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O peso da Veneza de Thomas Mann

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 95-107)

A tomar pelas suas notas de trabalho, Thomas Mann pa­ rece considerar Morte em Veneza - publicado em 1912 e que logo se tornaria uma obra cultuada por inúmeras ge­ rações de leitores - numa relação com o tema da “ tragédia da mestria artística” . Em 1901, então com 26 anos, Mann publicara Os Buddenbrook: decadência de uma família. Dez anos depois, o autor já se ocupava de repetir o mesmo sucesso. Mann também refletia sobre o estilo e as temáticas “ dignas” de um autor que havia obtido reações positivas da crítica e parecia corresponder às expectativas de grande número de leitores em todo o mundo; por isso, conforme acreditava, não poderia limitar-se a seguir as modas mais recentes entre os intelectuais e no mundo da literatura. N o ensaio “ Nostalgia e form a” , Georg Lukács sugeria um pon­ to de condensação para os debates sobre a “ tragédia da mestria artística” , tópico que então - cem anos atrás - go­ zava de alguma popularidade. Nesse texto, o jovem Lukács chamava atenção para a “ renovação intelectual” que Só­ crates experimentara já no fim da sua vida, mas extraía dali consequências sombrias para os autores de literatura: “ Aos poetas sempre será negada essa renovação. O objeto de seu desejo tem um peso próprio - a vida que quer ser comple­ tada. A renovação dos artistas sempre conduz à tragédia, pois uma forma simples deve unir o herói e seu destino.” Em termos biográficos, não se sabe se Mann conhecia essas palavras de Lukács; porém, é certo que o ensaio expressa

precisamente e de maneira muito concisa a situação que tinha diante de si. Com Morte em Veneza, a intuição tor­ nava-se um evento literário. O herói da obra, Gustav von Aschenbach, percebe a beleza de Tadzio, o efebo polonês, como evento de boa sorte e de inspiração. Isso pode ser entendido como a abertura inaugural de uma atmosfera de idealismo - uma resposta inicial positiva à questão de saber o que poderia seguir-se à mestria, depois de esta ter sido demonstrada. Essa seria - acreditava Mann - a abertura do protagonista ao poder da pura beleza. Porém, a queda de Aschenbach para um estado de pecado - o seu lapso em relação à ideia normativa - dá-se na medida em que Tadzio, o seu “ deus delicado” , se transforma num ídolo que, em última análise, vai rebaixando o seu admirador até que este não passe de um “ suado e cosméticamente rejuvenescido perseguidor de rapazes” .

O fato de Mann ter passado uma temporada em Veneza no verão de 1911, época em que registrou uma “ experiência de viagem pessoalmente lírica” , ocorrida quando encon­ trou um jovem polaco, tem interessado menos os comenta­ dores do que as suas reflexões filosóficas anteriores à pre­ paração da novela. Informações biográficas não eram - e não são - a matéria mais procurada entre os admiradores conhecedores de um autor que, tal como eles mesmos, reve­ la tamanha ambição e esforço para parecer conhecedor. A s­ sim, os críticos literários continuam ainda hoje a ler Morte

em Veneza antes como alegoria do tema da “ tragédia da

mestria artística” , e não - ou pelo menos não principal­ mente - como a história melancólica do fascínio que um homem envelhecido sente por um rapaz. Outra perspectiva, oferecida pela história da literatura, é de igual erudição: o motivo nietzschiano da “ morte-em-vida” como manifesto no conteúdo da novela. Tendo especialmente em conta a

admiração confessa de Mann pelo filósofo, não pode restar dúvida da presença desse motivo. Apesar disso, não estou particularmente preocupado em escolher entre temas filo­ sóficos (“ morte-em-vida” , por um lado, e a “ tragédia da mestria artística” , por outro). Prefiro perguntar-me se um leitor atento, que não esteja obcecado pelos efeitos (e pelas afetações) da erudição, não seria levado a uma terceira via de leitura - o tipo de interpretação que valoriza mais a visi­ ta de Mann a Veneza em 1911 do que o trabalho que fez sobre a sua autoimagem de escritor.

Para um leitor imparcial, Morte em Veneza apresen- ta-se acima de tudo como uma série de atmosferas e de ambientes. A experiência de entender o trabalho sob esse prisma não invalida, de modo nenhum, a possibilidade de também considerá-lo como documento de eventos e cir­ cunstâncias específicos na vida do autor enquanto estava escrevendo. M as, para nos concentrarmos nas atmosfe­ ras e nos ambientes, teremos mesmo que ir de encontro a um modo de leitura centrado no desenvolvimento da “ intriga” . Aliás, se entendermos que esse termo refere-se a acontecimentos que se sucedem entre as personagens,

Morte em Veneza não tem lá grande intriga. Aquilo que o

texto revela no nível da narrativa - especialmente depois da chegada de Aschenbach a Veneza - é a consciência, cada vez mais profunda no protagonista, da importância e da intensidade do seu encontro com Tadzio. Os personagens em seu redor não se alteram. Ao mesmo tempo, até esse processo - a crescente conscientização do amante que envelhece - é comunicado ao leitor mais pelas mudanças meteorológicas de Veneza, amplificadas pelas diferentes formas da percepção, do que por meio da autorreflexão. E sobretudo aí que se faz mais visível a grandeza da narrativa de Mann.

Atmosferas e ambientes, como vimos, são disposições e es­ tados de espírito que não estão sujeitos ao controle por par­ te do indivíduo que afetam. A linguagem do dia a dia, assim como a linguagem literária, associam-nos - de modo quase obsessivo - com as mudanças no clima meteorológico ou com a variação dos sons da música. Stimmung é a dimensão mais concreta - e, por isso mesmo, talvez a mais “ literária” - em que decorre a paixão de Aschenbach. A concordância complementar das descrições meteorológicas e das fases de amor pelas quais ele vai passando - que vão da admiração platônica à submissão absoluta (à distância, claro) - é tão habilmente engendrada - com tal mestria autoral - que o leitor quase não repara no improvável que essa convergên­ cia, de fato, é. Isso fica ainda mais patente na grandiosa adaptação que Luchino Visconti fez para o cinema. N o fil­ me, é um compositor e maestro, que faz lembrar Gustav Mahler, quem toma o lugar do escritor; dentro da “ lógica dos ambientes” , essa substituição não poderá ter sido ca­ sual, pois ela permite que a dimensão secundária da música intensifique a importância primária do clima atmosférico.

E claro que o que pode pensar um leitor não profissio­ nal é uma coisa, e o que torna apelativas - por vezes tam­ bém irresistíveis - essas leituras é outra. A formulação literária das atmosferas e dos climas, cuja estrutura nem precisamos reconhecer, possibilita sermos transportados, pela imaginação, até situações em que a sensação física se torna inseparável da constituição psíquica. Se o leitor é livre para embarcar numa tal cumplicidade com o texto - ou, em alternativa, para subordinar as atmosferas da obra à sua intriga vagamente desenhada -, os acadêmicos pesquisadores da literatura deveriam pensar em ter como objetivo uma abor­

dagem que se concentrasse no Stimmung. N o ensaio a que me referi no início deste capítulo (editado no ano anterior ao da publicação de Morte em Veneza), Lukács dava uma resposta impressionante à pergunta. E claro que - escreve ele - os au­ tores sempre se preocupam com a verdade. Porém, o escritor que verdadeiramente procure a verdade muitas vezes achará aquilo que não esperava mesmo encontrar - isto é, achará a vida. Neste sentido - o sentido da Lebensphilosophie [fi­ losofia de vida] do começo do século X X -, não produzire­ mos novas visões analíticas, nem apresentaremos novidades interpretativas, se seguirmos a sequência e a convergência do estado dos sentimentos e das condições meteorológicas no texto de Mann (estado e condições que constituem a própria narrativa). N a melhor das hipóteses, poderemos amplificar a impressão de completude que produzem - não efeitos de sa­ bedoria edificante e algo filosófica, mas a concretude intensa da experiência que a obra possibilita. Tal abordagem, porém, tende mais ao comentário textual do que à interpretação, pois se trata mais de liberar o potencial que a narrativa contém do que de revelar o sentido que subjaz a ela; esse potencial per­ mite que o leitor habite mundos de sensações - mundos que parecem entornos físicos.

Se incorporarmos algumas cenas que precedem a chegada de Aschenbach a Veneza (cerca de 1/3 do texto), a sequên­ cia das condições meteorológicas pode corresponder a cin­ co atos, como a estrutura do teatro clássico erudito. Além disso, o nosso encontro com o texto ocorre de modo “ rea­ lista” - quase no sentido das ciências naturais: no final da história, a paixão e a tragédia do herói ocorrem quando ele morre, vítima de uma epidemia de cólera. Logo no segundo

parágrafo, o texto apresenta uma descrição (quase elíptica, em termos sintáticos) do clima atmosférico típico de Muni­ que: aquilo que é conhecido como Föhn, ou vento seco. “ Era no começo de maio. Após semanas de frio e umidade, chegou por fim um verão enganador. Ainda que surgisse decorado apenas com algumas folhas, o Jardim Inglês esta­ va tão úmido quanto no meio de agosto.” Num dia como aquele, o encontro casual com um “ homem de aspecto es­ trangeiro” faz Aschenbach “ querer viajar” . Aschenbach anseia por um ambiente que ele vê como num sonho des­ perto, que o atinge (e a nós) como a concretização exótica do Föhn, sempre surpreendente no seu calor:

Contemplou um pântano tropical sob um céu pesado de úmido - molhado, luxuriante, impondo-se -, uma espécie de mata virgem, com ilhas e longas extensões de água lamacenta; via os troncos das palmeiras explodir em fartura, umas mais perto, outras mais distantes, de verdes de luxúria, que se erguiam de um chão gordo, que inchava de fabulosa floração; árvores estranhas, quase disformes, afogavam as raízes pelo ar abaixo, terra abaixo, em marés desiguais, de sombreadas ondu­ lações verdes; as raízes surgiam dos troncos e uniam-se com a água ou com a terra através do ar, formando arranjos que desorientavam; entre as plantas aquáticas, brancas como o leite e grandes como tigelas, espécies de pássaros com ombros salientes e bicos sem forma, pousados no chão salobro, olhavam para o lado, sem fazer qualquer movimento. [...] Durante um instante, viu o brilho fosforescente do olhar de um tigre à espera. O coração bateu-lhe, de horror e de expectativa.

Duas semanas depois, Aschenbach partiu para Trieste no trem noturno. Dali tomou o barco até Pola, para “ chegar a

uma ilha no Adriático que ficara famosa nos últimos anos” . Ali permanece só o tempo suficiente para perceber que “ não encontrara seu lugar predestinado” . Começa então o segundo ato. Aschenbach parte para Veneza; durante a via­ gem, o “ céu está cinzento e o vento é abafado” . “À chegada, céu e mar ainda estavam nublados, carregados; aqui e ali baixava uma chuva enevoada.” N a gôndola a caminho do hotel, “ encostando-se nos abandonados assentos de almofa­ d as” , sente “ o bafo morno do siroco” . No fim do seu pri­ meiro dia em Veneza, Aschenbach repara numa família de poloneses, sentados para jantar; o seu olhar detém-se num “ rapaz de cabelo comprido, de uns catorze anos” . E “ perce­ be, com espanto, que o jovem era de uma beleza perfeita” .

O terceiro ato encena toda a tensão do drama emergente do clima atmosférico e da paixão, como arco que leva de um leve mau humor até a decisão:

Nos dias seguintes, o tempo não melhorou. O vento soprava pelo lado da terra. Sob um céu carregado, o mar estava pesado e calmo, e parecia ter encolhido - enquanto o horizonte, desiludido, se adensava - tão longe da praia, que revelava as linhas das extensas du­ nas. Abrindo a janela do quarto, Aschenbach pensava que conseguia sentir o cheiro horrendo da lagoa. O de­ sânimo apoderou-se dele. Nesse instante, ponderou re­ gressar. Uma vez, muitos anos antes, depois de algumas semanas alegres, na primavera, um tempo assim tinha-o afetado de tal maneira que abandonara Veneza como um fugitivo. Estaria de volta esse mesmo desconforto febril - a pressão nas têmporas, as pálpebras pesadas? Alguns dias depois, Aschenbach informa à recepção que “ determinadas circunstâncias inesperadas obrigam-no a partir” . M as, a caminho do trem, sente “ o peito rasgar em

dois” . Respira a “ atmosfera da cidade, o odor levemente fétido do mar e do pântano, que o levara a partir, em golfa­ das profundas, suaves, de dor” . Aschenbach tinha se apai­ xonado havia já algum tempo, mas parecia-lhe que só a cidade possuía seu coração. N o momento derradeiro - as malas já a caminho de Como - decide permanecer em Ve­ neza. Quando chega de regresso ao hotel, o mar “ adquirira uma coloração verde pálida, o ar parecia mais rarefeito e limpo, a praia - as cabanas e os botes - com mais cor, ape­ sar de o céu parecer mais escuro” . Então, de novo o olhar de Aschenbach se detém em “ Tadzio, numa roupa de ba­ nho de linho riscado, com um laço vermelho, saindo do mar, caminhando pela praia e pelo calçadão” .

Mann inicia o quarto ato - breve interlúdio de felicidade para Aschenbach - com um pastiche. Tal como num ro­ mance rococó, o dia seguinte amanhece com sol e nele a paisagem e as figuras de um épico de Homero, retrabalha- das em tom caricatural:

Agora, dia após dia o deus de rosto de fogo nadava nu; por toda a extensão do céu, dirigia a sua quadriga de cavalos que cuspiam labaredas; seus cachos louros bri­ lhavam no vento tormentoso que vinha do leste. Sobre o rosto de sardas, que inchava, preguiçoso, assentava um brilho branco de seda. A areia resplandecia. Debai­ xo do firmamento prateado do Éter, as velas cor de fer­ rugem cresciam diante das cabanas da praia.

Aschenbach - que antes vivia “ para os augustos deveres, santos e graves serviços no altar do seu ser cotidiano” - permite que os seus sentidos se abram a um mundo de dias iluminados de sol. Deixa-se perder na “ aprazível” fragrân­ cia das plantas do jardim, no “ azul dos mares do sul” e, sobretudo, “ nos sons líquidos que se derretem” . N ada lhe

traz mais prazer do que a voz de Tadzio, que se transforma em pura melodia para o homem que não tem como enten­ der as palavras do jovem: “ O tom estrangeiro dava às pala­ vras do rapaz o caráter musical, um lascivo sol o banhava em esplendor pródigo, e a majestosa visão do mar distante servia de cenário à figura.” O amante “ ansiava por traba­ lhar na presença de Tadzio, por ter nas suas proporções um modelo, enquanto escrevia, [...] à vista do seu ídolo, com a música da sua voz embalando seus ouvidos” .

N a manhã seguinte, sob o céu radiante, Aschenbach en­ controu o jovem - “ sozinho” , caminhando do hotel para a praia. Aschenbach “ apressa o passo” , lê-se - para “ se apre­ sentar, alegre, ao rapaz, falar-lhe, ter o prazer de sua res­ posta, o seu olhar” . Então, o modo verbal altera-se:

Aproxima-se dele na passadeira, atrás das cabanas. Quer tocar-lhe na cabeça ou no ombro, talvez dizer-lhe uma frase curta, em francês. Mas sente o coração a pul­ sar na garganta. Talvez seja da agitação do passeio, mas está tão afogueado que não consegue evitar que a voz lhe trema. Hesita, tentando se acalmar. Súbito, o medo se apodera dele: medo de que estivesse seguindo o rapaz por muito tempo. Receia que ele tenha notado; aproxi- ma-se, mas passa ao lado, cabisbaixo.

Nesse ponto, a narrativa desliza, de volta ao pretérito imperfeito. Aschenbach sonha outra fantasia rococó, ven­ do deuses, deusas, querubins - toda uma série de “ lindas visões e flores nascendo, em nuvens de infância” . M as, de­ pois do sonho, o dia, que

começara com um jeito fogoso e festivo, erguia-se, total - e estranhamente - transformado no seu mito. De onde vinha esse bafo que descera nele tão suave, mas porten-

toso, como um suspirar vindo das alturas a afagar-lhe as têmporas e os ouvidos? Nuvenzinhas como plumas suspendiam-se, em grupos, no ar, quais rebanhos dos deuses na pastagem.

Após esse entusiasmo súbito, dá-se a transição para o “ peso da vida” , que constitui todo o quinto ato, concluin­ do com a partida de Tadzio, sob um céu perturbado pelo siroco, e a morte de Aschenbach, nas mãos do cólera. O “ cheiro doentio do mar e do pantano” - que o incitara a ficar e lhe abrira os sentidos - combina com a “ pestilência da cidade doentia” . É intensificado pelo “ odor dos germici­ das” e pelo “ doce, baço incenso” das oferendas dos cren­ tes, que lhe pareciam “ quase orientais” . As hesitantes ten­ tativas de Aschenbach de levar a sério os sinais do perigo mortal e da morte iminente se dissipam, velozes, até que, por fim, se torna claro para ele que nada o perturbaria mais do que quebrar o “ feitiço do sonho” que lhe “ mantém ca­ tivos a cabeça e os sentidos” . Os seus sentidos foram de tal modo despertos, e tão completamente tomaram conta de si o desejo e o contágio, que deixou de ser dono de si mesmo. Precisamente nesse momento

começou a soprar um vento tépido de trovoada. A chu­ va era intermitente, espaçada, mas o ar adensava-se e enchia-se de vapores decadentes. Vibravam ruídos, que batiam e se apressavam, contra seus ouvidos. Parecia que uma lúgubre corrida de espíritos do vento se desen­ rolava por baixo da maquiagem que cobria o rosto do homem febril.

Na manhã da sua morte, Aschenbach sente-se indispos­ to: “ lutava contra ataques de vertigem, físicos apenas em parte” . Percebe então que a família de Tadzio se prepara

para partir depois do almoço. Há um “ ar suspenso, outonal” sobre a praia. O amante observa uma vez mais o amado, que é derrotado numa luta com outro da sua idade. Aschenbach acaba por se entregar à fantasia de que o rapaz lhe “ sorri e acena” , e de que ele o segue. E seu último pensamento antes de morrer. “ Passaram-se alguns minutos antes de se aproxi­ marem as pessoas do homem, encolhido de lado na espre­ guiçadeira. Depois o levaram para o quarto. Nesse mesmo dia, o mundo estremeceu, respeitosamente, com a notícia da sua morte.” A morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida, mais do que a sua verdade.

Talvez alguns leitores achem essa acentuada convergência entre os sentimentos do protagonista e seu entorno meteo­ rológico, nos cinco atos de Morte em Veneza, obsessiva ou rebuscada. E, com certeza, perfeita demais para sequer ad­ mitir qualquer comparação com qualquer tipo de realidade. N o entanto, esse drama e sua estrutura correspondem à “ consciência romântico-musical do pensamento distante” , que Karl Heinz Bohrer, num debate sobre a lírica europeia dos dois últimos séculos, identificou como a marca da mo­ dernidade literária. Ele afirmava que a “ forma particular da consciência romântico-musical do pensamento é apreendida como uma linguagem de Stimmung” ·, sua incidência é “ ain­ da mais imediata do que os efeitos da consciência romântica da atmosfera e do ambiente” , nas obras dos escritores “ clás­ sicos” da modernidade. Nessa experiência de Stimmung, continua Bohrer, a sinestesia unilateral absorve “ a dupla natureza do sujeito, dividido em cabeça e coração” , através da combinação retórica de diferentes formas de percepção sensorial. Esse efeito de “ autoevidência musical” pertence

mais “ naturalmente” (por assim dizer) às potencialidades linguísticas da lírica do que à prosa. Seja como for, vimos o modo como Mann convoca, por meio de uma alteração nos tempos verbais da prosa, a impressão do “tempo parado” , tão típica da lírica moderna e pré-requisito estrutural para os efeitos da atmosfera e do ambiente que nela se geram. Além desse efeito temporal, a dimensão de Stimmung - pelo menos na prosa - parece incluir também a amplificação da impressão de que estamos fisicamente envolvidos num mun­ do material.

Numa variação da intuição de Bohrer, poderemos nos perguntar se a prosa de atmosfera e de ambiente de Mann - que vai muito além da “ tragédia da mestria artística”

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 95-107)