Desde meados do século passado, o conceito multifacetado - e fenômeno fugaz - de Stimmung tem ocupado uma posi ção tensa entre prognósticos filosófico-históricos contrários. Por volta de 1900, o historiador de arte Alois Riegl propôs a ideia de que os efeitos da atmosfera e do ambiente carac terizariam a arte dos tempos que então se aproximavam. Riegl chegou a essa antevisão observando que as Stimmungs-
mensch não letradas dos tempos modernos (ou seja, pessoas
guiadas pelo ambiente e pela emoção) apreciam os objetos do passado porque estes são velhos - ou, para dizê-lo com mais precisão: o que essas pessoas apreciam nos objetos do passado são as marcas do uso e do desgaste que ostentam, e que, neles, significa “como são as coisas” . Para Riegl, Stim
mung significava o sentido em que os fenômenos não rela
cionados entre si estavam, afinal, ligados - um sentido que, por seu lado, exprimia uma ânsia por evidências imediatas e por garantias teleológicas da ordem cósmica que faltavam na modernidade. Meio século depois, o filólogo romanista Leo Spitzer haveria de declarar - sob a rubrica poderosamente evocativa da “ desmusicalização do mundo” - que tal estru tura estava definitivamente perdida para a existência.
Contrariando Riegl, mas completamente na linha do seu contemporáneo Spitzer, os intelectuais e os escritores con cordaram em que chegara ao fim o tempo do Stimmung. Gottfried Benn observou, em “ Landsberger Fragment” [Fragmento de Landsberg] (1944):
Tudo aquilo que se pareça com Stimmung está definiti vamente terminado. Colunas de fumo subindo no ar e desaparecendo no azul infinito, pombos castanhos ele- vando-se, os últimos raios de sol a derramar-se pelas janelas - tudo é puro acaso, artificial.
Em aparente contradição, porém, a frase seguinte dizia: A existência é o ambiente que a move, que ela requer - dura, inflexível. [...] Existencial - a nova palavra já está conosco há alguns anos. Ela faz passar o peso do ego psicológico-casuístico para aquilo que é obscuro e está escondido, para a raiz. O individual perde atributos mas ganha peso, gravidade, urgência. Existencial - é o golpe final d» romance.
Como foi possível que o fascínio exercido pelo “ existen cial” negasse, por um lado, todo um clima e que, ao mes mo tempo, fosse ele mesmo um clima literário-cultural? É óbvio que Benn escolheu seus exemplos introdutórios (“ colunas de fum o” , “ azul” , “ raios de sol” ) para ilustrar uma concepção romântica de Stimmung - convencional mente representada por imagens meteorológicas -, a qual se dissolve em face da “ dura” demanda existencial por um mundo livre de ilusões. Porém, dissipar as ilusões - des cartar ambientes e atmosferas excessivamente emocionais - não implica que elas, per se, sejam impossíveis. Pelo con trário: na obra de Benn, o “ existencial” é um Stimmung que surge da resistência ao Stimmung.
Um movimento de estrutura análoga ocorre no final de A náusea, de Sartre, o qual, precisamente enquanto ro mance - e contrariando a afirmação de Gottfired Benn viria a afirmar-se como texto-chave do existencialismo do após-guerra. O herói, Antoine Roquentin, deseja asfixiar
no peito todos os sentimentos não autênticos. Ouvindo as notas que saem de um saxofone, ele percebe de súbito que esses sons são “ sofrimento em métrica” (souffrance en me
sure). Roquentin luta agora por viver em sintonia com “ o
sofrimento que se transformou em forma e métrica - im placável e sem autocomplacência, em estrita pureza” . M as essa resolução não o liberta das questões da atmosfera e do ambiente. N o final do romance, em vez da música que reconforta, um clima sombrio o rodeia:
Cai a noite. No primeiro andar do hotel Printania acen dem-se as luzes de duas janelas. Sobe o cheiro da madei ra úmida, vindo da construção na nova estação de trem: amanhã vai chover...
Mesmo a “ dura” decisão (Benn) de adotar uma atitude “ estrita” (Sartre) induz os ambientes; não estranha que im plique “ uma pálida inclinação” [fable Ungestimmtheit] (Heidegger). Foi também um desenvolvimento desse tipo que ocorreu com o movimento do desconstrucionismo, cujo estilo existencial - não obstante os protestos de suas fileiras em rarefação - se torna cada dia mais óbvio. Assim como os seguidores de Sartre e de Camus pretendiam admi tir a dureza de um mundo sem Deus, os desconstrucionistas fizeram uma afirmação “pós-metafísica” da existência, na qual a linguagem não teria a possibilidade (ou, no seu modo de falar, a ilusão) de referir-se à realia ou de possuir um sentido estável. Assim como aconteceu com o existencialis mo, a renúncia ativa do desconstrucionismo ao páthos transformou-se em cativeiro dentro de uma renúncia de p á
thos carregada de páthos. Tal como acontecera na acusação
existencialista da “ injustiça” de um mundo sem Deus, o ambiente patético de recusa transformou-se em melancolia pela perda da referência (ou da ilusão dela).
Como se fosse para capitalizar todos os aspectos da filo sofía de Stimmung de Heidegger, Jacques Derrida - na in trodução a D a gramatologia (1967), sua principal obra - descreveu o desconstrucionismo como urna conjuntura particular do passado e do futuro. Em termos do passado, o “ fim” da metafísica não chegara ainda, mas já se podia sentir a sua “ finalização” . Quanto ao futuro, Derrida afir mou que, por todo lado - mesmo que em “ traços” disper sos e isolados - , a “ gramatologia, enquanto ciência da es crita” , oferecia o romper com o domínio da palavra falada enquanto paradigma e garantía da lógica (o que correspon dia, para ele, á época da referência ilusoria e do sentido - isto é, do “ fonologocentrismo” ). O motivo messiânico das promessas que seriam resgatadas “ no futuro” era recorren- te como gesto central na escrita de Derrida, até o fim.
Então, tal como o existencialismo, o desconstrucionis mo começou por fazer afirmações de que acabaria com as aparências ilusorias. Esse gesto não era dirigido a ideias transcendentais, mas contra ilusões supostamente logocên- trico-metafísicas relacionadas com a função da linguagem. À semelhança dos heróis da literatura existencialista, os des- construcionistas congratulavam-se mutuamente pelo rigor ascético com que cumpriam sua missão. M ais ainda do que o próprio Derrida, seu amigo, o acadêmico literário Paul de M an era aclamado por suas análises retóricas “ entediantes” e “ monótonas” . Ainda que “ tecnicamente corretas e irrefu táveis” , elas “ jamais continham surpresas” , mas demons travam, vez por outra, que a crença na referência linguística à realia era uma ilusão. Essa austeridade programática - de então como de agora - desperta infalivelmente o desejo por aquilo que rejeita. Tal lógica elementar de compensação é explicitada nos escritos de Christopher Norris, um exegeta particularmente entusiasta - ainda que nem sempre
filosoficamente convincente - do desconstrucionismo. Após verbalizar o seu agrado pelo modo como Derrida confundira todos os pressupostos epistemológicos do pensamento ocidental, Norris tranquilizava os leitores afirmando que o desconstrucionismo, de fato, permitia uma “ forma de conhecimento sui generis” .
N o fim das contas, essa formulação exemplifica o desejo de ordem entre os adeptos de Derrida - trata-se simples mente de um tipo de ordem diferente daquele que é permi tido pela tradição. A palavra “ escrita” em particular pos sui, entre os discípulos de Derrida, uma aura de promessa. Termos-chave como “ différence” e “ suplementaridade” - palavras que, na ocasião, era proibido definir - sugeriam correntes de movimento profundo, na linguagem e nos tex tos, que poderiam ser usadas contra quem estivesse de fora, sem necessidade de prova. Os mais fervorosos entusiastas de Derrida pretendiam vê-lo pura e simplesmente como um profeta. Algumas fotos que ainda estão em circulação reve lam um filósofo jovem, de traços ascéticos, olhando à dis tância, como um visionário. N a última página de um livro de título notável - Orações e lágrimas de Jacques Derrida -, o filósofo americano John D. Caputo escreve:
Neste ponto da paixão e do não saber, da urgência e da indecisão, o dedo profético, que aponta à justiça, e o dedo do desconstrucionismo se tocam, como na pintura no teto de uma nova e judaica Capela Sistina, em que fosse apenas permitida essa imagem esculpida.
M as será que podemos realmente objetar contra o modo dinâmico como o pátbos ascético se transforma em ambien tes carregados de afeto - e até em ambientes de profecia? Certamente que não na literatura, onde - sob a capa da fic ção - precisamente esse tipo de metamorfose contribui para
o charme e o carisma dos heróis do existencialismo. Porém, no mundo acadêmico é de se supor que outras regras subsis tam, destinadas a evitar que os sentimentos e os ambientes triunfem sobre os argumentos. O estilo intelectual de Derri- da incluía pequenas violações, quase amistosas, do tabu aca dêmico. M as uma vez ele avaliou falsamente as consequên cias desses gestos, o que levou a uma perda de prestigio, da qual o desconstrucionismo jamais viria a se recuperar.
Em meados da década de 1980, depois da morte do crí tico, descobriu-se que Paul de M an tinha escrito para publi cações colaboracionistas na Bélgica sob ocupação alemã. Alguns desses artigos continham, de fato, elementos antis- semitas. N o auge da sua fama, Derrida defendeu seu amigo num texto de título bem evocativo: “ Como o som do mar profundo dentro de uma concha” . Primeiro, questionava - com o habitual ceticismo desconstrucionista - as afirma ções dos críticos de de Man. Haveria fatos suficientemente “ objetivos” sobre o passado do crítico que justificassem a acusação pública? Em seguida, a agressiva apologia adqui ria um tom autocomplacente e pesaroso:
Depois do período de tristeza e dor, acredito que o que nos sucedeu era duplamente necessário. [...] Te ria de acontecer, algum dia, precisamente em razão da influência merecida e crescente de um pensador sufi cientemente enigmático para que as pessoas quisessem saber mais - dele e sobre ele. [...] O legado de Paul de Man não está envenenado, ou pelo menos não mais do que estão os melhores legados, se não existe legado sem algum veneno. Recordo o nosso encontro, a amizade e a confiança em mim, que sempre mostrou, como um golpe de sorte em minha vida. Tenho quase certeza de que o mesmo se passa com muitos outros.
Vários leitores que estariam a favor de Derrida tomaram esse afastamento do ceticismo do Stimmung como um sinal de que ele estaria pronto para suspender, à vontade, a vali dade dos critérios da razão. O pátbos da autocomplacência ascética parecia ter-se transformado numa licença de au- toindulgência a favor de juízos lógica e moralmente arbi trários. O desconstrucionismo fazia ouvir os primeiros acordes da sua própria marcha fúnebre.
Agradecimentos
Este livro resultou de muitos climas e atmosferas. Gostaria de registrar minha gratidão àqueles que contribuíram para as melhores dessas atmosferas, para os melhores desses climas: Henning Ritter, que me pediu mais complexidade e insistia em dar às obras o orgulho do lugar; Michael Krüger, por não se contentar com pouco; Tatjana Michaelis, pelo rigor da precisão; Miguel Tamen, que sempre vê através de mim; Vittoria Borsò e Jan Soffner, cuja concordância se revelou tão aprazível; Heinrich Meier e Cari Friedrich, da Fundação Siemens, pelo tempo que me deram para contemplar; e Lau- ra, Christopher, Sara, Marco, Anke, e Ricky, a quem tudo isto é dedicado, porque não conseguem viver sem música.