N o sétimo ano dos nove que passei no liceu Siebold, em Würzburg, meu professor de inglês se chamava Emil Reu- ter. Era mais conhecido por ser o que as pessoas chamam de “ uma figura” do que por seu estilo intelectual ou por suas ambições acadêmicas fora da sala de aula (que muitos professores, à época, alimentavam). O inconfundível sota que da Baixa-Francônia, quando falava inglês, era lendá rio. M uitas vezes - e com gosto - revelava essas cadências quando recitava os clássicos. Foi com Emil Reuter que le mos e discutimos Canterville Ghost, de Oscar Wilde, pala vra a palavra - tão lentamente que, ainda hoje, passados mais de quarenta anos, consigo recitar algumas passagens de cor. Que eu me lembre, só recitou numa aula, uma úni ca vez, o maravilhoso soneto 18, de Shakespeare, cujos ca torze versos (iniciando com “ Poderei comparar-te a um dia de verão?” ) posso reproduzir agora mesmo. O que o “Ve lho Emil” , como o chamávamos, dissesse sobre as obras geralmente não era posto em questão: os sonetos de Shakespeare têm estrutura diferente da dos sonetos de Pe- trarca (vale revelar que nenhum de nós tinha, até então, lido Petrarca); na Inglaterra, os “ dias de verão” são bran dos, isto é, menos quentes do que na Alemanha (para não falar da Itália ou da costa do Adriático); o Velho Emil teria rechaçado - se tivesse chegado a ouvir - o comentário de que, na lírica shakespeariana, mais frequentemente há um amante dirigindo-se a outro homem.
Apesar de tudo isso, dessa aula única, muito mais ficou na minha memória do que apenas divertimento anedótico. Des de então - e mesmo sem reviver o sotaque francônio - me faz particularmente feliz a lembrança do soneto 18. Nesses mo mentos, torço para, num longínquo ponto qualquer do futu ro, ter mais tempo para me dedicar aos 150 poemas de Shakespeare. M as me pergunto: o que, precisamente, perma neceu comigo por todos esses anos - não obstante o sotaque de Emil Reuter - como se fosse a promessa de algo que eu não conseguia nomear? Em outras palavras, ligeiramente di ferentes: o que, do vigor e da beleza desse soneto, me tocou tão fundo - quando eu tinha meus dezesseis, dezessete anos - que permaneceu comigo, tão vincado quanto a pequena cicatriz da minha mão esquerda, que ganhei de um acidente de bicicleta? A cicatriz me recorda o prazer de andar de bici cleta, veloz ao vento (mas também os ocasionais resultados menos aprazíveis dessa atividade). “William Shakespeare” de modo nenhum é mais uma invenção minha do que a figu ra - as ideias e os sentimentos associados com esse nome - que hoje usamos para vivenciar e compreender o que o gran de Harold Bloom (dando particular atenção às peças de teatro do Bardo) chamou, tout court, de “ o humano” . Bloom declarou que Shakespeare é o permanente e inevitável con temporâneo da nossa modernidade. M as talvez sua grandio sa afirmação não tenha ido suficientemente longe.
Seja como for, estou certo de que o que me fascina em Shakespeare, nas peças e mais ainda nos seus sonetos, é a diferença histórica que apresentam. Parece que se concen traram em - e absorveram - todo um mundo: o mundo ruidoso, sujo, terno e perigoso da Londres do final do sécu lo XVI. Hoje, aparentemente, dão-nos a certeza de que, por breves instantes, podemos mergulhar nesse tempo, em espí rito e também em corpo. Quem quer que recite os sonetos
de Shakespeare - ou encene suas peças - empresta presença física às palavras, às frases, aos ritmos do seu tempo, evo cando um mundo desaparecido. N ão se trata de “ recordar” - como prontamente diríamos mas de “ fazer-presente” . Ao serem evocadas para uma nova vida, as palavras tocam os corpos dos ouvintes a partir do exterior; ao mesmo tem po, elas - como as imagens e os sentidos que transmitem - nos afetam “ como um toque de dentro” (como escreveu Toni Morrison com tanta eloquência).
Juntos, esses dois aspectos - o som “ exterior” das pala vras e a força que contêm no seu interior - conseguem trazer o mundo de Shakespeare para o presente. A atmosfera é dife rente daquela que nos é familiar. Por essa razão é tão ex traordinário que ela nos tenha tocado, alunos numa sala de aula em Würzburg. Por princípio, textos e artefatos absor vem a atmosfera de seus tempos. Porém, quer em termos es téticos, quer em termos históricos, tudo depende da medida em que os textos operam essa absorção, e da intensidade com que os atos de leitura e de declamação tornam de novo pre sentes esses ambientes. Porque são sonetos de amor, os poe mas de Shakespeare - com suas imagens, suas figuras de retó rica, suas formas métricas - se inscrevem na tradição europeia do petrarquismo, que poliu o verso do trovador da Occitânia (o qual muitas vezes cria uma impressão de imediatez) até conseguir um repertório retoricamente perfeito de fórmulas elegantes - e, na sua maioria, impessoais e distantes. N as mãos de Shakespeare, essas fórmulas ganharam uma energia nova e diferente. Nunca saberemos ao certo quem terá inspi rado os poemas, nem sequer conseguiremos, a rigor, saber a quem pretendiam deleitar. Mesmo assim, não conseguimos deixar de ver o autor como um “gênio da identificação ima ginária” , nas palavras de Stephen Greenblatt. Ao que parece, enquanto escrevia suas obras, Shakespeare tinha mais uma
série de funções que lhe ocupavam a vida; ele conquistou ter reno para os seus textos. Ainda que possamos nem sempre dar por isso, não podemos - nem deveríamos - duvidar de que a atmosfera de um determinado presente pode tocar-nos de maneira direta; ao mesmo tempo, sentimos que esse mun do e a sua atmosfera nunca se materializarão por completo, e nunca assumirão, para nós, uma forma definitiva.
É impossível não ver como esses momentos do passado encontram necessariamente maior ou menor eco em “ pre sentes” específicos e em situações concretas da vida da pos teridade. O Renascimento mesmo viveu esses “ renascimen tos” ao longo dos séculos X IX e X X . Para conseguir ir além da lógica da história e da hermenêutica, as obras de Shakes peare têm o potencial - talvez sem igual na nossa cultura - de atingir densidade e imediatez nas maneiras como tornam presente a atmosfera do seu próprio mundo. Gostaria ago ra de mostrar como os sonetos de Shakespeare preservam essas atmosferas e esses ambientes em camadas diferentes. Esses níveis de significação interligam-se ao longo de múlti plas linhas, variadas e muito diferentes; no entanto, distin- guem-se uns dos outros e podem ser classificados como es feras de fenômenos distintos. Afetam simultaneamente leitor e ouvinte; mas, ao mesmo tempo - e em cada momen to alguns elementos ficam em suspenso enquanto outros se iniciam, como diferentes instrumentos numa orquestra.
Para Shakespeare, o Universo e as estrelas - com relevância quer astronômica, quer astrológica - constituem o horizon te cósmico onde ocorrem situações de amor:
Não das estrelas extraio meus juízos; E, porém, julgo, tenho astronomia,
Mas não para dizer da boa ou da má sorte !··.]
De teus olhos recolho o saber,
E, estrelas constantes, é neles que leio [...] (soneto 14)
Quase todas as passagens pertencentes a essa camada peri férica parecem, ao primeiro olhar - ao menos vistas da pers pectiva do nosso tempo -, traduzir as referências cósmicas como descrições metafóricas da pessoa que se ama. M as, his toricamente - ou seja, no contexto dos sonetos shakespearia- nos -, percebemos, em uma segunda leitura, que os amantes e seu amor não se fazem presentes apenas através das metáfo ras. Em vez disso, porque fazem parte do Universo, eles encar nam e materializam suas realidades, as concretas e as espiri tuais. Assim, a presença dinâmica de todo o Universo na companhia da pessoa amada não é só uma fórmula hiperbóli ca da retórica do erotismo (como seria o caso em versos de Petrarca); se levarmos a sério a linguagem - ou seja, num sen tido completamente físico ela revelará seu verdadeiro poder:
[...] Porque a nada mais chamo, nesse Universo largo, Tirando a ti, minha rosa; nele, és tu meu tudo [...] (soneto 109)
Se aqui se tratasse apenas de amplificação retórica con vencional, seria totalmente desnecessário enfatizar, como Shakespeare faz no segundo verso (“ nele, és tu meu tudo” ), que o amante não dá por mais ninguém - nem por mais nada - no “Universo largo” , senão pela pessoa amada. Shakes peare nunca chega a transformar completamente o mundo natural, ou as coisas nele, em metáforas para as questões hu manas e pessoais. Ao permitir-lhes reter a vitalidade da lite- ralidade e da concretude possíveis, ele as carrega de energia.
Podemos dizer o mesmo de outra camada do mundo de Shakespeare e da atmosfera nele contida: as estações do ano, o clima meteorológico e a influência que exercem so bre tudo o que é da natureza. Shakespeare sublinha que a existência humana pertence à mesma ordem de realidade que a do crescimento das plantas:
[...] Vejo que os homens, como as plantas, aumentam, Alentados e vigiados pelo mesmíssimo céu [...]
(soneto 15)
Pensar na pessoa amada refresca o amante, do mesmo modo que a chuva refresca a terra:
Como alimento para a vida és tu para meus pensamentos, Ou como doces águas para o chão da terra [...]
(soneto 75)
M as a natureza também se revela na violência com que visita os corpos que envelhecem. Os sonetos introdutórios em particular - mas também outros - tratam da possibili dade de o amante, assim como as folhas do outono, estar condenado a murchar e a cair:
Aquela altura do ano em que em mim verás
Que as folhas amarelas, ou nenhumas, ou poucas se seguram [...]
(soneto 72)
Nem a pessoa amada está segura. O amante sabe que a natureza não poupará nenhum, mesmo que esteja no pico da perfeição terrena:
Quando vejo despidas de folhas as altas árvores, Que do calor haviam abrigado o rebanho, E a estival erva colhida em ramadas
De esquife levadas, barba branca hirsuta: Sobre tua beleza me pergunto [...] (soneto 12)
Uma interpretação biográfica plausível tem referido es ses versos ao Conde de Southampton, conhecido por sua bela aparência e por declarar que nunca se casaria. Ao lem brar o caráter fugaz da beleza física, Shakespeare pode ter pretendido alertar os jovens para a importância de fazer um casamento legítimo e de transmitir aos descendentes suas radiantes qualidades. Esse tipo de especulação nunca produzirá mais do que hipóteses. M as o fato de os sonetos shakespearianos vez por outra - e contrariamente a toda descrença - levantarem tais conjecturas confirma a vida que corre dentro deles.
Das associações comparativamente gerais com o ciclo das estações do ano, os sinais da passagem do tempo des- locam-se para o corpo da pessoa amada, e o ambiente se intensifica:
O vidro te exibirá o desgaste da beleza, Teus ponteiros como gastam precioso tempo, Vagas folhas vão se imprimir em teu pensamento, E deste livro este tanto poderás provar:
As rugas que com verdade o vidro te dirá De túmulos falantes memoria te darão [...] (soneto 77)
A partir das rugas do rosto de quem se ama, surgem os traços primeiros de um mais grave declínio. N o nível se guinte de significação, as cicatrizes vincam o semblante:
Assim é seu rosto, o mapa dos dias desgastados, Quando vivia a beleza e hoje morre, como as flores [...] (soneto 68)
N a complexidade da atmosfera e do ambiente do mun do nos sonetos de Shakespeare, nada é mais forte do que a imbricada e gradativa sensação do tempo que passa e que escapa; podemos olhar para trás e vê-lo, mas nenhu ma vontade, nenhum desejo ou sacrifício poderá alterar os seus ritmos.
Além das estrelas, das estações e do corpo que envelhe ce, o espaço é mais uma camada do mundo que rodeia os amantes. M as muitas vezes permanece como mero palco onde decorrem o movimento e a temporalidade:
Como as ondas que se alongam nos seixos da margem, Vão os minutos se alongando para o seu final.
(soneto 60)
Acima de tudo, o espaço que os poemas invocam sepa ra, uma e outra vez, o jovem radioso e amado do seu aman te que envelhece, e que só um salto - mental, pelo menos - poderia trazer à proximidade desejada.
Não importaria que meu pé estivesse Na mais distante terra, de ti apartado, Que o ágil pensamento salta terra e mar Assim que pensa onde quereria estar [...] (soneto 44)
Uma vez firmada a proximidade espacial, a presença fí sica dos corpos oferece o outro registro palpável do mun do, da atmosfera e do ambiente. A “ sociabilidade” , como pode se chamar esse nível, não é apenas - ou principalmen te - uma dimensão de intenções, de estratégias ou de opi niões nos sonetos de Shakespeare; dela não decorre nenhu ma “ comunicação” . Sobretudo, ela é percebida nas vozes das pessoas que habitam o entorno:
f...] Quando seus lúgubres hinos aquietavam a noite; Mas que essa música louca carrega cada ramo, E as delícias, trivializadas, perdem o bom prazer: Por isso, como ela a língua por vezes detenho, Que não pretendo, com meu canto, entorpecer. (soneto 102)
De qualquer maneira, a presença dos outros - e, tanto quanto percebemos, a presença do eu perante os outros - é sentida como desconforto e até, por vezes, como um estado de ameaça; quase nunca há uma virada positiva no decorrer dos acontecimentos, quase nunca há a experiência da satisfação:
Não é esse um uso de usura proibida
Se alegra os que pagam os juros de vontade [...] (soneto 6)
A mera presença da pessoa amada traz consigo a possi bilidade da ferida:
Teu roubo, gentil ladrão, eu te perdoo, Ainda que a ti roubes toda a minha pobreza; E, porém, sabe o amor ser o maior ladrão Quem tolera o mal de amor que a ferida do ódio conhecido [...]
(soneto 40)
Assim, o estado de satisfação na companhia do outro não é de todo impossível nos sonetos de Shakespeare. Acontece no momento em que a proximidade física do amado se junta à presença do amante. Então, se unem o respirar e a voz dos próprios poemas:
Como pode minha Musa querer inventar tema Enquanto tu vivas, que no verso te derramas [...] (soneto 38)
Também nos versos, creio, o “ respirar” não se limita a fornecer a metáfora da animação espiritual que se dá por intermédio do ser amado. É que o respirar, a voz e a energia viva oferecem aos sonetos toda uma presença física. Por isso, a unidade corpórea dos amantes é, em última análise, a matéria central do ambiente dos sonetos, que os envolve em tons e dimensões de várias camadas, até as estrelas. Como um ímã - a força mais íntima que regula o mundo -, o ser amado atrai para si os elementos do mundo:
Que substância é a tua, de que coisa és feito, Que milhões de estranhas sombras te servem [...] (soneto 53)
A alma do amante sente uma atração inexorável: Pobre alma, centro de minha terra pecadora, Que alimentas as forças rebeldes que te cercam [...] (soneto 146)
A vivacidade do mundo de Shakespeare, que tão profunda mente nos toca, também se deve à elaboração explícita de múltiplos contrastes entre formas heterossexuais e homosse xuais de erotismo. As convenções - pelo menos, as preferên cias - desse momento particular da história permitiam cele brar o fascínio sexual entre homens como a forma mais feliz e mais bela de intimidade. Claro que essa circunstância não re duzia a força da pura atração física entre homens e mulheres:
Dois amores tenho, de conforto e desespero, Os quais, tais dois espíritos, ainda me sugerem: O anjo bom é claro homem de intenções, O pior espírito mulher de ruins cores [...] (soneto 144)
Por essas razões, o soneto 20 apresenta as diferenças fí sicas (genitais) entre homens e mulheres como matéria de tal forma inferior à admiração entusiasmada entre pessoas do mesmo sexo que tais diferenças nem sequer provocam ciúme no amante, em relação às mulheres com quem seu amado mantém relações íntimas:
Rosto de mulher, pintado pela mão da natureza É o teu, mestre senhora de minha paixão; De mulher tens gentil coração, mas ignaro Da volubilidade que nas mulheres falsas se usa. [...]
Somando uma coisa, [a natureza] a mim nada somou: Mas, se para prazer das mulheres te tomou,
Seja meu o teu amor e o uso do teu amor tesouro delas. Apesar de tudo, também existem - em poemas onde se evoca o amor heterossexual - descrições maravilhosamente vívidas e, aos nossos olhos, surpreendentemente diretas de excitação sexual. Entre elas se inclui a seguinte alusão à ex trema sensibilidade da pele delicada das palmas das mãos:
Quantas vezes, minha música, quando tocas A abençoada madeira que a percussão ressoa Com teus doces dedos, quando, gentil, fazer vibrar A harmonia de cordas que o ouvido me confunde, Invejo as teclas que ágeis saltam,
Para beijar o terno interior das tuas mãos. (soneto 128)
Como em grande parte das antologias de canções e poe mas - especialmente do período medieval e do início da era moderna -, há correlações em demasia entre os 154 sone-
tos, tal como estão dispostos, para que desconsideremos de todo os sinais narrativos. Ao mesmo tempo, nunca chega a emergir uma historia coerente; nem a sequência existente permite traçar com clareza uma narrativa biográfica. N ão há dúvida de que os sonetos 127 a 152 se destinam a uma mulher, ao passo que os anteriores - claro que com algu mas nuances - são inspirados por uma pulsão homoerótica. A impressão global não é a de “ episodios” ou “ capítulos” , mas, antes, de uma unidade dinâmica de tons, polifónica e carregada de tensão. Essa fusão complexa é o ambiente característico dos sonetos de Shakespeare.
O som da voz que procura incorporar-se e a relevância das imagens poéticas não se conjugam num acordo de total complementaridade - e muito menos de estatismo. Antes, a realidade da poesia - não apenas dos poemas compostos por Shakespeare - desafia leitores e ouvintes: em cada mo mento, desde a primeira palavra, nosso enfoque tem de ir se alternando ininterruptamente entre sutilezas de sentido e nuances de som. Tal como sucede com a poesia em geral, encontramos um fenómeno que divide nossa atenção entre o conteúdo e a forma. Jam ais pode ocorrer uma correspon dência perfeita entre o tema e os sons da poesia, pois eles pertencem a ordens diferentes de realidade. A nossa aten ção poderá deter-se de um lado ou do outro, ou poderá oscilar entre os dois. O “ acordo” entre sentido e som - que a crítica de gerações anteriores tão prontamente invocava - não oferece um equilíbrio estável porque esses elementos não são conjugáveis dentro dos mesmos parênteses. M as não existe um enfoque “ correto” quando se lê poesia. Esse estado de coisas elementar pode ser facilmente exemplifica do. Os sonetos que apresentam um grau particularmente elevado de complexidade semântica ou jogos de palavras complicados são poemas a cujos conteúdos conseguimos
fazer justiça quando recusamos ser levados pelos ritmos que neles se oferecem. Isso vale, por exemplo, para o sone to 136, no qual Shakespeare embaralha os muitos sentidos do verbo “ querer” (will), por um lado, e, por outro, de “ Will” , a forma abreviada do seu próprio nome:
Will há de cumprir o tesouro de teu amor,
Em coisas de grande recebimento que fácil provaremos. Outro exemplo surge no soneto 145. Aqui, uma frase que começa no segundo verso só chega a uma conclusão definitiva - e, claro, surpreendente - na última linha:
“ Odeio” de “ ódio” ela atirou,
E dizendo “ não a ti” minha vida salvou.
Outras tantas vezes a questão assume forma claramente inversa - ou seja, se seguirmos bem de perto a prosódia, experimentaremos a impossibilidade de captar totalmente o complexo conteúdo semântico das palavras, na sua di mensão absoluta.
Acredito que a razão da dificuldade em apreciar o sone to 18 na sua totalidade seja a magia especial que reside na intensidade particular da harmonia oscilante e carregada de tensão - no sentido descrito acima. E não ajuda nada tentar isolar as componentes sintagmáticas com vistas à análise, ou para combiná-las com imagens ou sentidos par ticulares. N o soneto 18, todos os sentidos associados ao declínio da juventude e da beleza - ao qual o poema exige,