a suposta autora “ transgressora” não chegara a fazer nenhuma crítica fundamental à ordem social vigente no seu tempo. Porém, nenhuma dessas silen­ ciosas expressões de lamento levou alguém a procurar uma perspectiva historicamente informada dos seus textos.

Assim, não se levou em conta o ponto histórico mais óbvio: o fato de M aria de Zayas ter sido uma grande escritora dentro das convenções literárias do seu tempo - em vez de isso ter se dado a partir de uma posição excêntrica. Logo no prólogo de Novelas ejemplares já se percebe que

ela não participava das correntes intelectuais que foram chamadas, com alguma razão, de “ feminismo” no século XVII. Esse “ feminismo” desenvolveu-se - sobretudo na França - a partir de um entendimento cartesiano da exis­ tência humana, o qual, por se sustentar apenas no pensa­ mento, neutraliza as diferenças físicas entre os sexos (pelo menos implicitamente). Zayas, ao contrário, fundamentava a sua afirmação da igualdade - numa questão filosofica­ mente muito menos convincente - no conceito aristotélico de “ substância” enquanto fusão entre matéria e forma; porque apelava à “ igualdade” da matéria, a diferença entre formas corpóreas não era neutralizada, mas persistia. Em termos da história e da estética da literatura, importa per­ ceber que suas heroínas, que só na aparência são “ trans­ gressoras” , comportam-se exatamente da mesma maneira que a maioria das outras personagens na literatura clássica espanhola, da novela pícara aos dramas de Calderón. Com o máximo de virtuosidade, aproveitam todas as oportuni­ dades de engano retórico e de disfarce. Nesse processo, tornam-se emblemas de um mundo cuja modernidade só poderia se desenvolver “ debaixo dos panos” (conforme Maquiavel observou a propósito dos reis católicos) e na contramão da cosmologia cristã. Nesse clima retórico, até o nome de uma mulher na capa de um livro poderia ser interpretado como parte de um disfarce - embora, desne­ cessário dizê-lo, nada indique que devemos duvidar de que Zayas era, de fato, mulher.

Talvez - após o crescente ruidoso e o bem mais silencio­ so minguante do entusiasmo feminista - seja agora o mo­ mento de nos concentrarmos nas novelas de Zayas, a partir de uma perspectiva que leve a sério a sua linguagem e não se limite a focar em intrigas muito esquematizadas. Ao fa­ zê-lo, não poderemos deixar de notar como a confusa mui-

tiplicidade de estruturas textuais parece bloquear - e até mesmo impedir - o acesso do leitor do século X X I às nar­ rativas. O denso crescimento dessas estruturas começa, por um lado, com a reprodução das inúmeras licenças de publi­ cação e das intermináveis dedicatórias em verso; e vai se concluir (entre outras passagens) no final da primeira nove­ la, com a premissa de que a história da apaixonada Jacinta, que ali se inicia, foi passada a Fabio, cavaleiro peregrino na região de Monserrate. Entretanto, vai-se desenrolando aquilo que Niklas Luhmann, numa discussão sobre o início da literatura moderna, chamou uma vez de “ comunicação com pacta” - ou seja, descrições de situações ficcionais de ação e de atenção. N o começo da era moderna, essas cenas ajudavam os leitores isolados das obras impressas a se sin­ tonizar com os mundos que ali estavam contidos. A si­ tuação de comunicação compacta que Zayas desenha com tanta mestria é o serão, tertúlia literária dos jovens das me­ lhores famílias, que se reuniam na semana do N atal para ajudar sua amiga Lisis, doente, a passar as horas. À volta da sua cama, sentados num “ estrado de almofadas de velu­ do verde” , juntam-se e ouvem a bela Lisarda - objeto do olhar lascivo de Juan, noivo da moça doente - contar a triste história que Fabio ouvira de Jacinta.

A intriga mais (ou menos) subversiva se desenrola sem se aprofundar em níveis psicológicos - os leitores moder­ nos, em particular, acham-na seca e mecânica: Jacinta se entrega a Félix, que está comprometido com Adriana; Adriana fica sabendo daquela união e suicida-se tomando veneno; sem ficar nem um pouco afetada pela morte da outra mulher, Jacinta se atira nos braços de Félix nessa mesma noite para o “consolar” ; mediante a suspeita bem fundamentada, o pai de Jacinta tenta matar Félix; tanto persegue o jovem, que este acaba se alistando na armada

espanhola e vai para Flandres, onde vem a morrer; Jacinta volta a apaixonar-se, dessa vez por Celio; mas, infelizmen­ te, este não lhe dedica a mesma afeição.

O que cativa nas novelas de Zayas não é a narrativa, muito convencional e com pouca substância. O que nelas seduz são as descrições, que regalam nossa imaginação com o fausto retórico dos pormenores elaborados. Só tangencial­ mente essas descrições estão relacionadas com realidades externas ao texto. Logo no começo da primeira novela, a paisagem montanhosa ao redor de Monserrate aparece esti­ lizada à maneira dramática de um cenário alpino, com “ pontas de empinados montes” , “ sendas estreitas” e riachos “ que derramam suas pérolas entre as ervinhas” . Quando, no fecho do conto, as criadas de Adriana - que morreu, ví­ tima da inveja daquelas - a despem, descobrem uma carta de despedida, para a mãe, escondida “ entre os seus formo­ sos peitos” . Um pouco mais à frente, o leitor encontra Jacin­ ta - agora só “ com uma pequena saia de damasco e descal­ ça” - fugindo do pai. Ao longo do caminho, a autora usa todas as oportunidades que a narrativa lhe dá para apresen­ tar os nomes das cidades e das regiões, que se apressa a or­ namentar com uma profusão de adjetivos, como se preen­ chesse páginas de um livro de brasões. O efeito combinado dessas passagens faz lembrar a atmosfera dos poemas de Luis de Góngora, que estimulam sem parar a imaginação do leitor. Esses sinais movem-se, apontam em direções diferen­ tes, mas sem nunca resultarem na imagem coerente de um mundo real. Antes, o gesto da descrição estilizada - como na pintura e na música da época - gera a intensidade dos mais variados ambientes e atmosferas.

A obra de M aria de Zayas aguarda ser redescoberta, pela mestria com que convoca esse tipo de Stimmung literá­ rio. Aliás, a frase de autorreflexão com que Jacinta conclui

a primeira novela antecipa o entendimento filosófico de Martin Heidegger, segundo o qual os diferentes ambientes e atmosferas dependem de diferentes configurações que ocorrem entre horizontes do passado e do futuro: “ Amei Dom Félix até que de mim a morte o apartou; amo e amarei Célio até que ela triunfe sobre minha vida.” Entre a satisfa­ ção perdida para o passado e o desejo de um amante futu­ ro, a novela de Zayas elabora uma densa atmosfera de me­ lancolia enamorada. Esse ambiente envolve também os jovens moços e as damas reunidos junto à cabeceira de Li- sis, escutando, arrebatados, o relato de Jacinta, tal como Lisarda o vai contando. E, porque sente que o tom melan­ cólico do seu amor por Juan está como que suspenso no ambiente da novela, Lisis canta um triste soneto que, no final, é acompanhado ao violão. A canção começa assim: “ Não desmaia meu amor com vosso olvido, pois que é gi­ gante armado de firm eza...”

Seja qual for o preço a pagar pela redescoberta do char­ me retórico das novelas de Zayas, o esforço promete abrir uma nova perspectiva sobre a maioria das obras do gran­ de período da literatura europeia que também fundou a tradição a que ela pertence. Talvez nos tenhamos detido por demasiado tempo nas intrigas das peças de teatro ou das narrativas em prosa. Assim, parece que esquecemos o fato de que nomes e títulos como Hamlet, Otelo e Lear representam a intensidade de atmosferas substancialmente variadas, nas quais poderemos - e deveríamos - querer nos envolver. N ão será o mesmo válido para o páthos das tra­ gédias de Racine, o registro completamente diferente das peças de Corneille, os mundos das comédias de Molière (que quase nunca dão a imagem de uma felicidade inin­ terrupta) e mesmo até das aventuras de Dom Quixote, “ o cavaleiro da triste figura” ?

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 69-75)