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A existência precária do pícaro

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 45-55)

Talvez os leitores do século XVI tenham tido uma expe­ riência diferente, mas, da perspectiva da história literária, o gênero do pícaro surgiu, por assim dizer, de maneira inespe­ rada na cultura castelhana, sem avisar. A partir de então, ele logo encantou autores e leitores por toda a Europa. Em 1554, foram publicadas, ao mesmo tempo em Burgos, em Alcalá e em Antuérpia, as primeiras três edições da obra anônima La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y

adversidades. O fato de, aparentemente, o gênero não ter

precursores - de não ter sido descoberta uma tradição tex­ tual que culminasse na estrutura narrativa e no tipo de pro­ tagonista característicos dele - tem levado, há décadas, à especulação acadêmica sobre possíveis “ modelos” e “ in­ fluências” que remontam às Confissões de Santo Agostinho.

E verdade que durante a Idade Média havia obras e gê­ neros que incluíam - como incluem as novelas picarescas - séries de episódios do tipo mais ou menos “ aventuroso” ; nelas se davam vários encontros que permitiam exibir os diferentes aspectos do protagonista. Muito influentes eram os “ romances corteses” de Chrétien de Troyes, compostos no terceiro quarto do século XII, em que brilhavam os jo­ vens cavaleiros que - pelas mais variadas razões - haviam perdido a honra e status na corte do rei Artur. Os cavalei­ ros recuperam suas posições por meio de um ciclo de duas

aventiures·, durante o processo, exibem paradigmas do

comportamento aristocrático. Em meados do século X X ,

o grande medievalista Hugo Kuhn foi o primeiro a mostrar de que modo os componentes específicos desse comple­ xo “ ciclo duplo” cumpriam funções narrativas essenciais. Como encarnavam valores abstratos e imutáveis, os heróis do gênero pícaro, assim como seus percursos de aventura, podem ser considerados “ alegóricos” . N os chamados “ ro­ mances em prosa de condição espanhola” - que os roman­ ces de cavalaria de Miguel de Cervantes logo iriam parodiar

a estrutura bem diferenciada e as várias componentes surgiam aplanadas, condensadas numa série de episódios que poderiam ser resumidos ou, até com mais frequência, ser ampliados sem nenhum critério. N o século XIV, uma única obra - no sentido literal do termo - foi composta em língua castelhana com essa mesma estrutura: o Libro

de buen amor. Esse livro conjuga diferentes níveis narrati­

vos e formas linguísticas para contar o desaparecimento de um grande pecador chamado Juan Ruiz, “ el Arcipreste de

H ita” . A complexidade resultante dessa combinação não

chega a alcançar total coerência (o que torna o Libro de

buen am or ainda mais fascinante, ainda que faça excluir a

possibilidade de essa obra ser um precursor direto da nove­ la pícara). M ais tarde, a historiografia vernácula do século XV sobre a Península Ibérica revelaria coleções de peque­ nas obras biográficas em que os traços de distinção e as cas­ tas virtudes que se esperariam de monarcas e de membros da alta nobreza - várias vezes de maneiras surpreendentes e sem uma ordem clara - se mesclam com notas sobre suas fraquezas físicas e seus vícios.

A inovação e a notável descontinuidade histórica repre­ sentadas por Lazarillo de Tormes residem na maneira como os episódios da obra formam, no conjunto, um arco narra­ tivo que, por seu turno, permite fazer emergir o tipo distin­ tivo do protagonista - a personalidade do pícaro. E neces­

sário, porém, esclarecer duas classificações. Ao contrário da estrutura narrativa dos romances corteses de Chrétien de Troyes - nos quais os heróis revelam uma atitude decidi­ da, na maneira como procuram reabilitar-se logo que per­ dem seu estatuto -, a trilha do pícaro, de capítulo em capí­ tulo, mas também em cada um dos episódios, apresenta-se como um processo de aprendizagem. Por exemplo, o pri­ meiro mestre de Lázaro - um pedinte cego que explora essa condição com grande efeito - por várias vezes o castiga, usando extrema crueldade. Lázaro reage endurecendo e aguardando até que possa se vingar de modo refinadamente ardiloso. Quando os dois estão à frente de uma coluna de pedra, Lázaro diz ao seu amo que perante eles há um córrego de água abundante. “ Salte com a força que tiver” , diz-lhe então, “ para conseguir ultrapassar a água.”

Mal terminara de dizê-lo, abalançou-se o pobre cego e, com toda sua força, arremeteu, dando um passo atrás para fazer mais largo o salto, e deu com a cabeça na coluna de pedra, produzindo um som semelhante ao choque de uma abóbora, e logo ali caiu semimorto, de cabeça aberta.

Obtida sua liberdade, Lázaro vai embora de vez. (O lei­ tor percebe depois que, surpreendentemente, o cego sobre­ viveria ao logro.) Tal educação - Bildung, se se quiser - faz de Lázaro um personagem mais forte e capaz de sobreviver.

M as o herói não é um mero rufião astuto. Depois de servir a um padre tão avarento que chega a ser sádico, Lázaro faz-se contratar por um terceiro mestre - um no­ bre de baixa condição. Ele logo descobre que seu novo amo é ainda mais pobre do que ele mesmo; mas sua con­ dição social não permite ao nobre recorrer a estratégias de sobrevivência como a mendicância ou o roubo. Lázaro

então resolve ajudar o “ Escudero” e sua gente com toda a generosidade de que é capaz:

“Esse” , dizia eu, “ é pobre, e ninguém lhe dá o que lhe falta. Mas ao avarento cego e ao padre mal-aventurado e mesquinho, dando-lhes Deus a ambos, a um de mão beijada e ao outro de língua solta, que quase me matam de fome, àqueles é justo não amar, como é bem sentir compaixão desse daqui.”

Deus é testemunha de que hoje, quando cruzo com um desses cavalheiros, caminhando naquele passo e pompa, sinto pena ao pensar que padece tudo o que a meu amo vi sofrer; ao qual, apesar de toda sua pobreza, folgava de servir mais que aos outros, pelo que disse. Então, se a principal diferença entre os romances corte­ ses e Lazarillo de Tormes está no fato de o protagonista aprender diariamente com a vida - em vez de ser nada mais do que uma alegoria complexa dos valores aristocráticos é importante notar que as aventuras de Lazarillo, depois do terceiro episódio e do bom mestre, não revelam um arco narrativo unificado.

N o sétimo e último capítulo do livro, Lazarillo descreve, com orgulho, como é agora servo do carrasco de Toledo. Só nesse ponto o leitor percebe quem, na ficção, tem sido o destinatário do relato autobiográfico. A história é contada ao amigo de um sacerdote - também de Toledo - em cuja casa a mulher de Lazarillo “ entra e sai” (ou seja, onde ela é concubina, como o leitor rapidamente depreende):

E assim me casei com ela, e até agora não estou arrepen­ dido, porque, além de ser boa filha e diligente serviçal, tenho de meu senhor sacerdote todo o favor e ajuda. E todos os anos ele lhe dá, uma vez ou mais, perto de um saco de trigo; pela Páscoa, dá-me carne; e, de vez em

quando, dois pães votivos, ou as calças velhas que deixa. E fez-nos arrendar uma casinha perto da sua; aos do­ mingos e feriados quase sempre comíamos em sua casa. A natureza e a implicação do acordo são claras. Exceto uma das primeiras edições da novela - em que certos co­ mentários acrescentados tornam impossível o leitor não ti­ rar suas conclusões o texto não dá provas “ objetivas” de que Lázaro seja enganado pela mulher. Aquilo que “ trai” o herói ficcional é a quase insuportável intensidade de sua insistência - a qual não condiz com suas origens ou biogra­ fia - em ocupar um lugar estável na sociedade. Isso torna precárias suas afirmações e gera um ambiente de crescente nervosismo e de irritação logo nas primeiras páginas da obra, quando Lázaro, filho de um homem executado por roubar grãos de trigo, cita Plínio. Regressarei adiante a esse tom e a esse ambiente de irritação e nervosismo.

Também em 1554 veio a público Lazarillo de Tormes - a primeira novela picaresca -, que inaugurou um gênero cujo percurso é curioso, até mesmo bizarro. Logo em 1555, o livro foi impresso numa edição que continha uma segun­ da parte, com vários episódios interessantes; o texto acres­ cido, porém, não retoma o desenvolvimento do caráter do herói. Ou, melhor, faltava a essa continuação a qualidade que distinguira o gênero picaresco na sua origem. Durante quase meio século, o picaresco não gerou nada de novo - até que, em 1599, em Madri, apareceu Guzmán de Alfara-

cbe, de Mateo Alemán, obra em dois fascículos; em 1640,

M ateo Luján escreveu a sequência. Guzmán de Alfarache é um personagem que, à semelhança de Lazarillo de Tormes, vai aprendendo com suas aventuras; mas a sua longa histó­ ria não culmina num equilíbrio (precário), como acontece, por exemplo, com o “ acordo” de Lázaro. As frases finais

da sequência de 1640 mostram que o texto, assim como o gênero, estava aberto a novas elaborações:

Aqui têm ponto final essas desgraças. Rematei a conta com minha má vida. A que gastei depois, tudo o mais verás na terceira e última parte, se o céu me der essa vida antes da eterna, pela qual todos esperamos.

A continuação de Guzmán de Alfarache não chegou a ser escrita - talvez porque o gênero, em 1640, já tivesse ultrapassado os limites da sua produtividade. E de se notar que o Buscón, de Francisco de Quevedo, havia sido escrito em 1604, apesar de só ter sido impresso em 1621. Em todos os sentidos, o Buscón deve ser lido como paródia do gênero picaresco. Em 1605, veio a público a Pícara Justina, que tem como protagonista uma mulher. A impressão que se tem é de que, no começo do século XVII, o gênero já tinha entrado numa fase de involução - etapa do desenvolvimento que se caracteriza por novas versões, com a mesma estrutura bási­ ca, mas que deixaram de ser verdadeiramente produtivas.

Dito de maneira mais incisiva, isso poderia significar que a história do gênero picaresco entre Lazarillo - que não manteve até o fim o potencial de seu desenho narrativo - e

Guzmán - que abandonou por completo seu potencial pro­

dutivo - deixou em aberto o que se poderia chamar de seu “ culminar lógico” , como uma espécie de hiato. Ao mesmo tempo, entre os leitores de literatura - para muito além da história do gênero no sentido mais concreto e, aliás, sem ne­ nhuma interrupção até os nossos dias - permanece vivo um fascínio pelos personagens picarescos. Em termos de sua re­ cepção e sua influência, uma quantidade extraordinária de energia parece ter emanado dessa forma literária. Seguem-se algumas perguntas: Que plêiade histórica em particular deu origem à novela picaresca? Por que o gênero entrou em fase

de involução antes de se ter tornado, de fato, produtivo? O que subjaz ao fascínio que o herói pícaro exerce sobre e além da situação histórica em que “ ele” surgiu?

Um dos traços constitutivos do pícaro - e, acima de to­ dos, de Lazarillo de Tormes - é a maneira como se preser­ vam e se salvaguardam a “verdadeira identidade” e a “ falsa identidade” do herói, resultantes da sua adaptação. O pro­ tagonista chantageia a si mesmo a atingir uma posição pú­ blica honrosa, que depois paga com humilhação doméstica. O ambiente da obra - que nunca é explicitado - resulta do lato de que a “ ascensão” de Lázaro à respeitabilidade (ou seja, a identidade que ele obtém através da adaptação) é comprada pelo preço da permanente desgraça dele na con­ dição de marido enganado (identidade que ele não conse­ gue ocultar). Devem ter sido comuns na Espanha do século XV condições de vida como essa - não apenas para os ju­ deus ou muçulmanos que, depois da expulsão de 1492, per­ maneceram no país e se mantiveram fiéis às suas crenças religiosas sob a máscara da conversão. A discrepância entre os hábitos do cotidiano e o status público - ou seja, a alternância entre a decepção (engano) e a desilusão (disen-

gano) - atingia camadas sociais muito amplas, numa socie­

dade em que, já pelo começo do século XVI, haviam emer­ gido estruturas distintas da subjetividade moderna. Foi sobretudo essa discrepância que fez com que os reis católi­ cos Fernando e Isabel criassem o primeiro império mundial dos tempos modernos; para enfrentar o desafio da Refor­ ma, esse papel imperial incluía a missão de aplicar à subje­ tividade e à autonomia o jugo da ortodoxia cristã. A mobi­ lidade social não era impossível nessa sociedade, mas só ocorria mediante o pagamento de um tributo à autoridade da ortodoxia. Desde o final do século XVI, a novela pica­ resca partilhou - e articulou - esse clima de duplicidade.

Cem anos depois, ela se dividia em duas esferas bem independentes da vida. Conforme se depreende de El mé­

dico de su honra, de Calderón, deveriam ser feitos sacrifí­

cios à honra atacada na esfera pública - mesmo quando não parecesse haver razões para tal; os postos e as funções na política eram distribuídos independentemente das reais qualificações daqueles que os recebiam; o fosso entre o valor nominal e o verdadeiro valor do dinheiro era cada dia maior. N essas condições, a história de vida de alguém como Lazarillo de Tormes era parca em imediatez afetiva, enquanto tomavam lugar de destaque a instabilidade e uma capacidade verdadeiramente doentia de usar a m ás­ cara social. O Guzmán de Alfaracbe e o Buscón com pro­ vam isso. Longe estava o momento histórico em que a experiência do cotidiano validara o ambiente dúplice da novela picaresca.

Por que continuamos fascinados até hoje pelo pícaro? De onde vem o prazer que retiramos da descoberta de “ he­ róis pícaros” em obras que pouco ou nada têm a ver com esse gênero histórico? Suspeito que a resposta esteja mais relacionada às pequenas - e quantas vezes dúbias - vitórias, e à sua capacidade de disfarce, aparentemente ilimitada, do que à atitude alegre desses aventureiros. O complexo fenô­ meno histórico que confrontou o mundo por volta de 1550 - e o problema que tem preocupado a filosofia desde então (hoje mais do que nunca) - tem relação com a admirável capacidade humana de autodecepção, assim como com a impossibilidade de alguma vez conseguir praticar a auto­ decepção até à absoluta (auto)certeza. A filosofia existen­ cial de meados do século X X (acima de tudo a obra O ser

e o nada, de Sartre) e a filosofia analítica contemporânea

parecem ter passado por todas as variantes dessa condi­ ção. A conclusão deve ser que estamos entalados - entre a

inacessível transparência e o engano total - num estado de diferentes graus de erro autoinfligido.

Mesmo quando conseguimos discernir a diferença entre verdade e ilusão - como faz o ficcional Lázaro ao escrever a sua história vibra uma nota de incerteza em cada afirma­ ção. Com frequência isso leva a reações exageradas - por exemplo, a rejeição de objeções em que ninguém antes pen­ sara. Lázaro inflige a si próprio esse dilema e se vê apanhado:

Mas as más línguas, que nunca faltaram nem faltarão, não nos deixam viver, dizendo não sei o quê, e não sei o que mais, e que veem minha mulher ir fazer-lhe a cama e cozinhar para ele. Melhor que Deus os ajude, que eles dizem a verdade.

N o original, a última frase é tão confusa e desesperada quanto na tradução. Tal como muitos outros que também viveram nessas condições da Espanha de meados do século XVI, o herói parece ter atingido um ponto em que a im­ possibilidade de acreditar na mentira que o sustém é tam ­ bém o que o impede de verbalizar essa mesma mentira de maneira convincente.

Quando Lázaro explicitamente proíbe quem está à sua volta de falar da sua “ situação” , ele admite que o que não é para ser dito é, de fato, a verdade:

Até hoje, ninguém mais nos ouviu falar sobre o caso; antes, quando sinto que alguém quer dizer alguma coi­ sa dela, atalho e digo: “Veja bem: se você é meu amigo, não me diga nada que me apoquente, que não tenho por meu amigo a quem me apoquenta; principalmente se for para intrigarem com minha mulher, que é no mundo a quem mais amo, e amo a ela mais que a mim. E faz-me Deus com ela mil bênçãos e mais bem do que

eu mereço; que sobre a Hóstia Sagrada jurarei que é tão boa mulher como qualquer outra que viva dentro das muralhas de Toledo. Mato quem disser o contrário, e me mato com ele.” Desta maneira nada me dizem, e tenho paz na minha casa.

Com cada uma dessas palavras, o leitor fica esclarecido sobre a verdadeira situação do protagonista. O sentimento que ainda hoje os espanhóis chamam de vergüenza ajena - ou seja, o embaraço que se sente por alguém (mesmo que seja personagem de um romance) - se torna cada vez mais intenso. Aquilo que nos arrebata, ao ponto de quase sentir­ mos desconforto físico, é o clima de tensão que se gerou em circunstâncias históricas específicas, e que o texto de Laza­

rillo de Tormes tornou presente. Ao fim - e sobretudo nas

releituras da novela - fica evidente a densidade desse clima de vergonha ou embaraço ao longo da obra, até mesmo em passagens em que o narrador tenta um tom mais autocon- fiante. Por essa razão, a frase final soa como o começo de um fim que não tardará a chegar:

Passou-se isso no mesmo ano em que nosso vitorioso Imperador entrou nesta insigne cidade de Toledo e nela assentou Cortes, e se fizeram grandes festejos, como vossa mercê terá ouvido. Pois nesse tempo estava eu, em prosperidade, no cúmulo de minha boa fortuna.

Os leitores, claro, nunca saberão qual “ verdade” está por trás dessas palavras - ou, como se trata de uma obra de ficção, qual “ verossimilhança” mas eles podem ter certeza de que não devem confiar no narrador mais do que ele mesmo confia em si.

As muitas camadas do mundo

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 45-55)