Talvez os leitores do século XVI tenham tido uma expe riência diferente, mas, da perspectiva da história literária, o gênero do pícaro surgiu, por assim dizer, de maneira inespe rada na cultura castelhana, sem avisar. A partir de então, ele logo encantou autores e leitores por toda a Europa. Em 1554, foram publicadas, ao mesmo tempo em Burgos, em Alcalá e em Antuérpia, as primeiras três edições da obra anônima La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y
adversidades. O fato de, aparentemente, o gênero não ter
precursores - de não ter sido descoberta uma tradição tex tual que culminasse na estrutura narrativa e no tipo de pro tagonista característicos dele - tem levado, há décadas, à especulação acadêmica sobre possíveis “ modelos” e “ in fluências” que remontam às Confissões de Santo Agostinho.
E verdade que durante a Idade Média havia obras e gê neros que incluíam - como incluem as novelas picarescas - séries de episódios do tipo mais ou menos “ aventuroso” ; nelas se davam vários encontros que permitiam exibir os diferentes aspectos do protagonista. Muito influentes eram os “ romances corteses” de Chrétien de Troyes, compostos no terceiro quarto do século XII, em que brilhavam os jo vens cavaleiros que - pelas mais variadas razões - haviam perdido a honra e status na corte do rei Artur. Os cavalei ros recuperam suas posições por meio de um ciclo de duas
aventiures·, durante o processo, exibem paradigmas do
comportamento aristocrático. Em meados do século X X ,
o grande medievalista Hugo Kuhn foi o primeiro a mostrar de que modo os componentes específicos desse comple xo “ ciclo duplo” cumpriam funções narrativas essenciais. Como encarnavam valores abstratos e imutáveis, os heróis do gênero pícaro, assim como seus percursos de aventura, podem ser considerados “ alegóricos” . N os chamados “ ro mances em prosa de condição espanhola” - que os roman ces de cavalaria de Miguel de Cervantes logo iriam parodiar
a estrutura bem diferenciada e as várias componentes surgiam aplanadas, condensadas numa série de episódios que poderiam ser resumidos ou, até com mais frequência, ser ampliados sem nenhum critério. N o século XIV, uma única obra - no sentido literal do termo - foi composta em língua castelhana com essa mesma estrutura: o Libro
de buen amor. Esse livro conjuga diferentes níveis narrati
vos e formas linguísticas para contar o desaparecimento de um grande pecador chamado Juan Ruiz, “ el Arcipreste de
H ita” . A complexidade resultante dessa combinação não
chega a alcançar total coerência (o que torna o Libro de
buen am or ainda mais fascinante, ainda que faça excluir a
possibilidade de essa obra ser um precursor direto da nove la pícara). M ais tarde, a historiografia vernácula do século XV sobre a Península Ibérica revelaria coleções de peque nas obras biográficas em que os traços de distinção e as cas tas virtudes que se esperariam de monarcas e de membros da alta nobreza - várias vezes de maneiras surpreendentes e sem uma ordem clara - se mesclam com notas sobre suas fraquezas físicas e seus vícios.
A inovação e a notável descontinuidade histórica repre sentadas por Lazarillo de Tormes residem na maneira como os episódios da obra formam, no conjunto, um arco narra tivo que, por seu turno, permite fazer emergir o tipo distin tivo do protagonista - a personalidade do pícaro. E neces
sário, porém, esclarecer duas classificações. Ao contrário da estrutura narrativa dos romances corteses de Chrétien de Troyes - nos quais os heróis revelam uma atitude decidi da, na maneira como procuram reabilitar-se logo que per dem seu estatuto -, a trilha do pícaro, de capítulo em capí tulo, mas também em cada um dos episódios, apresenta-se como um processo de aprendizagem. Por exemplo, o pri meiro mestre de Lázaro - um pedinte cego que explora essa condição com grande efeito - por várias vezes o castiga, usando extrema crueldade. Lázaro reage endurecendo e aguardando até que possa se vingar de modo refinadamente ardiloso. Quando os dois estão à frente de uma coluna de pedra, Lázaro diz ao seu amo que perante eles há um córrego de água abundante. “ Salte com a força que tiver” , diz-lhe então, “ para conseguir ultrapassar a água.”
Mal terminara de dizê-lo, abalançou-se o pobre cego e, com toda sua força, arremeteu, dando um passo atrás para fazer mais largo o salto, e deu com a cabeça na coluna de pedra, produzindo um som semelhante ao choque de uma abóbora, e logo ali caiu semimorto, de cabeça aberta.
Obtida sua liberdade, Lázaro vai embora de vez. (O lei tor percebe depois que, surpreendentemente, o cego sobre viveria ao logro.) Tal educação - Bildung, se se quiser - faz de Lázaro um personagem mais forte e capaz de sobreviver.
M as o herói não é um mero rufião astuto. Depois de servir a um padre tão avarento que chega a ser sádico, Lázaro faz-se contratar por um terceiro mestre - um no bre de baixa condição. Ele logo descobre que seu novo amo é ainda mais pobre do que ele mesmo; mas sua con dição social não permite ao nobre recorrer a estratégias de sobrevivência como a mendicância ou o roubo. Lázaro
então resolve ajudar o “ Escudero” e sua gente com toda a generosidade de que é capaz:
“Esse” , dizia eu, “ é pobre, e ninguém lhe dá o que lhe falta. Mas ao avarento cego e ao padre mal-aventurado e mesquinho, dando-lhes Deus a ambos, a um de mão beijada e ao outro de língua solta, que quase me matam de fome, àqueles é justo não amar, como é bem sentir compaixão desse daqui.”
Deus é testemunha de que hoje, quando cruzo com um desses cavalheiros, caminhando naquele passo e pompa, sinto pena ao pensar que padece tudo o que a meu amo vi sofrer; ao qual, apesar de toda sua pobreza, folgava de servir mais que aos outros, pelo que disse. Então, se a principal diferença entre os romances corte ses e Lazarillo de Tormes está no fato de o protagonista aprender diariamente com a vida - em vez de ser nada mais do que uma alegoria complexa dos valores aristocráticos é importante notar que as aventuras de Lazarillo, depois do terceiro episódio e do bom mestre, não revelam um arco narrativo unificado.
N o sétimo e último capítulo do livro, Lazarillo descreve, com orgulho, como é agora servo do carrasco de Toledo. Só nesse ponto o leitor percebe quem, na ficção, tem sido o destinatário do relato autobiográfico. A história é contada ao amigo de um sacerdote - também de Toledo - em cuja casa a mulher de Lazarillo “ entra e sai” (ou seja, onde ela é concubina, como o leitor rapidamente depreende):
E assim me casei com ela, e até agora não estou arrepen dido, porque, além de ser boa filha e diligente serviçal, tenho de meu senhor sacerdote todo o favor e ajuda. E todos os anos ele lhe dá, uma vez ou mais, perto de um saco de trigo; pela Páscoa, dá-me carne; e, de vez em
quando, dois pães votivos, ou as calças velhas que deixa. E fez-nos arrendar uma casinha perto da sua; aos do mingos e feriados quase sempre comíamos em sua casa. A natureza e a implicação do acordo são claras. Exceto uma das primeiras edições da novela - em que certos co mentários acrescentados tornam impossível o leitor não ti rar suas conclusões o texto não dá provas “ objetivas” de que Lázaro seja enganado pela mulher. Aquilo que “ trai” o herói ficcional é a quase insuportável intensidade de sua insistência - a qual não condiz com suas origens ou biogra fia - em ocupar um lugar estável na sociedade. Isso torna precárias suas afirmações e gera um ambiente de crescente nervosismo e de irritação logo nas primeiras páginas da obra, quando Lázaro, filho de um homem executado por roubar grãos de trigo, cita Plínio. Regressarei adiante a esse tom e a esse ambiente de irritação e nervosismo.
Também em 1554 veio a público Lazarillo de Tormes - a primeira novela picaresca -, que inaugurou um gênero cujo percurso é curioso, até mesmo bizarro. Logo em 1555, o livro foi impresso numa edição que continha uma segun da parte, com vários episódios interessantes; o texto acres cido, porém, não retoma o desenvolvimento do caráter do herói. Ou, melhor, faltava a essa continuação a qualidade que distinguira o gênero picaresco na sua origem. Durante quase meio século, o picaresco não gerou nada de novo - até que, em 1599, em Madri, apareceu Guzmán de Alfara-
cbe, de Mateo Alemán, obra em dois fascículos; em 1640,
M ateo Luján escreveu a sequência. Guzmán de Alfarache é um personagem que, à semelhança de Lazarillo de Tormes, vai aprendendo com suas aventuras; mas a sua longa histó ria não culmina num equilíbrio (precário), como acontece, por exemplo, com o “ acordo” de Lázaro. As frases finais
da sequência de 1640 mostram que o texto, assim como o gênero, estava aberto a novas elaborações:
Aqui têm ponto final essas desgraças. Rematei a conta com minha má vida. A que gastei depois, tudo o mais verás na terceira e última parte, se o céu me der essa vida antes da eterna, pela qual todos esperamos.
A continuação de Guzmán de Alfarache não chegou a ser escrita - talvez porque o gênero, em 1640, já tivesse ultrapassado os limites da sua produtividade. E de se notar que o Buscón, de Francisco de Quevedo, havia sido escrito em 1604, apesar de só ter sido impresso em 1621. Em todos os sentidos, o Buscón deve ser lido como paródia do gênero picaresco. Em 1605, veio a público a Pícara Justina, que tem como protagonista uma mulher. A impressão que se tem é de que, no começo do século XVII, o gênero já tinha entrado numa fase de involução - etapa do desenvolvimento que se caracteriza por novas versões, com a mesma estrutura bási ca, mas que deixaram de ser verdadeiramente produtivas.
Dito de maneira mais incisiva, isso poderia significar que a história do gênero picaresco entre Lazarillo - que não manteve até o fim o potencial de seu desenho narrativo - e
Guzmán - que abandonou por completo seu potencial pro
dutivo - deixou em aberto o que se poderia chamar de seu “ culminar lógico” , como uma espécie de hiato. Ao mesmo tempo, entre os leitores de literatura - para muito além da história do gênero no sentido mais concreto e, aliás, sem ne nhuma interrupção até os nossos dias - permanece vivo um fascínio pelos personagens picarescos. Em termos de sua re cepção e sua influência, uma quantidade extraordinária de energia parece ter emanado dessa forma literária. Seguem-se algumas perguntas: Que plêiade histórica em particular deu origem à novela picaresca? Por que o gênero entrou em fase
de involução antes de se ter tornado, de fato, produtivo? O que subjaz ao fascínio que o herói pícaro exerce sobre e além da situação histórica em que “ ele” surgiu?
Um dos traços constitutivos do pícaro - e, acima de to dos, de Lazarillo de Tormes - é a maneira como se preser vam e se salvaguardam a “verdadeira identidade” e a “ falsa identidade” do herói, resultantes da sua adaptação. O pro tagonista chantageia a si mesmo a atingir uma posição pú blica honrosa, que depois paga com humilhação doméstica. O ambiente da obra - que nunca é explicitado - resulta do lato de que a “ ascensão” de Lázaro à respeitabilidade (ou seja, a identidade que ele obtém através da adaptação) é comprada pelo preço da permanente desgraça dele na con dição de marido enganado (identidade que ele não conse gue ocultar). Devem ter sido comuns na Espanha do século XV condições de vida como essa - não apenas para os ju deus ou muçulmanos que, depois da expulsão de 1492, per maneceram no país e se mantiveram fiéis às suas crenças religiosas sob a máscara da conversão. A discrepância entre os hábitos do cotidiano e o status público - ou seja, a alternância entre a decepção (engano) e a desilusão (disen-
gano) - atingia camadas sociais muito amplas, numa socie
dade em que, já pelo começo do século XVI, haviam emer gido estruturas distintas da subjetividade moderna. Foi sobretudo essa discrepância que fez com que os reis católi cos Fernando e Isabel criassem o primeiro império mundial dos tempos modernos; para enfrentar o desafio da Refor ma, esse papel imperial incluía a missão de aplicar à subje tividade e à autonomia o jugo da ortodoxia cristã. A mobi lidade social não era impossível nessa sociedade, mas só ocorria mediante o pagamento de um tributo à autoridade da ortodoxia. Desde o final do século XVI, a novela pica resca partilhou - e articulou - esse clima de duplicidade.
Cem anos depois, ela se dividia em duas esferas bem independentes da vida. Conforme se depreende de El mé
dico de su honra, de Calderón, deveriam ser feitos sacrifí
cios à honra atacada na esfera pública - mesmo quando não parecesse haver razões para tal; os postos e as funções na política eram distribuídos independentemente das reais qualificações daqueles que os recebiam; o fosso entre o valor nominal e o verdadeiro valor do dinheiro era cada dia maior. N essas condições, a história de vida de alguém como Lazarillo de Tormes era parca em imediatez afetiva, enquanto tomavam lugar de destaque a instabilidade e uma capacidade verdadeiramente doentia de usar a m ás cara social. O Guzmán de Alfaracbe e o Buscón com pro vam isso. Longe estava o momento histórico em que a experiência do cotidiano validara o ambiente dúplice da novela picaresca.
Por que continuamos fascinados até hoje pelo pícaro? De onde vem o prazer que retiramos da descoberta de “ he róis pícaros” em obras que pouco ou nada têm a ver com esse gênero histórico? Suspeito que a resposta esteja mais relacionada às pequenas - e quantas vezes dúbias - vitórias, e à sua capacidade de disfarce, aparentemente ilimitada, do que à atitude alegre desses aventureiros. O complexo fenô meno histórico que confrontou o mundo por volta de 1550 - e o problema que tem preocupado a filosofia desde então (hoje mais do que nunca) - tem relação com a admirável capacidade humana de autodecepção, assim como com a impossibilidade de alguma vez conseguir praticar a auto decepção até à absoluta (auto)certeza. A filosofia existen cial de meados do século X X (acima de tudo a obra O ser
e o nada, de Sartre) e a filosofia analítica contemporânea
parecem ter passado por todas as variantes dessa condi ção. A conclusão deve ser que estamos entalados - entre a
inacessível transparência e o engano total - num estado de diferentes graus de erro autoinfligido.
Mesmo quando conseguimos discernir a diferença entre verdade e ilusão - como faz o ficcional Lázaro ao escrever a sua história vibra uma nota de incerteza em cada afirma ção. Com frequência isso leva a reações exageradas - por exemplo, a rejeição de objeções em que ninguém antes pen sara. Lázaro inflige a si próprio esse dilema e se vê apanhado:
Mas as más línguas, que nunca faltaram nem faltarão, não nos deixam viver, dizendo não sei o quê, e não sei o que mais, e que veem minha mulher ir fazer-lhe a cama e cozinhar para ele. Melhor que Deus os ajude, que eles dizem a verdade.
N o original, a última frase é tão confusa e desesperada quanto na tradução. Tal como muitos outros que também viveram nessas condições da Espanha de meados do século XVI, o herói parece ter atingido um ponto em que a im possibilidade de acreditar na mentira que o sustém é tam bém o que o impede de verbalizar essa mesma mentira de maneira convincente.
Quando Lázaro explicitamente proíbe quem está à sua volta de falar da sua “ situação” , ele admite que o que não é para ser dito é, de fato, a verdade:
Até hoje, ninguém mais nos ouviu falar sobre o caso; antes, quando sinto que alguém quer dizer alguma coi sa dela, atalho e digo: “Veja bem: se você é meu amigo, não me diga nada que me apoquente, que não tenho por meu amigo a quem me apoquenta; principalmente se for para intrigarem com minha mulher, que é no mundo a quem mais amo, e amo a ela mais que a mim. E faz-me Deus com ela mil bênçãos e mais bem do que
eu mereço; que sobre a Hóstia Sagrada jurarei que é tão boa mulher como qualquer outra que viva dentro das muralhas de Toledo. Mato quem disser o contrário, e me mato com ele.” Desta maneira nada me dizem, e tenho paz na minha casa.
Com cada uma dessas palavras, o leitor fica esclarecido sobre a verdadeira situação do protagonista. O sentimento que ainda hoje os espanhóis chamam de vergüenza ajena - ou seja, o embaraço que se sente por alguém (mesmo que seja personagem de um romance) - se torna cada vez mais intenso. Aquilo que nos arrebata, ao ponto de quase sentir mos desconforto físico, é o clima de tensão que se gerou em circunstâncias históricas específicas, e que o texto de Laza
rillo de Tormes tornou presente. Ao fim - e sobretudo nas
releituras da novela - fica evidente a densidade desse clima de vergonha ou embaraço ao longo da obra, até mesmo em passagens em que o narrador tenta um tom mais autocon- fiante. Por essa razão, a frase final soa como o começo de um fim que não tardará a chegar:
Passou-se isso no mesmo ano em que nosso vitorioso Imperador entrou nesta insigne cidade de Toledo e nela assentou Cortes, e se fizeram grandes festejos, como vossa mercê terá ouvido. Pois nesse tempo estava eu, em prosperidade, no cúmulo de minha boa fortuna.
Os leitores, claro, nunca saberão qual “ verdade” está por trás dessas palavras - ou, como se trata de uma obra de ficção, qual “ verossimilhança” mas eles podem ter certeza de que não devem confiar no narrador mais do que ele mesmo confia em si.