“ Woodstock” , “ Liverpool” , “Jimi Hendrix” , “Janis Jo plin” , os “ Rolling Stones” - e talvez “ Berkeley” e “ Paris” - são nomes que evocam uma sensação de intensidade; comparando, tudo o que se lhes seguiu parece plano, entediante. Eles - ou a aura que possuem - fazem parte da minha geração. Reclamando esse passado, a minha geração se arrastou ao longo de mais de quatro décadas, desde o final dos anos 1960, condenada à eterna juventude. Conta mos histórias das noites quentes de verão, incapazes de dis tinguir entre sonho e realidade; regressamos ao que aqueles que nasceram mais tarde gostam de escutar, e que sempre nos agradou; a música e as vozes do passado eletrificam nossa pele e nos chamam para longe do presente. Nada é tão forte - nada incorpora esse mundo de maneira tão completa - quanto a voz de Janis Joplin em Me and Bobby
McGee. Ou será o que descobri que queria ser quando cres
cesse - algo que agora projeto no passado? Talvez nunca tenha havido um tempo em que Janis Joplin estivesse mais próxima do presente do que hoje - agora que a idade nos parece irreversível.
Os nomes e as palavras que ela canta pertencem a uma América cheia de charme e de paisagem: Baton Rouge, New Orleans, Kentucky, Salinas, Califórnia. Penso no olhar de Paul Simon diante do delta do M ississippi, que parece tão caloroso como “ uma guitarra nacional” (referência às guitarras fabricadas artesanalmente pela National String
Instrument Corporation, que cintilavam misteriosamente). Essas visões quase sempre revelavam imagens de desespera da felicidade. “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’.” Não é possível perder mais do que aquilo que não custa nada. Essas palavras parecem ter sido escri tas para a voz de Joplin, mas o seu autor não poderia saber que ela as haveria de cantar - a cantora achou aquela letra por mero acaso. M as quem quer que a ouça sabe que não poderia ter sido de outro modo. A voz soa como metal es curo, vibrante em todos os níveis, cheia de dor e de espe rança, tão firme que toda uma vida poderia se segurar nela. Suaviza-se quando a memória toca as costas da mão de Bobby McGee e o corpo dele, quieto e terno como a sua respiração, cálida no pescoço da cantora; depois, súbito, a voz fica tão só e tão cheia de felicidade perdida que desmo rona, para logo em seguida perder toda a definição e prati camente se fundir com a música. Soam os diferentes regis tros como se fossem os únicos possíveis - como se não houvesse outro jeito. Acomodam-se sobre o nosso cabelo, a nossa pele; se nos tocam, sabemos que aquilo era a nossa juventude - quando a vida estava só começando e num ins tante terminaria. Os sons dos instrumentos são triviais. Os especialistas concordam que Joplin nunca teve o acom pa nhamento musical que merecia. Vivia rodeada de músicos profissionais medianos, com pouco valor (como os que to cam em bandas de escola, ou no lado B dos discos para gramofone). A voz de Joplin tinha de transpor os instru mentos e sua batida uniforme, para trazê-los até si.
As palavras, a voz e os instrumentos geram algo cuja essência, semelhante a uma laboriosa narrativa, desafia o total entendimento. Nenhum ponto baixo é mais baixo do que a frase inicial: “ Busted flat” - vazio como um pneu furado - em Baton Rouge, capital do estado de Louisiana,
e cujo nome promete mais beleza do que o lugar contém; a cantora sente-se tão gasta quanto seus jeans, sob um céu carregado de nuvens que ameaçam chuva; tudo é apre sentado numa voz de calma poderosa, que atinge a todos. “ Esperando o trem.” Em vez do trem, de repente aparece Bobby e pede carona para os dois num caminhão. A chuva cai enquanto o veículo se transforma num mundo do lado de dentro dos limpadores de pára-brisa, que vão marcando o ritmo dos três viajantes até New Orleans. Eles cantam e tocam blues - de que haveriam de falar, afinal? Ela e Bobby vão de mãos dadas; a voz que os rodeia é quase tí mida, vem da ternura. Até New Orleans, esse é um mundo bom para quem não tem nada a perder e, por isso, nada a esperar: “ Era fácil, Senhor, nos sentirmos bem enquanto cantávamos blues.'” Agora a voz preenche o mundo que os viajantes partilham, como uma reza que não está com pletamente certa de si mesma - mas nada mais existe para acrescentar. “ Sentir-me bem bastava para mim / Bastava para mim e para o meu Bobby M cGee.” A voz de Joplin desliza de um instante breve de êxtase puro até o ponto em que se dissolve em sílabas indefinidas.
Aquilo que deve ter começado como coincidência sob a chuva de Louisiana, entre Baton Rouge e New Orleans, se transforma na extensão de uma jornada mítica, de costa a costa; a força da voz é transportada através das fronteiras, desde as minas de carvão do Kentucky até ao sol da Cali fórnia, na medida em que a cantora e Bobby, sempre sob céus instáveis, se transformam num casal sem segredos. Esse casal é a nossa juventude, abraçando-se bem e aquecendo- -se contra o resto do mundo: “Através de todos os climas, através de tudo o que fizemos / Isso, meu querido Bobby me protegeu do frio do mundo.” Então a voz se altera e se transforma em dor, com a memória do que acabou por
acontecer entre Los Angeles e São Francisco: “ Um dia, perto de Salinas, meu Deus, deixei-o ir / Ele anda buscando o tal lar, espero que encontre.”
Bobby deve ter desaparecido tão subitamente como apa receu em Baton Rouge - na maldição de ansiar por um ver dadeiro lar. Ou talvez tenha morrido numa trip de droga, procurando a calma e o sossego lá em cima, nas nuvens. Talvez tenha tentado escapar da eterna liberdade de ser livre para seguir sempre em frente. Joplin conheceu também esse sonho e não se queixa disso: “ espero que encontre” . M as ela perdeu para sempre a liberdade de uma existência que não tem nada a perder - e essa liberdade se perdeu muito tempo antes. Hoje, ela trocaria todos os dias do futuro por um dia daquele passado, fugaz e feliz: “ Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem / Abraçando o cor po de Bobby junto do meu.” Esta é a tragédia que ameaça todo amor e toda felicidade - a tragédia de procurar a feli cidade em primeiro lugar - até mesmo a tragédia de acredi tar que a felicidade existe. Quando se possui, a felicidade destrói a grande liberdade daqueles que nada têm a perder. A felicidade nos toma vulneráveis. Por isso nunca houve voz mais suave, mais aberta, mais sedutora, ou mais delicada. “ Abraçando o corpo de Bobby junto do meu.” E nunca houve voz mais desesperada, pois seus braços estão vazios, mesmo enquanto ela continua a cantar.
Quando Bobby desaparece em Salinas, ela recupera a li berdade dos que não têm nada a perder. N o entanto, a memó ria transforma a liberdade reconquistada numa perda eterna. A voz ganha um tom cortante, para depois revelar uma irre sistível doçura. Por fim, declina-se em complexo sofrimento:
Liberdade é só outra palavra para “não ter nada a perder” Nada, e foi isso que Bobby me deixou, yeah
Mas sentir-me bem era fácil, Senhor, quando cantávamos
blues
Hei, sentir-me bem era o bastante para mim, hmm-mm O bastante para mim e para Bobby McGee.
A voz segue a par com a música, incapaz de mais palavras. No presente, a cantora sonha com o passado; é como se esti vesse numa terceira viagem - depois da que a levou de Baton Rouge a New Orleans, e da outra, entre o Kentucky e a Cali fórnia. Nessa última viagem, o nome de Bobby é invocado e ganha forma e substância, como uma canção que surgisse de diferentes sons. Só uma vez mais a voz poderá agarrar-se a mais do que um nome; só uma vez mais a voz encontrará palavras para transformar a cantora na mulher, na viúva de Bobby; só uma vez mais ela cantará - como se tropeçasse no futuro - as palavras que dão forma à sua perda:
Senhor, chamava-o meu amante, chamava-o meu homem Disse, chamei-o meu amante o melhor que pude, venha E..., e..., Bobby, oh, e Bobby McGee, yeah...
Segue-se um minuto completo de um cenário musical típico dos tempos de Joplin. Ao longe, ouve-se a voz dela uma ou duas vezes mais, antes de, no final - como que dizendo adeus e lançando um feitiço ao mesmo tempo -, ela entregar o corpo ao nome dele, antes de o tornar, uma última vez, presente.
Podemos ver que, mesmo sem voz e música, as palavras conservam suas qualidades literárias e históricas. No entan to, o drama da música e seu poder sobre os ouvintes depen dem muito menos de palavras e imagens do que podemos pensar. O drama de Me and Bobby McGee se desenvolve, acima de tudo, nas modulações e metamorfoses da voz de Joplin. Seu páthos está ao alcance de ouvintes que não en-
tendem inglês, pois a canção usa palavras como vultos; o sentido das palavras é secundário. As emoções, atmosferas e estados de espírito que uma voz tão poderosa convoca estão assegurados; qualquer um que tenha ouvido a música os identifica, mesmo na falta de conceitos que possam permitir entendê-los e dividi-los com outros de maneira descritiva.
Em princípio, o registro de vozes do passado - mais do que o registro de imagens - alcança o nosso corpo em con dições muito diferentes da forma como experimentamos sons ao vivo. Essa circunstância técnica pode explicar por que, logo depois de ter sido inventado, o gramofone foi associado com a morte, ou, mais precisamente, com a so brevivência da morte. A famosa marca “ His M aster’s Voi ce” exemplifica isso. O fenômeno foi mais claro durante a Primeira Guerra Mundial, quando soldados deixavam gra vações ligadas nos postos que haviam abandonado nas trincheiras. Da mesma maneira, o registro de canções e da voz de Joplin mantém vivo o Stimmung existencial da ju ventude que passou - algo que é condensado em dois versos de Me and Bobby McGee: “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’ ” e “Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem” .
M as o caso de Me and Bobby McGee e de Janis Joplin é singularmente dramático, não só pelo fato de Joplin ter es tado emocionalmente envolvida, durante anos, com Kris Kristofferson (que, diga-se de passagem, escreveu a canção para uma voz masculina, o que implica que o papel de Bobby McGee era originalmente feminino). Além do mais, a gravação com a voz de Joplin foi feita nos estúdios Sunset Sound, em Los Angeles, poucos dias antes de a cantora ser
encontrada morta, em 4 de outubro de 1970, no motel Landmark M otor; o seu Porsche, famoso pelas pinturas “ psicodélicas” , estava estacionado do lado de fora. Acredi ta-se que a causa da morte tenha sido uma overdose de heroína. Os amigos tinham razões para crer que o fornece dor de Joplin lhe passara uma droga excepcionalmente for te na semana anterior. Joplin tinha tatuado um coração pequenino no peito esquerdo. Como muitos outros artistas daquele tempo, Joplin determinara que seu corpo deveria ser cremado e as cinzas espalhadas no oceano Pacífico.
Quarenta anos depois, não consigo dizer se a sensação de “ não ter nada a perder” - ou mesmo “ querer não ter nada a perder” - me atingiu com toda a força tantos anos atrás. Talvez grande parte de nossa “ experiência geracional” tenha sido, de fato, uma adaptação superficial às convenções. Só hoje, quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis - algures entre nossos pais, que desaparecem, contra quem quisemos nos revoltar, e os mais jovens, que com pouco esforço nos ultrapassaram - , só agora consegui mos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses, que lembro como um breve e eterno verão. N a voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado. O fato de Me and Bobby McGee ter sido gravada tão próximo do momento da morte de Joplin confere a essa voz, assim como às atmosferas e aos ambien tes que ela evoca, uma autenticidade que nos agarra - uma autenticidade diante do rosto da morte iminente. Essa au tenticidade nos permite pressentir uma grande cicatriz nas costas antes bronzeadas da geração que nunca ficou adulta. Perdemos, para sempre, nosso encontro com Janis Joplin.