Caspar David Friedrich nasceu em 1774 em Greiíswald, perto da igreja de São Nicolau; a casa onde veio ao mundo, construída próximo aos belos edifícios da universidade, ar deu em 1901. O pai de Friedrich fabricava sabão e velas; alguns anos antes, tinha vindo da povoação vizinha de Neubrandenburg para Greifswald. Como o seu concorren te mais próximo estava em Stralsund - cidade com poucos habitantes -, conseguiu prosperar. À época - e até 1815 -, Greifswald pertencia à Pomerânia Sueca. N ada houve ali de notável no final do século XVIII. Greifswald tinha cerca de 5 mil habitantes; as casas eram construídas em estilos variados, típicos do final da Idade M édia, e pouco se via do classicismo, tendência então em voga; cada vez menos estu dantes se matriculavam na universidade e menos navios procuravam atracar no seu porto.
A infância de Friedrich deve ter sido vivida por ele como um tempo de dolorosas perdas e separações. A mãe morreu em 1781, deixando sete filhos e um marido tão abalado pela sua morte, que nunca mais viria a se casar; naquele tempo isso nem sempre acontecia, mas os filhos e as filhas devem tê-lo compreendido. Três dos seus seis irmãos não chegaram à idade adulta. Um deles - Johann Christofer - afogou-se em 1787, ao tentar salvar o irmão de treze anos, Caspar David, que caíra na água quando andava de esqui. Sete anos mais tarde, Friedrich foi para Copenhague aprender a arte do desenho e da pintura, na Academia Real. Em 1798,
regressou a Greifswald, onde passou um ano; mas as cir cunstâncias cada vez mais o chamavam para Dresden. Foi ali, no seu ateliê, que criou quase todas as obras que conhe cemos hoje. Chegou a obter algum reconhecimento nacio nal; porém, enquanto viveu não teve a fama que o coloca entre os grandes artistas do seu tempo. Para Caspar, pintar era questão de autodisciplina e de “ trabalho consciente” .
As paisagens de suas telas são, sobretudo, as que ele re cordava da Pomerânia Ocidental, e remontavam com fre quência à sua região natal. N o verão de 1818, ele ficou mais tempo do que lhe era costume: aos 44 anos, o artista casara com Caroline Bommer, uma jovem de Dresden, que lhe daria três filhos. A famosa pintura dos penhascos de Rügen - uma obra-prima de luz - foi feita durante uma excursão ao longo dessas duas semanas; ela mostra, de forma muito evidente, Caroline e o marido em primeiro plano. Dezessete anos mais tarde, Friedrich sofreu um ataque cardíaco de que não se recuperou. Faceleceu em 7 de maio de 1840, em Dresden.
* X *
É bem sabido que muitas das telas de Friedrich mostram - quase todas em primeiro plano - pessoas que observam. Os historiadores da arte afirmam que isso é muito frequente, especialmente nas obras feitas a partir de 1815. Ao contrário de muitos pintores, músicos e escritores de seu tempo, Frie drich nunca teve a ambição de participar de debates filosó ficos contemporâneos (que hoje consideramos “ clássicos” ); essa participação não estaria de acordo com a forma de protestantismo que ele praticava e pela qual vivia. N o en tanto, essas figuras de observadores colocam o artista Frie drich e suas obras numa relação óbvia com a epistemologia da sua época. Aquilo que, há mais de quarenta anos, Mi-
Penhascos de giz em Rügen
chel Foucault identificou e descreveu em As palavras e as
coisas como a “ crise da representação” ocorreu no mesmo
momento histórico em que se deu a emergência e a institu cionalização de uma função que Niklas Luhmann chamara de “ observação de segunda ordem” . Um observador de se gunda ordem observa o mundo a ser observado; as figuras dos quadros de Friedrich tornam possível que, ao contem plá-los, nos “ vejamos vendo” . Isso, precisamente - obser varmo-nos no ato de observar o mundo -, é que parece ter-se tornado inevitável aos intelectuais do Ocidente a par tir de 1800. N ão sabemos exatamente o que terá levado a esse profundo realinhamento da relação entre a cultura e o
seu entorno material; podemos supor que terá tido algo a ver com uma progressiva diferenciação interna da socieda de burguesa, na qual se tornou cada vez mais difícil - e mesmo impossível - presumir que aqueles com os quais in teragimos veem o mundo da mesma maneira que nós.
A emergência da observação de segunda ordem - exem plificada pelas figuras nos quadros de Friedrich - dá o tom para a discussão filosófica, ao colocar dois problemas. Con trariamente à natureza e aos modos do racionalista, o sujeito “cartesiano” (cogito ergo sum) herdado dos séculos XVII e XVIII, para quem a capacidade do intelecto se baseia apenas na consciência, o observador de segunda ordem redescobre como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consciência, mas implica também os sentidos. Resulta, então, a questão - que está ainda por ser respondida - sobre o caráter preciso da relação entre experiência e percepção. O segundo problema aproximava-se mais das preocupações que o próprio Frie drich reconhecia. Trata-se do problema que surge sempre que ocorre ao observador autorreflexivo que a sua perspectiva - e a sua interpretação - do mundo e de tudo o que nele existe depende da posição particular que ele, observador, ocupa. Isso equivale a dizer que, tendo em conta o número poten cialmente ilimitado de perspectivas, para cada objeto pode existir uma série infinita de interpretações e de modos de en contro. Consequentemente - e isso se percebe de modo muito claro na nossa visão retrospectiva das primeiras décadas do século X IX -, surgiu algo como um horror vacui epistemoló gico: o medo (por mais rara que fosse a compreensão da ori gem ou da essência do fenômeno) de que, em face de um número potencialmente ilimitado de representações para cada objeto ou experiência, em última análise poderia não haver nenhum referente - nenhum índice material no mundo.
Mulher diante da aurora
Friedrich certamente conhecia este último problema e tentou solucioná-lo com as figuras dos seus observadores, que davam perspectivas “corretas” com suas visões do mundo devidamente focadas e ocupando posição central no espaço pictórico. É essa a impressão que tenho quando olho para o emocionante e muito colorido quadro Mulher
diante da aurora (1818). Lendo os relativamente parcos co
mentários de Friedrich sobre suas obras, vemos como era importante para esse artista - que trabalhava num estúdio - que a pintura, enquanto processo de ajustamento e de trazer-para-o-foco, permitisse um modo de obter a perspec tiva certa sobre o mundo. Friedrich descrevia isso em ter mos de “ alm a” e de “ harmonia” :
Deverei [...] repetir aquilo que já tantas vezes disse, e de tantas maneiras diferentes; a saber, que a arte não é - e não deveria ser - uma mera técnica, mesmo que muitos
pintores pareçam pensar assim. Antes, ela deveria ser a linguagem de nossos sentimentos e a disposição de nosso caráter - ou até a linguagem da devoção e da oração. [...] Os objetos não são importantes, pois eles não são nada fora do comum. As fabricações de um mestre artesão também não são importantes; o importante é exteriori zar aquilo que captou e emocionou a alma: puramente, profundamente, intimamente. [...] Talvez o artista deixe de estar em contato com aquilo que chamou sua atenção por estar bem considerado ou disposto de um modo in teligente porque ele, tal como o quadro, se terá dissolvi do num estado de pura harmonia. As sensações passa ram a ser a lei que o governa; o ambiente dele - sua elevação espiritual - não dará outros frutos. O homem crente reza dizendo nada - o Mais Alto o escuta, seja como for. É assim que pinta o artista imbuído de senti mento, e aqueles que estão imbuídos de sentimento o entendem e o reconhecem; até mesmo as pessoas relati vamente tolas conseguem pressentir o que ele quer dizer. Por estas palavras podemos perceber que não era tão claro para Friedrich que artistas como ele mantivessem uma rela ção adequada com as coisas-do-mundo. Daí advém que a harmonia tivesse se tornado o objeto do seu desejo. A situação incitava ao Stimmung - atmosfera e ambiente. Esse ideal emergiu na transição do século XVIII ao XIX, quando os grandes pensadores (Goethe e Kant, entre outros) buscavam a harmonia entre a existência e as coisas-do-mundo - uma relação “ adequada” que deixara de ser, por si só, evidente.
* * *
Friedrich e seus contemporâneos ansiavam por esses mo mentos de harmonia, pelos quais já não esperavam e muito
Monge junto ao mar
menos tinham por garantidos. Claro que isso não significa va que pretendessem agarrar-se aos momentos de harmonia em detrimento de tudo o mais. Heinrich von Kleist ficou impressionado com a tela Monge junto ao mar, de Frie drich, porque viu como essa obra apresentava a impossibi lidade de alguém se situar numa relação “ correta” com o mar. Em sua descrição do quadro (mais precisamente, em seu comentário sobre uma discussão entre Achim von Ar- nim e Clemens Brentano) fica claro que, na tela, a figura do observador permitia ao espectador do quadro, na sua posi ção de observação de segunda ordem, passar pela expe riência de uma relação muito tensa:
É glorioso contemplar um deserto ilimitado de água na solidão infinita da margem, sob um céu carregado e som brio. Fazemos isso sabendo que é o que procuramos, que teremos de sair dali, que aquilo é impossível, que falta ali tudo o que precisamos ter para viver; e, ainda assim, es-
cutamos a voz da vida no marulhar da maré, no soprar do vento, no movimento da nuvem, no solitário clamor das aves. Parte disso é a demanda que faz o coração - um “libertar-se” , se me permitem, infligido pela natureza. Isso não é possível acontecer num quadro; mas encontrei o que queria quando olhei para esse: uma demanda que meu coração realizava em busca daquele quadro, e a li bertação que ele me infligia. Assim, eu mesmo me trans formei no monge; o quadro tornou-se a duna.
A “ libertação” que o quadro - e a natureza - impõe ao observador está tão longe do conceito kantiano de belo quan to se possa imaginar. Kant falava de uma “forma de intencio nalidade de um objeto, na medida em que ele fosse percebido sem a representação de uma intenção” . Ao contrário: a des crição de Kleist tem o efeito de uma encenação do sublime, que Kant define como “ uma sensação de desprazer, resultan te da inadequação da imaginação na estimativa estética da magnitude para chegar à sua estimativa pela razão, e um pra zer, despertado simultaneamente, que resulta desse mesmo juízo sobre a inadequação de a maior das faculdades do sen tido estar em consonância com as ideias da razão, ao menos no que esse esforço de o conseguir é, para nós, uma lei” .
N ão deveríamos, portanto, tentar reduzir as paisagens de Friedrich à fórmula única da harmonia entre o homem e a natureza. Ao contrário, natureza e homem devem ser entendidos em termos de um espectro de perspectivas do observador, que vai, por um lado, da bela harmonia das figuras devidamente ajustadas até o desprazer sublime ex perimentado quando da libertação que ocorre entre a natu reza e o observador, por outro. As três figuras no primeiro plano do quadro Penhascos de giz em Rügen surgem-nos como cautelosas e um pouco intimidadas - se bem que não
Viajante sobre um mar de névoa
do modo dramaticamente isolado do Monge junto do mar. A jovem esposa do pintor está sentada, do lado esquerdo, numa incerteza graciosa e sem se atrever a debruçar-se mais. Do lado direito há um homem desconhecido que ba lança sobre uma raiz protuberante, quase pedindo para es corregar e cair. N o meio - com medo, mas ao mesmo tempo com curiosidade (de um jeito quase cômico), olhando para o abismo - está o próprio Friedrich, de joelhos no chão. Bem acima da luz cinza, o famoso Viajante sobre um mar
de névoa convida e desafia também o perigo.
Antes de meados do século X X , essas imagens do subli me nunca seriam associadas ao conceito de Stimmung, por
Campos perto de Greifswald
mais que hoje a associação nos pareça óbvia. Até aí, pensa- va-se ser indispensável uma componente de harmonia para que esta dimensão existisse, e a harmonia é incompatível com o sublime. Friedrich trabalhou com uma gama mui to vasta de Stimmungen, no sentido que o termo só mais tarde viria a adquirir; isto é, ele o fez de um modo que es tava à frente do pensamento e dos conceitos do seu tempo. Quando olhamos os quadros de Friedrich, os observadores que neles se apresentam nos abrem espaços para a imagi nação; podemos então experimentar mil e uma formas de contato físico.
Em contraste com o que é “ representado” nos textos e imagens de épocas anteriores - um nível de experiência que muitas vezes requer explicação e tradução para os termos do nosso presente -, os Stimmungen do passado podem nos atingir de modo direto e sem mediação, desde que estejamos
abertos a isso. Os Stimmungen conseguem, por assim dizer, ultrapassar as barreiras da interpretação hermenêutica. Se nos aproximarmos hoje da cidade natal de Friedrich, na es trada que vem do sul, haverá um ponto que corresponde rigorosamente à posição geométrica do observador que olha para o quadro Campos perto de Greifswald. Ali, em deter minado momento do dia, a luz do sol fere os nossos olhos precisamente do mesmo modo que, certa vez no começo do século X IX , terá ferido os de Caspar David Friedrich.