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Alegrias fugazes nas canções de Walther von der Vogelweide

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 37-45)

A Idade Média, tal como foi imaginada pelos românticos - valentes cavaleiros em combate, lindas donzelas nas torres altaneiras no meio da densa floresta e outras imagens do tipo -, essa Idade Média não durou muito tempo. O ce­ nário imaginado resultou de algumas centenas de canções, entoadas pelos bardos nas cortes dos reis e dos nobres - primeiro, no Sul da França, depois no Norte e nas terras de língua alemã. Desde então, essa fantasia tem dado o tom - de modo específico, mas também de modos historicamente variados - para toda a nossa compreensão da boa ou da má sorte no amor; em alguns casos, pode até ter determinado o sucesso ou o fracasso de vidas individuais.

Com uma infinitude de variações, a partir de um repertó­ rio finito de situações e motivos, esses textos estimulam uma alegria autoconfiante entre os nobres provavelmente obce­ cados pela excentricidade desafiadora dos seus gestos. “ Amigos, cantarei uma canção ao nosso gosto” - assim co­ meça um poema atribuído a Guilherme IX da Aquitânia (um dos príncipes mais poderosos do seu tempo). “Nela, o amor, a alegria e a juventude são mais de loucura que de razão. Que aquele que não compreender as suas palavras seja considerado um peão.” Os pesquisadores não chegarão nunca a um acordo sobre as circunstâncias exatas que pos­ sam ter favorecido o desenvolvimento desse tom - que vei­ culava um sentido do eu típico da altivez das elites. Porém, não deve haver dúvidas de que o surgimento dele se deu por

oposição às rigorosas condições da vida medieval (nessas canções, nada é mais celebrado do que o final do inverno solitário e cinzento), assim como para contrariar os manda­ mentos religiosos de austeridade (na Idade Média, o casa­ mento e as paixões do amor eram vistos como coisas incom­ patíveis, e Guilherme IX, o “ primeiro trovador” , levou a vida em lutas com a Igreja). Décadas atrás, Hugo Kuhn - um medievalista inultrapassável na sua capacidade de imagina­ ção - especulava que o orgulho nos papéis de homem e de mulher, que se detecta nas Minnesang, pode ter dado origem aos mais antigos conceitos de felicidade e de sofrimento, só experimentados como realidade social meio milênio depois pela alta burguesia influenciada pelas ideias românticas.

A questão que ocupava Kuhn nas suas interpretações filológicas era a de saber se, nos comparativamente reserva­ dos tons da lírica amorosa germânica, seria possível perce­ ber alguma impressão não mediada da elevação dos espíri­ tos nas cortes medievais. As respostas dadas pelo próprio Kuhn revelavam, por vezes, dúvida e, por vezes, até pare­ ciam encurraladas na melancolia do Romantismo. Os seus sucessores mais capazes concordam que as formas e as fór­ mulas literárias sempre encobrirão a verdadeira natureza da atmosfera nas cortes. Nunca seremos capazes de recons­ truir, nem mesmo parcialmente, a música e as melodias das canções com base apenas na notação musical e nas formas dos versos (divididas em “ tons” ) que chegaram até nós. As poucas fontes que nos restam sobre os festivais das cortes - por exemplo, a ordenação dos filhos do Barba Ruiva no Pentecostes, em Mainz, em 1184 - dão pouca informação acerca dos rituais sociais e das circunstâncias da cerimônia. As pistas de individualidade que se encontram nos textos líricos e nos levam a papéis convencionais revelaram-se, de uma vez por todas, ilusórias.

É verdade que já deveríamos saber disso; mas continua a ser tão difícil para nós como para um leitor desavisado, desde o século XIII, evitar a tentação de ceder à emoção quando, por exemplo, lemos as palavras de Walther von der Vogelweide:

Consegues ver o poder da magia, entregue a maio? Agora, em breve, tudo, para nós, ficará bem. Seremos alegres,

Dançaremos, riremos, cantaremos, Livres do rude e entediante prazer.

Ainda que os versos de Walther lembrem os de William IX, compostos cem anos antes, o seu distinto ambiente de­ riva - quase obsessivamente - de um contraste entre o cená­ rio da primavera e as cores e os sons do inverno:

O mundo brilhava, amarelo, vermelho e azul, Verde nos bosques e noutros lugares.

Ali trinavam as avezinhas.

Mas agora crocita o corvo encapuzado. Terá agora o mundo outra cor, também? Sim, ficou todo pálido e cinza,

Assim se enrugaram muitas frontes.

Estaria em perfeita concordância com o que sabemos sobre a maneira como a poesia medieval era composta, se conseguíssemos distinguir entre poemas da primavera e poemas do inverno. M as, nas obras de Walther, o duro frio do inverno sempre ameaça a bênção do mês de maio. Q ua­ se todos os prazeres referidos nos seus textos aparecem car­ regados com o fatal pressentimento do seu próprio fim. Para transmitir esse estado de emoção, vez por outra as canções retomam uma imagem que se destaca da mudança das estações - imagem incompatível com os gostos e com as

cores que pertencem a cada uma delas. Essa imagem tam­ bém surge na chamada “ Elegia” - um texto que, por uma boa razão, os comentadores interpretam como a visão amarga que o autor tem quando se volta ao seu passado:

Ai de mim, como me desviaram do caminho as coisas doces deste mundo!

Vejo entre o mel flutuar a bílis:

Por fora, a beleza do mundo - alva, verde, vermelha - Mas por dentro negra, escura como a morte.

Aqui, a combinação de doçura e de obscuro amargo - o alemão usa o verbo scbweben para representar o modo como o mel e a bílis flutuam um no outro - alcança um ápice de ascetismo religioso segundo o qual todos os pra- zeres mundanos se revelam grandes decepções. Dez anos antes, numa invectiva que se compôs contra o papa Ino- cêncio III (que se aliara aos Guelfos e ao rei da França con­ tra a dinastia Staufen), Walther utilizara a imagem da bílis como metáfora do que interrompe a ordem e as alegrias do mundo fugaz:

Súbito, o anjo exclama:

Ai de mim, ai de mim, três vezes ai de mim! A Cristandade já esteve lindamente ornada; Agora lhe entrou veneno.

Seu mel se tornou em bílis. Isso o mundo lamentará.

N o tom e no ambiente que percebemos ao ler essas can­ ções e essas declarações políticas, prazer e alegria ocupam posições precárias em face da amargura do mundo. Con­ trapondo-se aos gestos altivos e desafiantes dos trovadores de antanho, a intensidade da alegria nas obras de Walther é fundamentalmente ameaçada.

O contraste entre o calor da alegria e o frio “ existen­ cial” nada tem a ver com as tensões entre paixão erótica e sofrimento que encontramos nas canções de seus con­ temporâneos. N os madrigais, por exemplo, a celebração do sofrimento no amor exprime ainda a autoconfiança do pessoal da corte. N as canções de Walther, esse orgulho nos prazeres e nas dores mundanas transforma-se num am­ biente de fugacidade e de flutuação. O mesmo vale para o poema aparentemente autoconfiante que teria inspirado Hoffmann von Fallersleben, quando exilado em Heligo- land, a compor o infame verso inicial do hino alemão:

O jeito dos alemães é um melhor tipo de vida. Desde o Elba até o Reno,

E regressando, até a Hungria, Ali, estou certo, vive o melhor Que no mundo tenho conhecido.

Os especialistas concordam que esses versos, que pare­ cem destinados à autoglorificação, foram escritos, de fato, como resposta às canções francesas que ridicularizavam os hábitos e os modos nas cortes germânicas.

Os poemas de Walther contêm uma espécie de “ irritabi­ lidade” que é uma reação ao caos dos conflitos entre os poderes políticos do seu tempo, os quais interferiam na vida do cantor; de algum modo, ele tinha que ser bem acei­ to em todas as cortes, onde prevaleciam distintas relações de lealdade. As alterações constantes de alianças de Wal­ ther são menos relevantes do que a permanente dor que sentia perante o fato de que, onde quer que fosse, o mundo o desiludia no que ele acreditava serem as previsões do Di­ vino. Em junho de 1198, depois da morte inesperada do imperador Henrique IV, subiu ao trono em Aachen o filho e herdeiro de Barba Ruiva, o príncipe guelfo Otto; o arce-

bispo de Colônia presidiu à entronização. Porém, a coroa e as insígnias do império permaneceram em posse da Casa de Hohenstaufen. A época, Walther (assim como a maioria dos príncipes) apoiou Filipe da Suábia, irmão do falecido imperador e ele mesmo pretendente ao trono. Por ocasião da coroação do príncipe Filipe em Mainz, presidida por um arcebispo da Burgúndia, e três meses depois da de Otto, Walther compôs um poema afirmando que a velha coroa tinha sido feita especialmente para o novo rei:

A coroa antecede o rei Filipe Todos se admirarão com o milagre: O ferreiro a forjou justa,

Cabendo na imperial cabeça.

Que ninguém jamais separe coroa de coroa.

M ais do que uma alegoria da legitimidade política, a imagem da coroa sobre a cabeça de Filipe foi o modo que Walther encontrou para exprimir essa certeza em uma esca­ la cósmica; assim ele se convencia - e convencia a corte de Hohenstaufen - de que tal ordenação do mundo temporal correspondia aos desígnios de Deus. Um ano depois, ele descrevia, da mesma perspectiva, as comemorações de N a­ tal na residência dos Hohenstaufen em Magdeburg:

Avançou o rei Filipe, a todos visível, Na tripla dignidade de ser rei,

Filho de imperador, irmão de imperador. Levava o cetro e a coroa do reino Com gravidade e confiança.

A rainha, bem-nascida, prossegue Walther, é “ uma rosa sem espinhos, pomba sem am argor” . Essas descrições cen­ tram-se na correção cósmica: o casal real ocupa a sua posi­ ção em consonância com o plano divino.

Apesar de tudo isso, nem a corte dos Hohenstaufen nem nenhum outro centro de poder escapava da “ bile” de Wal­ ther (ou, para ser mais preciso, dos poemas que chegaram até nós sob seu nome). Sua ânsia pela retidão cósmica e pela paz temporal nunca era satisfeita. Transformada em irritabilidade atenta, ela aparece no centro de todas as suas canções e lhes determina o ambiente. Porém, precisamente porque seu trabalho está cheio de lamentações e de avi­ sos, os momentos de calma e de alegria que evocam têm também uma intensidade - aliás, uma dignidade - própria. A magia das últimas composições de Walther, que expri­ mem o amor terreno, não é apenas o poeta asseverando as qualidades de uma nobre dama sobre as de uma moça plebeia; também nasce da esperança de que uma situação erótica, mais básica, poderá garantir-lhe maior satisfação do que o cenário “clássico” e da corte, com seus prêmios por excentricidade e paixão.

Como agradecimento pelo feudo concedido a ele em 1220 em nome de Frederico II, Walther atenua seu anterior tom exaltado, que tocava o grotesco. Informa a seu destina­ tário imperial que deixou de temer “ a dentada de fevereiro nos seus pés” . Ora, tal leitura não violará todos os tabus estabelecidos - por uma boa razão - pela moderna crítica literária contra as interpretações biografistas? É certo que o Walther von der Vogelweide “tardio” e grato pelo feudo ganho não deve ter sido o mesmo que o Walther “inicial” , cantando na coroação de Mainz. Porém, duvidar de que o ambiente de irritabilidade - surgido da ânsia de perene ale­ gria - era um aspecto objetivo das décadas por volta de

1200 me parece ser desnecessariamente acadêmico.

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 37-45)