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A energia iconoclasta do surrealismo

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 131-161)

É difícil determinar se o “ surrealismo” , enquanto movimen­ to, terá atravessado fronteiras europeias. Justifica-se o ceti­ cismo, no caso, de saber se a Alemanha da década de 1920 teria tido um estilo correspondente ao conjunto de gestos culturais desenvolvidos e cultivados na França dessa época. Ou - para dizer com mais cautela, mais rigor e em termos menos densos - é certo que se podem encontrar na literatura e na arte alemã alguns elementos “ surrealistas” que estavam até agora mais ou menos escondidos, desde que, por razões heurísticas, recorramos aos conceitos resultantes do fenô­ meno francês. Em última instância, porém, uma pesquisa exaustiva deveria resultar em mais do que a descoberta de paralelos e de superfícies coextensivas entre as culturas fran­ cesa e alemã - um maior entendimento de suas profundas diferenças, que são, de fato, surpreendentes.

Minhas considerações têm subjacentes três pressupostos, completamente diferentes entre si. Eles servirão para de­ monstrar, acima de tudo, essa divergência. Primeiro, uma atitude fundamental de reserva em relação à hipótese de que - pelo menos nas culturas europeias - as formações de uma mesma época encontram-se em todos os contextos nacio­ nais. (Por exemplo, compreende-se melhor a literatura espa­ nhola se não se procurar nela um “ Iluminismo” setecentista totalmente articulado; do mesmo modo que compreende­ mos melhor a literatura alemã do começo da modernidade se não a considerarmos em termos do “ Renascimento” .)

N ão é desonra nenhuma para as letras alemãs afirmar que não possuem um “ surrealismo” próprio. Segundo, há uma observação de Walter Benjamin decisiva para o meu enten­ dimento deste tópico da história da literatura. Foi feita pelo filósofo em 1929 no ensaio “ Surrealismo: o último instantâ­ neo da intelligentsia europeia” . Benjamin declara que exis­ tia um canal de sinergia entre o surrealismo francês e os mo­ vimentos alemães da época. Terceiro - e sobretudo -, estou convencido de que um canal desse tipo explica-se melhor se recorrermos ao conceito de Stimmung, em vez de usarmos noções e expressões daquele tempo que tentam agregar cer­ tos objetivos programáticos e métodos artísticos (como se deu, por exemplo, no “ surrealismo” e no “ dadaísm o” ).

A maior parte das literaturas europeias do primeiro terço do século X X viram proliferar uma série de projetos pro­ gramáticos. “Vanguardas” , “ futurismo” , “ criacionismo” , “ dadaísm o” e “ surrealismo” designam aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Em face dessa explosão verbal, os his­ toriadores da literatura têm-se sentido obrigados, em gran­ de parte, a levar a sério todos os conceitos propostos pelos movimentos, assim como as particularidades que cada um reclamava; no mesmo intuito, os acadêmicos procuraram redescobrir as maneiras como essas noções eram suposta­ mente concretizadas pelas várias obras - como se a prática artística e literária tivesse aderido aos manifestos e panfletos típicos daquele período. Historicamente, é mais adequado e importante começar por descrever - e circunscrever - a efu­ são energética que deve ter animado o impulso programáti­ co nas culturas nacionais americanas e europeias na aurora do século X X ; depois, a tarefa será identificar pontos espe­

cíficos de ruptura. N ão pretendo me incluir entre os críticos de literatura da minha geração que vestiram Benjamin com a roupagem de “ visionário” . Apesar disso, valorizo o enten­ dimento de Benjamin, segundo o qual o surrealismo é uma fonte essencial de energia, com condições de surgimento que variam de acordo com o contexto nacional:

Os sabichões que até hoje ainda não conseguiram ir além das “ origens autênticas” do movimento - e que nada têm a dizer sobre isso a não ser que ali estava ou­ tra panelinha de literatos confundindo o digníssimo pú­ blico - são assim como uma reunião de especialistas junto de uma nascente, os quais, após longa delibera­ ção, concluem que aquele pequeno e insignificante ria­ cho jamais dará energia a turbinas. O observador ale­ mão não está na frente da corrente de água. [...] Está no vale. Ele consegue calcular as energias do movimento. [...] Ele [...] não tem justificação para considerar o mo­ vimento como a corrente “ artística” ou “poética” que parece, à superfície, ser.

A “ energia” partilhada - o clima europeu internacional - que operava nos movimentos literários e artísticos do co­ meço do século X X foi, sem dúvida, consequência de longo prazo de um complexo evento epistemológico que já ocor­ rera no início do século XIX. Em As palavras e as coisas, Michel Foucault caracterizou esse fenômeno como “ crise da representação” . Agora, para historiar, refiro-me de novo a ele como a “ emergência da observação de segunda or­ dem” - conceito originalmente cunhado por Niklas Luh- mann para um uso estritamente sistêmico. Com o início da filosofia do Iluminismo tardio, a experiência humana tor­

nou-se autorreflexiva. A meu ver, isso foi uma reação ao crescimento rápido do ceticismo quanto à capacidade que teriam nossos órgãos (no sentido mais amplo) de fornecer uma “ representação adequada” (seja qual for o sentido da expressão em contextos específicos) do mundo além da consciência humana. Podemos ver que a história da filoso­ fia ocidental dos últimos 250 anos enxerga a história da literatura e da arte ocidentais, desde o final do século XVIII até o começo do século X X , como uma série de confrontos com esse problema. A dimensão filosófica é o lado menos dramático do fenômeno: articula-se na topologia de uma distância crescente entre o “ sujeito” e o “ objeto” e conduz, uma e outra vez, a esforços para negar esse fosso, quer em termos cognitivos, quer em termos práticos - ou, pelo me­ nos, para reduzir os seus efeitos.

A literatura e a arte, por seu lado, confrontam o pro­ blema de maneiras que, desde meados do século X IX , têm frequentemente evoluído para sentimentos de frustração e tentativas passivo-agressivas de automarginalização (por exemplo, quando Baudelaire designa a si mesmo como irmão “ do leitor hipócrita” , no último verso do poema com que abre Flores do mal [1857]). Pouco depois de 1900 - primeiro na Europa Central e depois se espalhan­ do rapidamente por todas as culturas do Ocidente - , es­ ses sentimentos viram-se transform ados em gestos icono­ clastas. É como se os artistas e suas obras pretendessem dizer que já não estavam interessados na representação, nos seus métodos ou técnicas, pois a representação, de qualquer modo, não poderia ser perfeitamente verdadeira em relação à vida; que acabariam por não captar realida­ de alguma, senão uma realidade apenas parcial. Um mo- mento-chave nessa “ virada” em direção à representação fragmentada é o movimento D ada - acontecimento cultu-

ral que foi uma experiência europeia partilhada, anima­ da por figuras como o romeno Tristan Tzara, o alsaciano Jean Arp e o alemão Hugo Bali.

Num ensaio de 1913 sobre poesia moderna, Guillaume Apollinaire descreve a sua época a partir de três pontos de vista que se cruzam com a nossa análise histórica. Tam­ bém ele vê a energia que foi subitamente libertada como efeito de um processo iniciado no século XVIII, comum à herança europeia:

Se esse movimento, cujas origens podem ser identifica­ das já no século XVIII, parece limitado à França, é por­ que Paris era a capital da arte no século XIX. Porém, na verdade, o movimento não é francês, mas europeu.

Em segundo lugar, Apollinaire entende a distância cada vez maior entre a realidade (ou o que passe por realidade) e suas representações como consequência paradoxal de vivenciar a impossibilidade de obter, dessa realidade, um retrato perfeito:

Mesmo no caso do cubismo mais elementar, a necessá­ ria abertura da superfície geométrica exigirá do artista em busca da representação perfeita do objeto - especial­ mente no caso de objetos com formas complexas - que produza uma pintura que aliene até mesmo aqueles ob­ servadores que querem compreendê-lo, a ele e à verdade objetiva do que ele pretende representar.

Apollinaire acaba por transformar a ruptura do princí­ pio da representação na afirmação de que a arte não repre- sentacional está próxima a um nível mais elevado de reali­ dade e de verdade: “ O novo movimento poético [...] eleva-se a lirismo concreto e direto, o qual os autores que se limitam a descrever [aquilo que já existe] nunca conseguem atingir.”

O fato de que o clima europeu partilhado, um clima de energia iconoclasta, ganhou forma de modos que variam de nacionalidade para nacionalidade apresenta um desafio à análise histórica e à descrição com nuances. Os histo­ riadores da literatura nunca chegaram realmente a domi­ nar o assunto. Gostaria de indicar, através de pelo menos três “ casos” nacionais - Espanha, Alemanha e França -, como podemos avançar a partir daqui. É óbvio que não foi sob a bandeira espanhola (nem latino-americana) que se deu o passo radical em direção à “ grande abstração” (ou, mais precisamente, em direção à “ ausência de obje­ to ” ). Isso pode ser demonstrado com as obras de Pablo Picasso. Por um lado, Picasso distanciou-se de uma pintura orientada para o objeto antes de qualquer outro artista do seu tempo: são boas as razões para considerar Demoiselles

d ’Avignon como o primeiro grande quadro do cubismo.

Por outro lado, ele nunca chegou tão longe quanto muitos contemporâneos seus. O mesmo vale para o grande Fe­ derico García Lorca, que - apesar de uma tendência para a abstração linguística em antologias como o Romancero

gitano e Poeta en Nueva York - nunca chegou realmente

a romper com o princípio da referência extratextual (tal como, por exemplo, o dadaísmo reclamava). Um notável ensaio de José Ortega y Gasset, “ A desumanização na arte” (1927), articula os riscos de manter intacta essa fronteira. Por razões que, em última análise, serão éticas, o crítico se revela contra os afastamentos radicais em relação à forma: as obras demasiado abstratas tornam precária a conexão entre a experiência estética e a vida humana.

É natural nos sentirmos tentados a especular acerca das causas por trás das formas específicas das idiossincrasias nacionais. M as, na verdade, o que poderá contar como “ causa” ? Como saber que as formas características de cada

nacionalidade foram mais do que marcas da sedimentação institucional afetando os desenvolvimentos individuais - e muito possivelmente coincidentes? Vou restringir-me às vi­ sões do oposto. N o que diz respeito à situação alemã, exis­ tiu, sem dúvida, desde cedo e com grande determinação, a vontade - ou mesmo o desejo - de ir além dessas fronteiras, numa dimensão não representacional. N o entanto, em ter­ mos filosóficos, artísticos e literários, a principal preocupa­ ção continuava a ser a questão de encontrar solução para o problema da (aparente) distância entre sujeito e objeto. En­ tre os esforços para achar essa solução, a proposta de Hei­ degger de substituir a topologia sujeito/objeto pela noção de “ ser-no-mundo” - a existência humana entendida como

Dasein espacial (“ ser-aí” ) - veio a revelar-se de uma in­

fluência incomparável; de acordo com essa ideia, o que quer que esteja confortavelmente “ à-m ão” tem preferência sobre aquilo que esteja “ presente-ao-alcance” , que não está tão próximo. (Note-se a hifenização obsessiva do filósofo!) Entendo que o “ expressionismo” alemão, quer na pintura, quer na escultura, pertence à mesma dimensão histórico- -cultural, pois abriu espaço considerável ao jogo da expe­ riência subjetiva sem, no entanto, abandonar a referência à realidade enquanto experiência comum. Muitas dessas experiências e propostas foram reunidas sob a designação de “ revolução conservadora” ; Hugo von Hofmannsthal cunhou a expressão em 1927, quando apontou os esforços contemporâneos para solucionar problemas do presente observando as culturas do passado e em contextos não eu­ ropeus. Nesse contexto, o sentido da palavra “ conserva­ dor” derivava da sua oposição em relação a “ inventado” . Hoje, pelo contrário, a expressão “ revolução conservadora” é usada com a conotação política de “ protofascista” , que não corresponde totalmente à situação histórica da década

de 1920 - mesmo que tenha havido posições protofascistas que vieram a fazer parte do espetro cultural da revolução conservadora.

A ideia do surrealismo - Apollinaire foi quem usou o termo pela primeira vez, em 1918 - não corresponde às tendências então predominantes na Alemanha, nem às con­ dições existentes na Espanha. O surrealismo concentra-se nas confrontações do indivíduo com a realidade material; essa perspectiva é tipicamente, se não mesmo exclusiva­ mente, francesa. As coisas-no-mundo “ agem” com frieza - e até com brutalidade - porque recusam ao observador uma visão “ adequada” e não se adaptam a programas individuais. Conceitos paradoxais como hasard objectif (acaso objetivo) ou épifanie profane (epifania profana) são característicos desse clima; eles sublinham o modo como dimensões ontologicamente diferentes - entre as quais não pode ocorrer nenhuma mediação demonstrável - existem em paralelo. Nesse contexto, as intenções, os sentimentos e as façanhas intelectuais do homem transpõem-se para um nível puramente mecânico de existência - como fica exem­ plificado, por exemplo, na ideia de écriture automatique (escrita automática), que tanto fascinava os surrealistas. À semelhança do conceito de “ revolução conservadora” na Alemanha, a noção francesa de “ surrealismo” parece ter sido, no início, independente de quaisquer conotações polí­ ticas. Só no final da década de 1920 se estabeleceu um elo entre o surrealismo e a esquerda - que se mantém até hoje.

Ninguém mais do que Apollinaire soube incorporar o Stim­

mung do primeiro surrealismo, quando o movimento ainda

não era politicamente determinado nem restringido. Ele en­

carnou, pode-se dizer, o surrealismo por completo, pois é impossível desenhar uma linha divisória entre sua autoence- nação artística e a realidade biográfica. N as cartas que tro­ cou com seu amigo Picasso vibra uma energia ativa que faz com que todos os tópicos tratados na correspondência pare­ çam triviais e insignificantes. Cada momento em que escre­ viam se apresentava como um período de trabalho intenso, em que constantemente surgiam novos projetos. Em face do presente fugidio, veloz, cada uma das cartas é curta e febril. Porém, e ao mesmo tempo, essa correspondência exprime o desejo de trocas mais extensas. “ Sobretudo escreva-me uma carta longa” , pede Picasso a 16 de agosto de 1918 - menos de três meses antes da súbita morte de Apollinaire. Os dois também nunca poupam cumprimentos ao outro e às suas companheiras: “ Dê meus cumprimentos a sua esposa; a ela envio minha mais pura amizade.”

Os pontos-chave na vida de Apollinaire parecem estou­ ros súbitos - em staccato, no tom do hasard objectif. N as­ ceu em 1880, filho de um nobre polonês que vivia em Roma; o nome do pai não aparece nos documentos oficiais. Apollinaire passou os primeiros vinte anos de vida migran­ do por toda a Europa. Esse percurso de viagens era quase sempre determinado por sua mãe (ou pelos caprichos dela). Num a ocasião, ele decidiu se casar com a primeira mulher que encontrou no trem. Quando a Guerra Mundial come­ çou, Apollinaire abraçou tudo o que tivesse a ver com os militares. Após ser ferido na cabeça, envergava com maior orgulho seu uniforme - e exibia a atadura ensanguentada. Depois de uma convalescença prolongada, recuperou a saúde e, poucos dias antes do fim das hostilidades, morreu em Paris, de gripe espanhola. O seu gesto artístico mais tí­ pico - o que não significa que foi a coisa mais interessante que fez, em sentido estético - surge nos Calligramas. Nesses

poèmes image, a disposição dos grafemas, escritos ou im­

pressos na página branca, desenha os contornos de objetos que também se apresentam verbalmente. Um exemplo é

“ La petite auto” - uma obra que conta como, no dia da sua

convocação para o Exército, Apollinaire (ou, para ser mais preciso em termos crítico-literários, o “ eu lírico” ) regressou a Paris com um amigo e o condutor de automóvel. Esses poemas-quadro parecem descontraídos e animados ao mes­ mo tempo; aqui, os processos que outros usariam para ex­ primir protesto chegam a raiar o lúdico.

Eu gostaria de situar o auge do surrealismo francês - ou, dito de forma mais precisa: o auge do surrealismo na Europa, considerando que o surrealismo circulou também fora da França, embora tenha sido um movimento de impulso ico­ noclasta essencialmente francês - num momento anterior a sua transformação em ideologia por uma codificação expli­ citamente política. A meu ver, o momento de canonização é assinalado por duas obras: Paysan de Paris, de Louis Aragon (1926), e Nadja, de André Breton (1928). N o posfácio a uma recente tradução de N adja, Karl Heinz Bohrer já sugeriu esse juízo histórico. As principais preocupações dos dois textos incluem a descrição e o incentivo às “ epifanias profanas” ; é aqui - na medida em que se consegue falar nesses termos - que reconheço a “ essência” do surrealismo. Para Aragon, a experiência central está ligada aos confrontos com as reali­ dades materiais da cidade - os objetos e as coisas que a fa­ zem ser aquilo que é. Para Breton, a questão principal inclui “ encontros” com um ser humano - Nadja. O ambiente é um cotidiano em que já aconteceu a desumanização; a propósito da figura feminina, poderíamos mesmo falar de uma condi­

ção geral - e, ao mesmo tempo, historicamente específica - de “ reificação” . Quer no observador - aquele que está den­ tro do texto (ou seja, o narrador) -, quer no leitor (que ocupa uma posição exterior), esses momentos podem desencadear súbitos instantes de êxtase e até de iluminação; no entanto, nunca se reúnem num ponto de referência coerente em rela­ ção aos conteúdos das obras ou às identificações que pro­ põem aos leitores. Segundo Bohrer, trata-se de uma questão da “visão trágica sobre a necessária dificuldade em reconhe­ cer a identidade do outro. A conversa trivial sobre a identi­ dade - é o que suspeita o surrealismo - não reconhece que a verdadeira identidade só é atingível num piscar de olhos” .

A “ energia profana” parece nos dar o fugaz ponto concei­ tuai para todas as razões que, no seu ensaio de 1928, Ben­ jamin considera que explicam a razão da superioridade do surrealismo francês em relação aos seus correspondentes alemães. E significativo que ele descreva o surrealismo como uma energia que circula através de toda uma nação. Isso equivale a dizer que a situação na França forma uma atmosfera e um ambiente distintos:

Bretón e Nadja são os amantes que convertem todas as coisas que vivenciamos em lúgubres viagens de trem (as ferrovias começam a envelhecer), em esquecidas tardes de domingo, em bairros proletários das grandes cida­ des, em um primeiro olhar através das janelas molhadas de chuva num apartamento que estreamos, em expe­ riência, se não mesmo em ação revolucionária.

Eles levam a imensa energia da “ atmosfera” , que existe escondida nessas coisas, até o ponto de explosão. Que forma imaginarás que uma vida teria se fosse de-

terminada num momento decisivo precisamente pela última das canções de rua que andasse na boca de todo o mundo? O estratagema que faz dominar esse mundo das coisas - e é melhor falar de um estratagema do que de um método - consiste em substituir uma visão histó­ rica do passado por uma visão política.

Deveríamos, tanto quanto possível, desconsiderar a ob­ sessão de Benjamin, afirmando que todas as suas observa­ ções são políticas. Esta tendência é característica daquele tempo, e, por volta de 1930, haveria de tornar-se loucura. Ao fazê-lo, poderemos ver que as referências à energia, à atmosfera e ao ambiente ocupam posições-chave naquilo que ele escreve: “ insurreição” , “ explosão” , “ vontade indó­ mita” , “ linguagem comandando o eu” , e por aí vai. Benja­ min entendia o surrealismo como uma energia pulsando na fronteira entre o sono e o caminhar, em que a atribuição de forma ou a produção de sentido estável são impossíveis.

Em 1931, Paul Nizan traduziu para o francês O que é a

metafísica?, a lição inaugural de Heidegger em Freiburg.

Embora não recorra a essa metáfora, é claro que Nizan terá pensado que também ele estava “ no vale” de uma energia crescente, que fluía para as literaturas nacionais. É historicamente importante que sua leitura da filosofia de Heidegger se tenha centrado nos motivos do “ nada” e da “ niquilação” - aliás, a tal ponto que apresentou Heidegger aos seus leitores como o “ fundador da filosofia do nada” . Nizan entendia o “ nada” no sentido das epifanias profanas do romance de Breton - ou seja, como a impossibilidade de fornecer à existência os contornos de sentido (ou, na

terminologia de Heidegger, Dasein). Dez anos mais tarde, esse gesto experiencial daria o tom e o mote dos primeiros

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 131-161)