• Nenhum resultado encontrado

As muitas camadas do mundo dos sonetos de Shakespeare

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 55-69)

N o sétimo ano dos nove que passei no liceu Siebold, em Würzburg, meu professor de inglês se chamava Emil Reu- ter. Era mais conhecido por ser o que as pessoas chamam de “ uma figura” do que por seu estilo intelectual ou por suas ambições acadêmicas fora da sala de aula (que muitos professores, à época, alimentavam). O inconfundível sota­ que da Baixa-Francônia, quando falava inglês, era lendá­ rio. M uitas vezes - e com gosto - revelava essas cadências quando recitava os clássicos. Foi com Emil Reuter que le­ mos e discutimos Canterville Ghost, de Oscar Wilde, pala­ vra a palavra - tão lentamente que, ainda hoje, passados mais de quarenta anos, consigo recitar algumas passagens de cor. Que eu me lembre, só recitou numa aula, uma úni­ ca vez, o maravilhoso soneto 18, de Shakespeare, cujos ca­ torze versos (iniciando com “ Poderei comparar-te a um dia de verão?” ) posso reproduzir agora mesmo. O que o “Ve­ lho Emil” , como o chamávamos, dissesse sobre as obras geralmente não era posto em questão: os sonetos de Shakespeare têm estrutura diferente da dos sonetos de Pe- trarca (vale revelar que nenhum de nós tinha, até então, lido Petrarca); na Inglaterra, os “ dias de verão” são bran­ dos, isto é, menos quentes do que na Alemanha (para não falar da Itália ou da costa do Adriático); o Velho Emil teria rechaçado - se tivesse chegado a ouvir - o comentário de que, na lírica shakespeariana, mais frequentemente há um amante dirigindo-se a outro homem.

Apesar de tudo isso, dessa aula única, muito mais ficou na minha memória do que apenas divertimento anedótico. Des­ de então - e mesmo sem reviver o sotaque francônio - me faz particularmente feliz a lembrança do soneto 18. Nesses mo­ mentos, torço para, num longínquo ponto qualquer do futu­ ro, ter mais tempo para me dedicar aos 150 poemas de Shakespeare. M as me pergunto: o que, precisamente, perma­ neceu comigo por todos esses anos - não obstante o sotaque de Emil Reuter - como se fosse a promessa de algo que eu não conseguia nomear? Em outras palavras, ligeiramente di­ ferentes: o que, do vigor e da beleza desse soneto, me tocou tão fundo - quando eu tinha meus dezesseis, dezessete anos - que permaneceu comigo, tão vincado quanto a pequena cicatriz da minha mão esquerda, que ganhei de um acidente de bicicleta? A cicatriz me recorda o prazer de andar de bici­ cleta, veloz ao vento (mas também os ocasionais resultados menos aprazíveis dessa atividade). “William Shakespeare” de modo nenhum é mais uma invenção minha do que a figu­ ra - as ideias e os sentimentos associados com esse nome - que hoje usamos para vivenciar e compreender o que o gran­ de Harold Bloom (dando particular atenção às peças de teatro do Bardo) chamou, tout court, de “ o humano” . Bloom declarou que Shakespeare é o permanente e inevitável con­ temporâneo da nossa modernidade. M as talvez sua grandio­ sa afirmação não tenha ido suficientemente longe.

Seja como for, estou certo de que o que me fascina em Shakespeare, nas peças e mais ainda nos seus sonetos, é a diferença histórica que apresentam. Parece que se concen­ traram em - e absorveram - todo um mundo: o mundo ruidoso, sujo, terno e perigoso da Londres do final do sécu­ lo XVI. Hoje, aparentemente, dão-nos a certeza de que, por breves instantes, podemos mergulhar nesse tempo, em espí­ rito e também em corpo. Quem quer que recite os sonetos

de Shakespeare - ou encene suas peças - empresta presença física às palavras, às frases, aos ritmos do seu tempo, evo­ cando um mundo desaparecido. N ão se trata de “ recordar” - como prontamente diríamos mas de “ fazer-presente” . Ao serem evocadas para uma nova vida, as palavras tocam os corpos dos ouvintes a partir do exterior; ao mesmo tem­ po, elas - como as imagens e os sentidos que transmitem - nos afetam “ como um toque de dentro” (como escreveu Toni Morrison com tanta eloquência).

Juntos, esses dois aspectos - o som “ exterior” das pala­ vras e a força que contêm no seu interior - conseguem trazer o mundo de Shakespeare para o presente. A atmosfera é dife­ rente daquela que nos é familiar. Por essa razão é tão ex­ traordinário que ela nos tenha tocado, alunos numa sala de aula em Würzburg. Por princípio, textos e artefatos absor­ vem a atmosfera de seus tempos. Porém, quer em termos es­ téticos, quer em termos históricos, tudo depende da medida em que os textos operam essa absorção, e da intensidade com que os atos de leitura e de declamação tornam de novo pre­ sentes esses ambientes. Porque são sonetos de amor, os poe­ mas de Shakespeare - com suas imagens, suas figuras de retó­ rica, suas formas métricas - se inscrevem na tradição europeia do petrarquismo, que poliu o verso do trovador da Occitânia (o qual muitas vezes cria uma impressão de imediatez) até conseguir um repertório retoricamente perfeito de fórmulas elegantes - e, na sua maioria, impessoais e distantes. N as mãos de Shakespeare, essas fórmulas ganharam uma energia nova e diferente. Nunca saberemos ao certo quem terá inspi­ rado os poemas, nem sequer conseguiremos, a rigor, saber a quem pretendiam deleitar. Mesmo assim, não conseguimos deixar de ver o autor como um “gênio da identificação ima­ ginária” , nas palavras de Stephen Greenblatt. Ao que parece, enquanto escrevia suas obras, Shakespeare tinha mais uma

série de funções que lhe ocupavam a vida; ele conquistou ter­ reno para os seus textos. Ainda que possamos nem sempre dar por isso, não podemos - nem deveríamos - duvidar de que a atmosfera de um determinado presente pode tocar-nos de maneira direta; ao mesmo tempo, sentimos que esse mun­ do e a sua atmosfera nunca se materializarão por completo, e nunca assumirão, para nós, uma forma definitiva.

É impossível não ver como esses momentos do passado encontram necessariamente maior ou menor eco em “ pre­ sentes” específicos e em situações concretas da vida da pos­ teridade. O Renascimento mesmo viveu esses “ renascimen­ tos” ao longo dos séculos X IX e X X . Para conseguir ir além da lógica da história e da hermenêutica, as obras de Shakes­ peare têm o potencial - talvez sem igual na nossa cultura - de atingir densidade e imediatez nas maneiras como tornam presente a atmosfera do seu próprio mundo. Gostaria ago­ ra de mostrar como os sonetos de Shakespeare preservam essas atmosferas e esses ambientes em camadas diferentes. Esses níveis de significação interligam-se ao longo de múlti­ plas linhas, variadas e muito diferentes; no entanto, distin- guem-se uns dos outros e podem ser classificados como es­ feras de fenômenos distintos. Afetam simultaneamente leitor e ouvinte; mas, ao mesmo tempo - e em cada momen­ to alguns elementos ficam em suspenso enquanto outros se iniciam, como diferentes instrumentos numa orquestra.

Para Shakespeare, o Universo e as estrelas - com relevância quer astronômica, quer astrológica - constituem o horizon­ te cósmico onde ocorrem situações de amor:

Não das estrelas extraio meus juízos; E, porém, julgo, tenho astronomia,

Mas não para dizer da boa ou da má sorte !··.]

De teus olhos recolho o saber,

E, estrelas constantes, é neles que leio [...] (soneto 14)

Quase todas as passagens pertencentes a essa camada peri­ férica parecem, ao primeiro olhar - ao menos vistas da pers­ pectiva do nosso tempo -, traduzir as referências cósmicas como descrições metafóricas da pessoa que se ama. M as, his­ toricamente - ou seja, no contexto dos sonetos shakespearia- nos -, percebemos, em uma segunda leitura, que os amantes e seu amor não se fazem presentes apenas através das metáfo­ ras. Em vez disso, porque fazem parte do Universo, eles encar­ nam e materializam suas realidades, as concretas e as espiri­ tuais. Assim, a presença dinâmica de todo o Universo na companhia da pessoa amada não é só uma fórmula hiperbóli­ ca da retórica do erotismo (como seria o caso em versos de Petrarca); se levarmos a sério a linguagem - ou seja, num sen­ tido completamente físico ela revelará seu verdadeiro poder:

[...] Porque a nada mais chamo, nesse Universo largo, Tirando a ti, minha rosa; nele, és tu meu tudo [...] (soneto 109)

Se aqui se tratasse apenas de amplificação retórica con­ vencional, seria totalmente desnecessário enfatizar, como Shakespeare faz no segundo verso (“ nele, és tu meu tudo” ), que o amante não dá por mais ninguém - nem por mais nada - no “Universo largo” , senão pela pessoa amada. Shakes­ peare nunca chega a transformar completamente o mundo natural, ou as coisas nele, em metáforas para as questões hu­ manas e pessoais. Ao permitir-lhes reter a vitalidade da lite- ralidade e da concretude possíveis, ele as carrega de energia.

Podemos dizer o mesmo de outra camada do mundo de Shakespeare e da atmosfera nele contida: as estações do ano, o clima meteorológico e a influência que exercem so­ bre tudo o que é da natureza. Shakespeare sublinha que a existência humana pertence à mesma ordem de realidade que a do crescimento das plantas:

[...] Vejo que os homens, como as plantas, aumentam, Alentados e vigiados pelo mesmíssimo céu [...]

(soneto 15)

Pensar na pessoa amada refresca o amante, do mesmo modo que a chuva refresca a terra:

Como alimento para a vida és tu para meus pensamentos, Ou como doces águas para o chão da terra [...]

(soneto 75)

M as a natureza também se revela na violência com que visita os corpos que envelhecem. Os sonetos introdutórios em particular - mas também outros - tratam da possibili­ dade de o amante, assim como as folhas do outono, estar condenado a murchar e a cair:

Aquela altura do ano em que em mim verás

Que as folhas amarelas, ou nenhumas, ou poucas se seguram [...]

(soneto 72)

Nem a pessoa amada está segura. O amante sabe que a natureza não poupará nenhum, mesmo que esteja no pico da perfeição terrena:

Quando vejo despidas de folhas as altas árvores, Que do calor haviam abrigado o rebanho, E a estival erva colhida em ramadas

De esquife levadas, barba branca hirsuta: Sobre tua beleza me pergunto [...] (soneto 12)

Uma interpretação biográfica plausível tem referido es­ ses versos ao Conde de Southampton, conhecido por sua bela aparência e por declarar que nunca se casaria. Ao lem­ brar o caráter fugaz da beleza física, Shakespeare pode ter pretendido alertar os jovens para a importância de fazer um casamento legítimo e de transmitir aos descendentes suas radiantes qualidades. Esse tipo de especulação nunca produzirá mais do que hipóteses. M as o fato de os sonetos shakespearianos vez por outra - e contrariamente a toda descrença - levantarem tais conjecturas confirma a vida que corre dentro deles.

Das associações comparativamente gerais com o ciclo das estações do ano, os sinais da passagem do tempo des- locam-se para o corpo da pessoa amada, e o ambiente se intensifica:

O vidro te exibirá o desgaste da beleza, Teus ponteiros como gastam precioso tempo, Vagas folhas vão se imprimir em teu pensamento, E deste livro este tanto poderás provar:

As rugas que com verdade o vidro te dirá De túmulos falantes memoria te darão [...] (soneto 77)

A partir das rugas do rosto de quem se ama, surgem os traços primeiros de um mais grave declínio. N o nível se­ guinte de significação, as cicatrizes vincam o semblante:

Assim é seu rosto, o mapa dos dias desgastados, Quando vivia a beleza e hoje morre, como as flores [...] (soneto 68)

N a complexidade da atmosfera e do ambiente do mun­ do nos sonetos de Shakespeare, nada é mais forte do que a imbricada e gradativa sensação do tempo que passa e que escapa; podemos olhar para trás e vê-lo, mas nenhu­ ma vontade, nenhum desejo ou sacrifício poderá alterar os seus ritmos.

Além das estrelas, das estações e do corpo que envelhe­ ce, o espaço é mais uma camada do mundo que rodeia os amantes. M as muitas vezes permanece como mero palco onde decorrem o movimento e a temporalidade:

Como as ondas que se alongam nos seixos da margem, Vão os minutos se alongando para o seu final.

(soneto 60)

Acima de tudo, o espaço que os poemas invocam sepa­ ra, uma e outra vez, o jovem radioso e amado do seu aman­ te que envelhece, e que só um salto - mental, pelo menos - poderia trazer à proximidade desejada.

Não importaria que meu pé estivesse Na mais distante terra, de ti apartado, Que o ágil pensamento salta terra e mar Assim que pensa onde quereria estar [...] (soneto 44)

Uma vez firmada a proximidade espacial, a presença fí­ sica dos corpos oferece o outro registro palpável do mun­ do, da atmosfera e do ambiente. A “ sociabilidade” , como pode se chamar esse nível, não é apenas - ou principalmen­ te - uma dimensão de intenções, de estratégias ou de opi­ niões nos sonetos de Shakespeare; dela não decorre nenhu­ ma “ comunicação” . Sobretudo, ela é percebida nas vozes das pessoas que habitam o entorno:

f...] Quando seus lúgubres hinos aquietavam a noite; Mas que essa música louca carrega cada ramo, E as delícias, trivializadas, perdem o bom prazer: Por isso, como ela a língua por vezes detenho, Que não pretendo, com meu canto, entorpecer. (soneto 102)

De qualquer maneira, a presença dos outros - e, tanto quanto percebemos, a presença do eu perante os outros - é sentida como desconforto e até, por vezes, como um estado de ameaça; quase nunca há uma virada positiva no decorrer dos acontecimentos, quase nunca há a experiência da satisfação:

Não é esse um uso de usura proibida

Se alegra os que pagam os juros de vontade [...] (soneto 6)

A mera presença da pessoa amada traz consigo a possi­ bilidade da ferida:

Teu roubo, gentil ladrão, eu te perdoo, Ainda que a ti roubes toda a minha pobreza; E, porém, sabe o amor ser o maior ladrão Quem tolera o mal de amor que a ferida do ódio conhecido [...]

(soneto 40)

Assim, o estado de satisfação na companhia do outro não é de todo impossível nos sonetos de Shakespeare. Acontece no momento em que a proximidade física do amado se junta à presença do amante. Então, se unem o respirar e a voz dos próprios poemas:

Como pode minha Musa querer inventar tema Enquanto tu vivas, que no verso te derramas [...] (soneto 38)

Também nos versos, creio, o “ respirar” não se limita a fornecer a metáfora da animação espiritual que se dá por intermédio do ser amado. É que o respirar, a voz e a energia viva oferecem aos sonetos toda uma presença física. Por isso, a unidade corpórea dos amantes é, em última análise, a matéria central do ambiente dos sonetos, que os envolve em tons e dimensões de várias camadas, até as estrelas. Como um ímã - a força mais íntima que regula o mundo -, o ser amado atrai para si os elementos do mundo:

Que substância é a tua, de que coisa és feito, Que milhões de estranhas sombras te servem [...] (soneto 53)

A alma do amante sente uma atração inexorável: Pobre alma, centro de minha terra pecadora, Que alimentas as forças rebeldes que te cercam [...] (soneto 146)

A vivacidade do mundo de Shakespeare, que tão profunda­ mente nos toca, também se deve à elaboração explícita de múltiplos contrastes entre formas heterossexuais e homosse­ xuais de erotismo. As convenções - pelo menos, as preferên­ cias - desse momento particular da história permitiam cele­ brar o fascínio sexual entre homens como a forma mais feliz e mais bela de intimidade. Claro que essa circunstância não re­ duzia a força da pura atração física entre homens e mulheres:

Dois amores tenho, de conforto e desespero, Os quais, tais dois espíritos, ainda me sugerem: O anjo bom é claro homem de intenções, O pior espírito mulher de ruins cores [...] (soneto 144)

Por essas razões, o soneto 20 apresenta as diferenças fí­ sicas (genitais) entre homens e mulheres como matéria de tal forma inferior à admiração entusiasmada entre pessoas do mesmo sexo que tais diferenças nem sequer provocam ciúme no amante, em relação às mulheres com quem seu amado mantém relações íntimas:

Rosto de mulher, pintado pela mão da natureza É o teu, mestre senhora de minha paixão; De mulher tens gentil coração, mas ignaro Da volubilidade que nas mulheres falsas se usa. [...]

Somando uma coisa, [a natureza] a mim nada somou: Mas, se para prazer das mulheres te tomou,

Seja meu o teu amor e o uso do teu amor tesouro delas. Apesar de tudo, também existem - em poemas onde se evoca o amor heterossexual - descrições maravilhosamente vívidas e, aos nossos olhos, surpreendentemente diretas de excitação sexual. Entre elas se inclui a seguinte alusão à ex­ trema sensibilidade da pele delicada das palmas das mãos:

Quantas vezes, minha música, quando tocas A abençoada madeira que a percussão ressoa Com teus doces dedos, quando, gentil, fazer vibrar A harmonia de cordas que o ouvido me confunde, Invejo as teclas que ágeis saltam,

Para beijar o terno interior das tuas mãos. (soneto 128)

Como em grande parte das antologias de canções e poe­ mas - especialmente do período medieval e do início da era moderna -, há correlações em demasia entre os 154 sone-

tos, tal como estão dispostos, para que desconsideremos de todo os sinais narrativos. Ao mesmo tempo, nunca chega a emergir uma historia coerente; nem a sequência existente permite traçar com clareza uma narrativa biográfica. N ão há dúvida de que os sonetos 127 a 152 se destinam a uma mulher, ao passo que os anteriores - claro que com algu­ mas nuances - são inspirados por uma pulsão homoerótica. A impressão global não é a de “ episodios” ou “ capítulos” , mas, antes, de uma unidade dinâmica de tons, polifónica e carregada de tensão. Essa fusão complexa é o ambiente característico dos sonetos de Shakespeare.

O som da voz que procura incorporar-se e a relevância das imagens poéticas não se conjugam num acordo de total complementaridade - e muito menos de estatismo. Antes, a realidade da poesia - não apenas dos poemas compostos por Shakespeare - desafia leitores e ouvintes: em cada mo­ mento, desde a primeira palavra, nosso enfoque tem de ir se alternando ininterruptamente entre sutilezas de sentido e nuances de som. Tal como sucede com a poesia em geral, encontramos um fenómeno que divide nossa atenção entre o conteúdo e a forma. Jam ais pode ocorrer uma correspon­ dência perfeita entre o tema e os sons da poesia, pois eles pertencem a ordens diferentes de realidade. A nossa aten­ ção poderá deter-se de um lado ou do outro, ou poderá oscilar entre os dois. O “ acordo” entre sentido e som - que a crítica de gerações anteriores tão prontamente invocava - não oferece um equilíbrio estável porque esses elementos não são conjugáveis dentro dos mesmos parênteses. M as não existe um enfoque “ correto” quando se lê poesia. Esse estado de coisas elementar pode ser facilmente exemplifica­ do. Os sonetos que apresentam um grau particularmente elevado de complexidade semântica ou jogos de palavras complicados são poemas a cujos conteúdos conseguimos

fazer justiça quando recusamos ser levados pelos ritmos que neles se oferecem. Isso vale, por exemplo, para o sone­ to 136, no qual Shakespeare embaralha os muitos sentidos do verbo “ querer” (will), por um lado, e, por outro, de “ Will” , a forma abreviada do seu próprio nome:

Will há de cumprir o tesouro de teu amor,

Em coisas de grande recebimento que fácil provaremos. Outro exemplo surge no soneto 145. Aqui, uma frase que começa no segundo verso só chega a uma conclusão definitiva - e, claro, surpreendente - na última linha:

“ Odeio” de “ ódio” ela atirou,

E dizendo “ não a ti” minha vida salvou.

Outras tantas vezes a questão assume forma claramente inversa - ou seja, se seguirmos bem de perto a prosódia, experimentaremos a impossibilidade de captar totalmente o complexo conteúdo semântico das palavras, na sua di­ mensão absoluta.

Acredito que a razão da dificuldade em apreciar o sone­ to 18 na sua totalidade seja a magia especial que reside na intensidade particular da harmonia oscilante e carregada de tensão - no sentido descrito acima. E não ajuda nada tentar isolar as componentes sintagmáticas com vistas à análise, ou para combiná-las com imagens ou sentidos par­ ticulares. N o soneto 18, todos os sentidos associados ao declínio da juventude e da beleza - ao qual o poema exige,

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 55-69)