Em algumas gravuras setecentistas de cenas urbanas na França, a perfeita geometria dos prédios parece negar ao ser humano as suas dimensões. As figuras sempre surgem como perdidas no espaço resplandecente da razão monu mental - como se estivessem ali por acaso e fossem, de fato, totalmente dispensáveis. O centro da cena dessas gravuras é ocupado pelos objetos materiais, que sempre recebem espaço suficiente para atingir a sua dimensão completa. Onde isso acontece de um modo que se aproxi ma de uma atmosfera de euforia é nas pranchas - nos vo lumes de ilustrações que acompanham a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert.
É fácil imaginar o narrador na primeira pessoa de O so-
brinho de Rameau - que entra em cena referindo-se ao há
bito que tem de “ passear, lá pelas cinco da tarde, no Palais Royal” , “ [f]aça sol ou faça chuva” - como uma das figu ras marginais num conjunto de objetos daquele tipo. Em nossos dias, o Palais Royal é uma praça bastante sossegada no centro de Paris, atrás da Comédie Française. Quase não sofreu alterações desde que, há 240 anos, Diderot escreveu - em segredo, o que não era típico dele - o manuscrito de O sobrinho. Porém, antes da Revolução, enchia-se a praça de partidos política e economicamente ambiciosos, artistas, escritores e as mais belas mulheres de Paris. Era ali, a céu aberto, que todos se juntavam, ou nos cafés, ou nos recém- -inaugurados restaurantes (que antes não existiam).
Esse milieu fascina o narrador de Diderot, que, por se considerar um intelectual - ou, na linguagem da época, um filósofo -, tenta também sublinhar como são distantes deste mundo os seus pensamentos e movimentos: “ É a mim que veem, sempre sozinho, sonhando, sentado no banco de Argenson. [_| Abandono o espírito à sua libertinagem. [...] Se faz demasiado frio, ou se chove muito, acoito-me no Café de la Régence; ali me divirto, vendo jogarem xadrez.” É nesse Café de la Régence que o narrador encontra Jean- François Rameau, sobrinho do famoso compositor Jean- Philippe Rameau, um homem conhecido entre os parisienses como um “ original” - ou, em termos menos eufemísticos, um vagabundo da mais elevada estirpe. Seu temperamento é tão inconstante quanto o clima atmosférico. (Na epígrafe, de Horácio, Diderot invoca o deus romano das estações do ano e dos elementos.) Rameau era chamado de “gigante meio malfeito” e “ uma águia, de cabeça, tartaruga e bela lagosta, de pés” . O queixo protuberante era o emblema da sua filo sofia pessoal, centrada na comida e nos prazeres da mesa.
Rameau descreve-se a si mesmo com menos piedade do que nas descrições que faz de seus contemporâneos, ou as sim parece, e tem genuíno prazer em provocações extremas. Autointitula-se “ rematado vagabundo” , “ mediocridade mimada” , “ bajulador” , “ mentiroso” e “vigarista” . Acima de tudo, ele afirma repetidas vezes que é um pobre-diabo destituído de princípios. Tudo fará para “ beber bom vinho, encantar-se com pratos delicados, aninhar-se junto de belas mulheres e dormir em camas m acias” . Eis a filosofia de vida de Rameau, aquela que lhe permite ver a si mesmo como um sujeito pensador dos seus tempos. M ais ainda do que suas convicções e seus valores, o ritmo violento do seu discurso põe de lado - e atropela - as posições filantrópicas defendidas pelo filósofo narrador. Rameau exige toda a
atenção com a sua poderosa voz, ensurdecedora. Vai gri tando salvas de nomes e de verbos ao interlocutor; mesmo quando têm referentes específicos, soam irônicas as pala vras que profere (“ O soberano, o ministro, o financeiro, o magistrado, o soldado, o homem de letras, o advogado, o procurador, o comerciante, o banqueiro, o artesão, o mes tre de cantigas, o mestre de danças - tudo gente honesta” ). Rameau também joga com nomes que - principalmente para os defensores do Iluminismo - significam escândalo e descrédito. Sobretudo, ele frustra os esforços que o narra dor faz para ter um verdadeiro diálogo quando desvaloriza as perguntas daquele: “ O que fez você? - O mesmo que todos os outros: o bem, o mal, nada. Além disso, tive fome, comi quando se me apresentou a ocasião; depois de ter co mido, tive sede e algumas vezes bebi. Enquanto isso, cres cia-me a barba, e, porque cresceu, eu a fiz raspar.”
Estava certo Hegel, na Fenomenología do espírito, ao afirmar que Diderot quis desempenhar no diálogo ambos os papéis ao mesmo tempo - a “ consciência fragmentada” do sobrinho (“ ELE” ) e a “ consciência pacífica e honesta” do filósofo (“ EU” ) - , pois o Diderot da ficção, ao contrário do autor Diderot, pura e simplesmente não poderia “ dar tanto quanto recebe” . A ironia autoderrisória que o filóso fo consegue manter no começo (“ O espírito e a arte têm seus limites” ) se dissolve num relato sóbrio da situação: “ Confundiam-me o poder do espírito de Rameau e a sua depravação - a perversidade de seus sentimentos e a sua excepcional franqueza.” Ao mesmo tempo, o filósofo co meça a notar que se ofende menos com as convicções do interlocutor do que com o “ tom ” que ele usa - mas nem assim é capaz de distinguir completamente entre as pala vras que o atingem e o gélido cinismo que lhe espanta a consciência. Quando Rameau, surpreendentemente, conta
a história de um “ renegado” , um “ traidor” que abusou da confiança de um amigo judeu para o aterrorizar mais tarde com invenções sobre a Inquisição e acabar se apoderando da sua fortuna, o filósofo perde, finalmente, a calma: “ Não sei o que me causa mais horror: se a maldade de vosso re negado ou o tom em que me fala dele.”
N o começo do texto, a instabilidade do clima atmosfé rico funciona como emblema do temperamento de Rameau. Agora, cada vez mais o som da sua voz se transforma no meio pelo qual a sua disposição se expressa e se materializa como ambiente dominante. Rameau passa o tempo a can tarolar, ou a entoar peças musicais que parecem acompa nhar e glosar os tópicos da conversa. Tais vocalizações ser vem de ponte para uma explosão que o narrador descreve como a “ pantomima de Ram eau” . Como diríamos hoje, Rameau passa do modo digital para o modo analógico de comunicação: copia os sentidos com gestos físicos em vez de representá-los com palavras. “ Então, executou a panto mima. Ficou prostrado, de rosto colado ao chão; parecia que tinha entre as mãos o fundo de um chinelo; chorou, soluçou, dizia ‘sim, minha pequena rainha, prometo; nunca o teria’. Depois se levantou bruscamente e recuperou o tom sério e ponderado.” O sobrinho do grande compositor aca ba por interpretar todas as partes na orquestra e mimetiza até mesmo os movimentos do maestro. Faz isso até a exaus tão: “ O suor que descia pelas rugas de sua testa e ao longo do queixo se misturava ao pó dos seus cabelos, descia em regos, desenhava o topo de sua veste.” A essa altura, R a meau já enfeitiçou os atores e a audiência; ganhou a admi ração do filósofo, que quase sente orgulho dele: “ Não mereço suas honras” , assevera. Mesmo naquele momento, “ Ele” está mais do que uns passos à frente de “ Eu” . E assim Rameau desmorona - por um instante - em gestos de deses
perado abandono. Ele “ suspirava, soluçava, desolado, ba tendo com os punhos na cabeça” . Apenas os elementos so cialmente marginais, como ele, estão condenados a essas convulsões, lamenta-se Rameau - é que, ao contrário dos poderosos, a eles lhes é negada a verdadeira oportunidade de ver seus desejos satisfeitos.
Em O sobrinho de Rameau, o espaço habitualmente es tático da razão do século XVIII se derrama em atividade fre nética, ao ponto de se saturar. Foi claramente essa atmosfera que levou Goethe, em 1805, a reagir com tanto entusiasmo - depois de seu amigo Schiller ter obtido o manuscrito do arquivo de Catarina, a Grande, de São Petersburgo - , tra duzindo o texto (até então inédito e sem título) que em ale mão recebeu o nome de Rameaus Neffe. Diderot, escreveu Goethe, soube “ unificar os elementos mais heterogêneos da realidade num todo ideal” ; o autor era ímpar no que res peitava à “vivacidade, à energia, à imaginação, variação e encantamento” . N o século XIX, quando se pensava que o original estava perdido, a tradução de Goethe serviu de base às primeiras edições do texto de Diderot.
O diálogo entre as duas personagens termina tão abrup ta e surpreendentemente quanto se iniciara. De repente, Rameau se dá conta de que ficou tarde. Quase não tem tempo de se despedir e, deixando o filósofo sozinho e deso rientado, corre para a ópera. Ali, diz ainda Rameau, apres sado, pretende ouvir a música de Antoine Dauvergne (figu ra hoje esquecida). Se pensarmos em termos puramente cronológicos, poderia ser uma ópera de Mozart. Essa pos sibilidade, ainda que trivial, dirige o nosso olhar histórico - contra o sentido da convenção - para perceber incríveis afinidades. Em sua correspondência - que inclui as famosas cartas a “ Bãsle de Augsburg” - encontramos nada menos que o próprio Wolfgang Amadeus M ozart esforçando-se
para conseguir um estilo cujas hipérboles e imprecações es tejam no nível das torrentes verbais do Rameau ficcional. Da mesma maneira que o personagem de Diderot (e, presu me-se, o seu modelo histórico) se furtava a comparações com o tio famoso, M ozart sofria a memória da sua sensa cional fama durante a infância.
Sabemos hoje que os humilhantes problemas financei ros pelos quais M ozart passou tinham menos a ver com falta de sucesso ou de pagamentos do que com a inabili dade do compositor em manter o extravagante estilo de vida que ele e sua mulher, Constanze, levavam. Ainda as sim, não pertence M ozart a esse outro espaço - esse ou tro clima do “ Iluminismo” - que o sobrinho de Rameau, no texto de Diderot, tão galantemente encarna e assume? A música sensual de M ozart, assim como sua devoção aos prazeres mundanos, associa-se menos à geometria e à ar quitetura ultrarracional do que aos mundos pictóricos de um Francisco de Goya - especialmente à multiplicidade de formas e à total ambivalência de sentimentos dos seus
Caprichos, nos quais o “ sono da razão” (expressão que
igualmente se pode traduzir como o “ sonho da razão” ) engendra uma procissão de criaturas noturnas cujas asas de lã cobrem o adormecido filósofo. As obras de M ozart são também comparáveis a uma conhecida cena de O so
nho de d ’Alembert - outro diálogo de Diderot. Nele, o
matemático - amigo e colaborador do autor - sonha com a vida microscópica que existe numa gota de água, e o sonho é tão febril que ele ejacula. A exclamação de d’Alembert, nesse momento, deixa espantada sua amiga Mademoiselle de Lespinasse: “ Oh, vaidade de nossos pensamentos! Oh, pobreza da glória e de nossos trabalhos! Oh, miséria, a pequenez de nossas vistas! N ada existe de sólido, além de beber, comer, viver, amar e dormir.”
Diderot morreu em 31 de julho de 1784, num aparta mento que ocupara algumas semanas antes. Sua morada ficava na Rue Richelieu. Dois anos mais tarde seria cons truída a primeira das passagens cobertas de Paris, no Palais Royal, ainda de madeira. Muito rapidamente a região se encheu de lojas de luxo e de uma série de cafés e restauran tes. Em gravuras dos anos seguintes, essa Galerie de bois traz algum ruído à transparência e à harmonia austera que predominavam no espaço ao redor. Em 1827, um incêndio a destruiu, e a madeira foi substituída por metal e vidro. A atmosfera e o ambiente do capitalismo que hoje conhece mos - os altos e baixos das taxas de produção, os índices variáveis de confiança dos consumidores e, mais que tudo, as alterações do mercado financeiro - podem bem ter co meçado nesse outro mundo, do lado oposto da razão, onde habitava o sobrinho de Rameau.