A Idade Média, tal como foi imaginada pelos românticos - valentes cavaleiros em combate, lindas donzelas nas torres altaneiras no meio da densa floresta e outras imagens do tipo -, essa Idade Média não durou muito tempo. O ce nário imaginado resultou de algumas centenas de canções, entoadas pelos bardos nas cortes dos reis e dos nobres - primeiro, no Sul da França, depois no Norte e nas terras de língua alemã. Desde então, essa fantasia tem dado o tom - de modo específico, mas também de modos historicamente variados - para toda a nossa compreensão da boa ou da má sorte no amor; em alguns casos, pode até ter determinado o sucesso ou o fracasso de vidas individuais.
Com uma infinitude de variações, a partir de um repertó rio finito de situações e motivos, esses textos estimulam uma alegria autoconfiante entre os nobres provavelmente obce cados pela excentricidade desafiadora dos seus gestos. “ Amigos, cantarei uma canção ao nosso gosto” - assim co meça um poema atribuído a Guilherme IX da Aquitânia (um dos príncipes mais poderosos do seu tempo). “Nela, o amor, a alegria e a juventude são mais de loucura que de razão. Que aquele que não compreender as suas palavras seja considerado um peão.” Os pesquisadores não chegarão nunca a um acordo sobre as circunstâncias exatas que pos sam ter favorecido o desenvolvimento desse tom - que vei culava um sentido do eu típico da altivez das elites. Porém, não deve haver dúvidas de que o surgimento dele se deu por
oposição às rigorosas condições da vida medieval (nessas canções, nada é mais celebrado do que o final do inverno solitário e cinzento), assim como para contrariar os manda mentos religiosos de austeridade (na Idade Média, o casa mento e as paixões do amor eram vistos como coisas incom patíveis, e Guilherme IX, o “ primeiro trovador” , levou a vida em lutas com a Igreja). Décadas atrás, Hugo Kuhn - um medievalista inultrapassável na sua capacidade de imagina ção - especulava que o orgulho nos papéis de homem e de mulher, que se detecta nas Minnesang, pode ter dado origem aos mais antigos conceitos de felicidade e de sofrimento, só experimentados como realidade social meio milênio depois pela alta burguesia influenciada pelas ideias românticas.
A questão que ocupava Kuhn nas suas interpretações filológicas era a de saber se, nos comparativamente reserva dos tons da lírica amorosa germânica, seria possível perce ber alguma impressão não mediada da elevação dos espíri tos nas cortes medievais. As respostas dadas pelo próprio Kuhn revelavam, por vezes, dúvida e, por vezes, até pare ciam encurraladas na melancolia do Romantismo. Os seus sucessores mais capazes concordam que as formas e as fór mulas literárias sempre encobrirão a verdadeira natureza da atmosfera nas cortes. Nunca seremos capazes de recons truir, nem mesmo parcialmente, a música e as melodias das canções com base apenas na notação musical e nas formas dos versos (divididas em “ tons” ) que chegaram até nós. As poucas fontes que nos restam sobre os festivais das cortes - por exemplo, a ordenação dos filhos do Barba Ruiva no Pentecostes, em Mainz, em 1184 - dão pouca informação acerca dos rituais sociais e das circunstâncias da cerimônia. As pistas de individualidade que se encontram nos textos líricos e nos levam a papéis convencionais revelaram-se, de uma vez por todas, ilusórias.
É verdade que já deveríamos saber disso; mas continua a ser tão difícil para nós como para um leitor desavisado, desde o século XIII, evitar a tentação de ceder à emoção quando, por exemplo, lemos as palavras de Walther von der Vogelweide:
Consegues ver o poder da magia, entregue a maio? Agora, em breve, tudo, para nós, ficará bem. Seremos alegres,
Dançaremos, riremos, cantaremos, Livres do rude e entediante prazer.
Ainda que os versos de Walther lembrem os de William IX, compostos cem anos antes, o seu distinto ambiente de riva - quase obsessivamente - de um contraste entre o cená rio da primavera e as cores e os sons do inverno:
O mundo brilhava, amarelo, vermelho e azul, Verde nos bosques e noutros lugares.
Ali trinavam as avezinhas.
Mas agora crocita o corvo encapuzado. Terá agora o mundo outra cor, também? Sim, ficou todo pálido e cinza,
Assim se enrugaram muitas frontes.
Estaria em perfeita concordância com o que sabemos sobre a maneira como a poesia medieval era composta, se conseguíssemos distinguir entre poemas da primavera e poemas do inverno. M as, nas obras de Walther, o duro frio do inverno sempre ameaça a bênção do mês de maio. Q ua se todos os prazeres referidos nos seus textos aparecem car regados com o fatal pressentimento do seu próprio fim. Para transmitir esse estado de emoção, vez por outra as canções retomam uma imagem que se destaca da mudança das estações - imagem incompatível com os gostos e com as
cores que pertencem a cada uma delas. Essa imagem tam bém surge na chamada “ Elegia” - um texto que, por uma boa razão, os comentadores interpretam como a visão amarga que o autor tem quando se volta ao seu passado:
Ai de mim, como me desviaram do caminho as coisas doces deste mundo!
Vejo entre o mel flutuar a bílis:
Por fora, a beleza do mundo - alva, verde, vermelha - Mas por dentro negra, escura como a morte.
Aqui, a combinação de doçura e de obscuro amargo - o alemão usa o verbo scbweben para representar o modo como o mel e a bílis flutuam um no outro - alcança um ápice de ascetismo religioso segundo o qual todos os pra- zeres mundanos se revelam grandes decepções. Dez anos antes, numa invectiva que se compôs contra o papa Ino- cêncio III (que se aliara aos Guelfos e ao rei da França con tra a dinastia Staufen), Walther utilizara a imagem da bílis como metáfora do que interrompe a ordem e as alegrias do mundo fugaz:
Súbito, o anjo exclama:
Ai de mim, ai de mim, três vezes ai de mim! A Cristandade já esteve lindamente ornada; Agora lhe entrou veneno.
Seu mel se tornou em bílis. Isso o mundo lamentará.
N o tom e no ambiente que percebemos ao ler essas can ções e essas declarações políticas, prazer e alegria ocupam posições precárias em face da amargura do mundo. Con trapondo-se aos gestos altivos e desafiantes dos trovadores de antanho, a intensidade da alegria nas obras de Walther é fundamentalmente ameaçada.
O contraste entre o calor da alegria e o frio “ existen cial” nada tem a ver com as tensões entre paixão erótica e sofrimento que encontramos nas canções de seus con temporâneos. N os madrigais, por exemplo, a celebração do sofrimento no amor exprime ainda a autoconfiança do pessoal da corte. N as canções de Walther, esse orgulho nos prazeres e nas dores mundanas transforma-se num am biente de fugacidade e de flutuação. O mesmo vale para o poema aparentemente autoconfiante que teria inspirado Hoffmann von Fallersleben, quando exilado em Heligo- land, a compor o infame verso inicial do hino alemão:
O jeito dos alemães é um melhor tipo de vida. Desde o Elba até o Reno,
E regressando, até a Hungria, Ali, estou certo, vive o melhor Que no mundo tenho conhecido.
Os especialistas concordam que esses versos, que pare cem destinados à autoglorificação, foram escritos, de fato, como resposta às canções francesas que ridicularizavam os hábitos e os modos nas cortes germânicas.
Os poemas de Walther contêm uma espécie de “ irritabi lidade” que é uma reação ao caos dos conflitos entre os poderes políticos do seu tempo, os quais interferiam na vida do cantor; de algum modo, ele tinha que ser bem acei to em todas as cortes, onde prevaleciam distintas relações de lealdade. As alterações constantes de alianças de Wal ther são menos relevantes do que a permanente dor que sentia perante o fato de que, onde quer que fosse, o mundo o desiludia no que ele acreditava serem as previsões do Di vino. Em junho de 1198, depois da morte inesperada do imperador Henrique IV, subiu ao trono em Aachen o filho e herdeiro de Barba Ruiva, o príncipe guelfo Otto; o arce-
bispo de Colônia presidiu à entronização. Porém, a coroa e as insígnias do império permaneceram em posse da Casa de Hohenstaufen. A época, Walther (assim como a maioria dos príncipes) apoiou Filipe da Suábia, irmão do falecido imperador e ele mesmo pretendente ao trono. Por ocasião da coroação do príncipe Filipe em Mainz, presidida por um arcebispo da Burgúndia, e três meses depois da de Otto, Walther compôs um poema afirmando que a velha coroa tinha sido feita especialmente para o novo rei:
A coroa antecede o rei Filipe Todos se admirarão com o milagre: O ferreiro a forjou justa,
Cabendo na imperial cabeça.
Que ninguém jamais separe coroa de coroa.
M ais do que uma alegoria da legitimidade política, a imagem da coroa sobre a cabeça de Filipe foi o modo que Walther encontrou para exprimir essa certeza em uma esca la cósmica; assim ele se convencia - e convencia a corte de Hohenstaufen - de que tal ordenação do mundo temporal correspondia aos desígnios de Deus. Um ano depois, ele descrevia, da mesma perspectiva, as comemorações de N a tal na residência dos Hohenstaufen em Magdeburg:
Avançou o rei Filipe, a todos visível, Na tripla dignidade de ser rei,
Filho de imperador, irmão de imperador. Levava o cetro e a coroa do reino Com gravidade e confiança.
A rainha, bem-nascida, prossegue Walther, é “ uma rosa sem espinhos, pomba sem am argor” . Essas descrições cen tram-se na correção cósmica: o casal real ocupa a sua posi ção em consonância com o plano divino.
Apesar de tudo isso, nem a corte dos Hohenstaufen nem nenhum outro centro de poder escapava da “ bile” de Wal ther (ou, para ser mais preciso, dos poemas que chegaram até nós sob seu nome). Sua ânsia pela retidão cósmica e pela paz temporal nunca era satisfeita. Transformada em irritabilidade atenta, ela aparece no centro de todas as suas canções e lhes determina o ambiente. Porém, precisamente porque seu trabalho está cheio de lamentações e de avi sos, os momentos de calma e de alegria que evocam têm também uma intensidade - aliás, uma dignidade - própria. A magia das últimas composições de Walther, que expri mem o amor terreno, não é apenas o poeta asseverando as qualidades de uma nobre dama sobre as de uma moça plebeia; também nasce da esperança de que uma situação erótica, mais básica, poderá garantir-lhe maior satisfação do que o cenário “clássico” e da corte, com seus prêmios por excentricidade e paixão.
Como agradecimento pelo feudo concedido a ele em 1220 em nome de Frederico II, Walther atenua seu anterior tom exaltado, que tocava o grotesco. Informa a seu destina tário imperial que deixou de temer “ a dentada de fevereiro nos seus pés” . Ora, tal leitura não violará todos os tabus estabelecidos - por uma boa razão - pela moderna crítica literária contra as interpretações biografistas? É certo que o Walther von der Vogelweide “tardio” e grato pelo feudo ganho não deve ter sido o mesmo que o Walther “inicial” , cantando na coroação de Mainz. Porém, duvidar de que o ambiente de irritabilidade - surgido da ânsia de perene ale gria - era um aspecto objetivo das décadas por volta de
1200 me parece ser desnecessariamente acadêmico.