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A liberdade na voz de Janis Joplin

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 121-131)

“ Woodstock” , “ Liverpool” , “Jimi Hendrix” , “Janis Jo ­ plin” , os “ Rolling Stones” - e talvez “ Berkeley” e “ Paris” - são nomes que evocam uma sensação de intensidade; comparando, tudo o que se lhes seguiu parece plano, entediante. Eles - ou a aura que possuem - fazem parte da minha geração. Reclamando esse passado, a minha geração se arrastou ao longo de mais de quatro décadas, desde o final dos anos 1960, condenada à eterna juventude. Conta­ mos histórias das noites quentes de verão, incapazes de dis­ tinguir entre sonho e realidade; regressamos ao que aqueles que nasceram mais tarde gostam de escutar, e que sempre nos agradou; a música e as vozes do passado eletrificam nossa pele e nos chamam para longe do presente. Nada é tão forte - nada incorpora esse mundo de maneira tão completa - quanto a voz de Janis Joplin em Me and Bobby

McGee. Ou será o que descobri que queria ser quando cres­

cesse - algo que agora projeto no passado? Talvez nunca tenha havido um tempo em que Janis Joplin estivesse mais próxima do presente do que hoje - agora que a idade nos parece irreversível.

Os nomes e as palavras que ela canta pertencem a uma América cheia de charme e de paisagem: Baton Rouge, New Orleans, Kentucky, Salinas, Califórnia. Penso no olhar de Paul Simon diante do delta do M ississippi, que parece tão caloroso como “ uma guitarra nacional” (referência às guitarras fabricadas artesanalmente pela National String

Instrument Corporation, que cintilavam misteriosamente). Essas visões quase sempre revelavam imagens de desespera­ da felicidade. “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’.” Não é possível perder mais do que aquilo que não custa nada. Essas palavras parecem ter sido escri­ tas para a voz de Joplin, mas o seu autor não poderia saber que ela as haveria de cantar - a cantora achou aquela letra por mero acaso. M as quem quer que a ouça sabe que não poderia ter sido de outro modo. A voz soa como metal es­ curo, vibrante em todos os níveis, cheia de dor e de espe­ rança, tão firme que toda uma vida poderia se segurar nela. Suaviza-se quando a memória toca as costas da mão de Bobby McGee e o corpo dele, quieto e terno como a sua respiração, cálida no pescoço da cantora; depois, súbito, a voz fica tão só e tão cheia de felicidade perdida que desmo­ rona, para logo em seguida perder toda a definição e prati­ camente se fundir com a música. Soam os diferentes regis­ tros como se fossem os únicos possíveis - como se não houvesse outro jeito. Acomodam-se sobre o nosso cabelo, a nossa pele; se nos tocam, sabemos que aquilo era a nossa juventude - quando a vida estava só começando e num ins­ tante terminaria. Os sons dos instrumentos são triviais. Os especialistas concordam que Joplin nunca teve o acom pa­ nhamento musical que merecia. Vivia rodeada de músicos profissionais medianos, com pouco valor (como os que to­ cam em bandas de escola, ou no lado B dos discos para gramofone). A voz de Joplin tinha de transpor os instru­ mentos e sua batida uniforme, para trazê-los até si.

As palavras, a voz e os instrumentos geram algo cuja essência, semelhante a uma laboriosa narrativa, desafia o total entendimento. Nenhum ponto baixo é mais baixo do que a frase inicial: “ Busted flat” - vazio como um pneu furado - em Baton Rouge, capital do estado de Louisiana,

e cujo nome promete mais beleza do que o lugar contém; a cantora sente-se tão gasta quanto seus jeans, sob um céu carregado de nuvens que ameaçam chuva; tudo é apre­ sentado numa voz de calma poderosa, que atinge a todos. “ Esperando o trem.” Em vez do trem, de repente aparece Bobby e pede carona para os dois num caminhão. A chuva cai enquanto o veículo se transforma num mundo do lado de dentro dos limpadores de pára-brisa, que vão marcando o ritmo dos três viajantes até New Orleans. Eles cantam e tocam blues - de que haveriam de falar, afinal? Ela e Bobby vão de mãos dadas; a voz que os rodeia é quase tí­ mida, vem da ternura. Até New Orleans, esse é um mundo bom para quem não tem nada a perder e, por isso, nada a esperar: “ Era fácil, Senhor, nos sentirmos bem enquanto cantávamos blues.'” Agora a voz preenche o mundo que os viajantes partilham, como uma reza que não está com­ pletamente certa de si mesma - mas nada mais existe para acrescentar. “ Sentir-me bem bastava para mim / Bastava para mim e para o meu Bobby M cGee.” A voz de Joplin desliza de um instante breve de êxtase puro até o ponto em que se dissolve em sílabas indefinidas.

Aquilo que deve ter começado como coincidência sob a chuva de Louisiana, entre Baton Rouge e New Orleans, se transforma na extensão de uma jornada mítica, de costa a costa; a força da voz é transportada através das fronteiras, desde as minas de carvão do Kentucky até ao sol da Cali­ fórnia, na medida em que a cantora e Bobby, sempre sob céus instáveis, se transformam num casal sem segredos. Esse casal é a nossa juventude, abraçando-se bem e aquecendo- -se contra o resto do mundo: “Através de todos os climas, através de tudo o que fizemos / Isso, meu querido Bobby me protegeu do frio do mundo.” Então a voz se altera e se transforma em dor, com a memória do que acabou por

acontecer entre Los Angeles e São Francisco: “ Um dia, perto de Salinas, meu Deus, deixei-o ir / Ele anda buscando o tal lar, espero que encontre.”

Bobby deve ter desaparecido tão subitamente como apa­ receu em Baton Rouge - na maldição de ansiar por um ver­ dadeiro lar. Ou talvez tenha morrido numa trip de droga, procurando a calma e o sossego lá em cima, nas nuvens. Talvez tenha tentado escapar da eterna liberdade de ser livre para seguir sempre em frente. Joplin conheceu também esse sonho e não se queixa disso: “ espero que encontre” . M as ela perdeu para sempre a liberdade de uma existência que não tem nada a perder - e essa liberdade se perdeu muito tempo antes. Hoje, ela trocaria todos os dias do futuro por um dia daquele passado, fugaz e feliz: “ Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem / Abraçando o cor­ po de Bobby junto do meu.” Esta é a tragédia que ameaça todo amor e toda felicidade - a tragédia de procurar a feli­ cidade em primeiro lugar - até mesmo a tragédia de acredi­ tar que a felicidade existe. Quando se possui, a felicidade destrói a grande liberdade daqueles que nada têm a perder. A felicidade nos toma vulneráveis. Por isso nunca houve voz mais suave, mais aberta, mais sedutora, ou mais delicada. “ Abraçando o corpo de Bobby junto do meu.” E nunca houve voz mais desesperada, pois seus braços estão vazios, mesmo enquanto ela continua a cantar.

Quando Bobby desaparece em Salinas, ela recupera a li­ berdade dos que não têm nada a perder. N o entanto, a memó­ ria transforma a liberdade reconquistada numa perda eterna. A voz ganha um tom cortante, para depois revelar uma irre­ sistível doçura. Por fim, declina-se em complexo sofrimento:

Liberdade é só outra palavra para “não ter nada a perder” Nada, e foi isso que Bobby me deixou, yeah

Mas sentir-me bem era fácil, Senhor, quando cantávamos

blues

Hei, sentir-me bem era o bastante para mim, hmm-mm O bastante para mim e para Bobby McGee.

A voz segue a par com a música, incapaz de mais palavras. No presente, a cantora sonha com o passado; é como se esti­ vesse numa terceira viagem - depois da que a levou de Baton Rouge a New Orleans, e da outra, entre o Kentucky e a Cali­ fórnia. Nessa última viagem, o nome de Bobby é invocado e ganha forma e substância, como uma canção que surgisse de diferentes sons. Só uma vez mais a voz poderá agarrar-se a mais do que um nome; só uma vez mais a voz encontrará palavras para transformar a cantora na mulher, na viúva de Bobby; só uma vez mais ela cantará - como se tropeçasse no futuro - as palavras que dão forma à sua perda:

Senhor, chamava-o meu amante, chamava-o meu homem Disse, chamei-o meu amante o melhor que pude, venha E..., e..., Bobby, oh, e Bobby McGee, yeah...

Segue-se um minuto completo de um cenário musical típico dos tempos de Joplin. Ao longe, ouve-se a voz dela uma ou duas vezes mais, antes de, no final - como que dizendo adeus e lançando um feitiço ao mesmo tempo -, ela entregar o corpo ao nome dele, antes de o tornar, uma última vez, presente.

Podemos ver que, mesmo sem voz e música, as palavras conservam suas qualidades literárias e históricas. No entan­ to, o drama da música e seu poder sobre os ouvintes depen­ dem muito menos de palavras e imagens do que podemos pensar. O drama de Me and Bobby McGee se desenvolve, acima de tudo, nas modulações e metamorfoses da voz de Joplin. Seu páthos está ao alcance de ouvintes que não en-

tendem inglês, pois a canção usa palavras como vultos; o sentido das palavras é secundário. As emoções, atmosferas e estados de espírito que uma voz tão poderosa convoca estão assegurados; qualquer um que tenha ouvido a música os identifica, mesmo na falta de conceitos que possam permitir entendê-los e dividi-los com outros de maneira descritiva.

Em princípio, o registro de vozes do passado - mais do que o registro de imagens - alcança o nosso corpo em con­ dições muito diferentes da forma como experimentamos sons ao vivo. Essa circunstância técnica pode explicar por que, logo depois de ter sido inventado, o gramofone foi associado com a morte, ou, mais precisamente, com a so­ brevivência da morte. A famosa marca “ His M aster’s Voi­ ce” exemplifica isso. O fenômeno foi mais claro durante a Primeira Guerra Mundial, quando soldados deixavam gra­ vações ligadas nos postos que haviam abandonado nas trincheiras. Da mesma maneira, o registro de canções e da voz de Joplin mantém vivo o Stimmung existencial da ju­ ventude que passou - algo que é condensado em dois versos de Me and Bobby McGee: “ Liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder’ ” e “Trocaria todos os meus amanhãs por apenas um simples ontem” .

M as o caso de Me and Bobby McGee e de Janis Joplin é singularmente dramático, não só pelo fato de Joplin ter es­ tado emocionalmente envolvida, durante anos, com Kris Kristofferson (que, diga-se de passagem, escreveu a canção para uma voz masculina, o que implica que o papel de Bobby McGee era originalmente feminino). Além do mais, a gravação com a voz de Joplin foi feita nos estúdios Sunset Sound, em Los Angeles, poucos dias antes de a cantora ser

encontrada morta, em 4 de outubro de 1970, no motel Landmark M otor; o seu Porsche, famoso pelas pinturas “ psicodélicas” , estava estacionado do lado de fora. Acredi­ ta-se que a causa da morte tenha sido uma overdose de heroína. Os amigos tinham razões para crer que o fornece­ dor de Joplin lhe passara uma droga excepcionalmente for­ te na semana anterior. Joplin tinha tatuado um coração pequenino no peito esquerdo. Como muitos outros artistas daquele tempo, Joplin determinara que seu corpo deveria ser cremado e as cinzas espalhadas no oceano Pacífico.

Quarenta anos depois, não consigo dizer se a sensação de “ não ter nada a perder” - ou mesmo “ querer não ter nada a perder” - me atingiu com toda a força tantos anos atrás. Talvez grande parte de nossa “ experiência geracional” tenha sido, de fato, uma adaptação superficial às convenções. Só hoje, quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis - algures entre nossos pais, que desaparecem, contra quem quisemos nos revoltar, e os mais jovens, que com pouco esforço nos ultrapassaram - , só agora consegui­ mos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses, que lembro como um breve e eterno verão. N a voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado. O fato de Me and Bobby McGee ter sido gravada tão próximo do momento da morte de Joplin confere a essa voz, assim como às atmosferas e aos ambien­ tes que ela evoca, uma autenticidade que nos agarra - uma autenticidade diante do rosto da morte iminente. Essa au­ tenticidade nos permite pressentir uma grande cicatriz nas costas antes bronzeadas da geração que nunca ficou adulta. Perdemos, para sempre, nosso encontro com Janis Joplin.

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 121-131)