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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP VANESSA ESTEPHAN MALUF

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VANESSA ESTEPHAN MALUF

BRASIL E CISG: CONSUMIDOR E COMPRADOR À LUZ DA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA

INTERNACIONAL DE MERCADORIAS

Mestrado em Direito

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VANESSA ESTEPHAN MALUF

BRASIL E CISG: CONSUMIDOR E COMPRADOR À LUZ DA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA

INTERNACIONAL DE MERCADORIAS

Área de concentração: Direitos Difusos e Coletivos

São Paulo 2016

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Vanessa Estephan Maluf

Brasil e CISG: Consumidor e Comprador à luz da Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias

Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de concentração: Direitos Difusos e Coletivos

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr.

_______________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura:

_________________________

Prof. Dr.

_______________________________________________________________ Instituição:___________________________ Assinatura:

________________________

Prof. Dr.

_______________________________________________________________ Instituição: ___________________________ Assinatura:

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À minha mãe, por ser o melhor exemplo de mulher, pela paciência, por ter um amor incondicional quase incompreensível e por me ensinar todos os dias o que é amor.

Ao meu pai, por me mostrar como enxergar a vida com bom humor e por ter me dado tanta força para obter todas as conquistas que tive até hoje.

Aos meus irmãos, por serem meus melhores amigos e entenderem tão bem a minha vida.

Ao meu amor Rafael, em breve doutor, por quem tenho admiração imensurável, por ser meu maior companheiro, por me ensinar tanto e por ter me dado todo o apoio durante o processo de elaboração desta dissertação.

Ao querido amigo e mentor Celso Xavier pelo incentivo ao ingresso na carreira acadêmica e por quem terei eterna gratidão.

Ao querido mentor Marcelo Inglez de Souza pelo apoio e cuidado em todos os momentos decisivos da minha carreira.

Aos Professores Nelson Nery Junior e Georges Abboud pela atenção, ajuda e aprendizado durante o curso, desde as aulas de ouvinte no início de 2013.

Às queridas mestres Luiza Stuart e Mariana Battochio pela amizade e por todo o apoio durante o curso.

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MALUF, Vanessa Estephan. O Brasil e a CISG: Consumidor e Comprador à luz da Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. 2015. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Este trabalho tem o escopo de analisar a figura do consumidor no Direito Brasileiro, incorporada por significantes mudanças no ordenamento jurídico pátrio desde os primórdios, em detrimento do sujeito esculpido pelas normas internacionais sobre o tema, incluindo a figura do comprador trazida pela CISG e possíveis pontos de intersecção entre as normas.

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MALUF, Vanessa Estephan. Brasil and the CISG: Consumer and Buyer in light of the

United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods. 2015. Master's Dissertation – Law School, Pontifical Catholic University, São Paulo.

The scope of this work is to make an analysis of the consumer category under the Brazilian Law. In Brazil, this category went through significant changes in the country’s system of laws since its early times, to the detriment of the category defined by international rules on the matter; it includes the buyer category under the Vienna Convention on Contracts for International Sale of Goods and possible points of intersection between the two sets of rules.

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1. INTRODUÇÃO ... 11

PARTE A 2. A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DE CONSUMO ... 14

3. A EVOLUÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR ... 22

3.1 Panorama geral ... 22

3.2 A herança advinda dos países desenvolvidos ... 25

3.3 A formação legislativa no Brasil ... 29

4. O CONSUMIDOR NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ... 38

4.1 Considerações gerais ... 38

4.2 O consumidor padrão – Art. 2.º do Código de Defesa do Consumidor ... 42

4.3 O consumidor Pessoa Jurídica ... 45

4.4 A teoria finalista ... 48

4.5 A teoria maximalista ... 54

4.6 Vulnerabilidade e o finalismo aprofundado ou mitigado ... 56

5. O CONCEITO DE CONSUMIDOR NA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA. INDICAÇÃO DE DISPOSITIVOS LEGAIS ... 63

5.1 Diretivas da União Europeia ... 63

5.2 Alemanha ... 65

5.3 França ... 66

5.4 Portugal ... 66

5.5 “Parlatino” – Parlamento Latino-Americano ... 67

5.5.1 Argentina ... 68

5.5.2 Chile ... 68

5.5.3 Colômbia ... 68

5.5.4 Costa Rica ... 69

5.5.5 El Salvador ... 69

5.5.6 Equador ... 70

5.5.7 Guatemala ... 70

(9)

5.5.11Paraguai ... 72

5.5.12Peru ... 72

5.5.13República Dominicana ... 73

5.5.14Uruguai ... 73

5.5.15Venezuela ... 74

PARTE B 6. HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO DA CISG ... 75

7. CISG. ESTRUTURA E PRINCÍPIOS ... 83

8. A FIGURA EQUIVALENTE AO CONSUMIDOR NO ÂMBITO DA CISG ... 94

8.1 Aspectos do contrato de compra e venda no âmbito da CISG ... 94

8.2 O equivalente ao consumidor na CISG: O comprador para uso pessoal, familiar ou doméstico. ... 98

8.2.1 Discernibilidade ... 102

8.2.2 A prova da intenção da compra. Quem deve provar? ... 106

9. A CISG COMO MÁXIMA HARMONIZADORA DA LEI APLICÁVEL A CONTRATOS DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS ... 108

9.1 Necessidade de aplicação harmônica da CISG e interpretação a partir de seus próprios princípios. Excepcionalidade do recurso à legislação doméstica ... 110

9.2 A jurisprudência estrangeira como fonte valorosa para a construção de uma jurisprudência brasileira coerente e harmônica ... 113

PARTE C 10. EM BUSCA DE UMA INTERSECÇÃO SISTÊMICA POSSÍVEL ... 116

10.1 Identificando pontos de intersecção entre o Código de Defesa do Consumidor e a CISG: o consumidor e o comprador para uso pessoal, familiar ou doméstico ... 118

10.2 Os métodos de solução de conflitos de normas no Direito brasileiro ... 124

10.3 O papel do diálogo das fontes e as restrições impostas pela ordem pública e pelas disposições interpretativas da própria CISG ... 128

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(11)

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é analisar a figura do consumidor no Direito Brasileiro, incorporada por significantes mudanças no ordenamento jurídico pátrio desde seus primórdios, em detrimento do sujeito esculpido pelas normas internacionais sobre o tema, incluindo a figura do comprador trazida pela CISG.

Neste ano, o Código de Defesa do Consumidor completou 25 anos de vigência! O mundo teve significantes mudanças desde a concepção do codex

consumerista até os dias de hoje.

Ocorreram relevantes transformações acerca da figura do consumidor dentro de seu contexto social, surgindo questionamentos que refletem no âmbito jurídico. Afinal, quem merece a proteção especial? Qual é o sentido da norma? Qual foi a intenção do legislador? Qual o contexto histórico que inaugurou as primeiras normas de proteção aos consumidores?

Paralelamente, o fenômeno pós-moderno, com enfoque jurídico, pode ser identificado por diversos fatores. O primeiro a ser citado é a globalização, a ideia de uma uniformização mundial ou de um modelo geral para as ciências e para o comportamento das pessoas.

Fala-se hoje em linguagem global, em economia globalizada, em mercado uno, em doenças e epidemias mundiais e até em um Direito unificado. No caso do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, tal preocupação pode ser notada pela abertura constante do seu art. 7.º, que admite a aplicação de fontes do Direito Comparado, caso dos tratados e convenções internacionais.

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normas que afetem as partes de forma homogênea, garantindo a segurança jurídica do intercâmbio.

Assim que, acompanhando o desenvolvimento do comércio em âmbito internacional, surge uma das mais importantes normas sobre o tema!

A CISG foi unanimemente aprovada, no dia 10.04.1980, por uma conferência diplomática que contou com a participação de 62 Estados, tendo sido aberta para assinatura e adesão no dia 11.04.1980. Sua entrada em vigor ocorreu no dia 1.º.01.1988, para os 11 primeiros Estados que depositaram os respectivos instrumentos de adoção junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas. Tais Estados pioneiros foram: Argentina, China, Egito, Estados Unidos, França, Hungria, Itália, Iugoslávia, Lesoto, Síria e Zâmbia.

O texto da CISG foi resultado de um notável esforço coordenado de países de culturas jurídicas e graus de desenvolvimento econômico diferentes de diversas partes do mundo, sob a coordenação da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (Uncitral).1

Em poucas palavras, a CISG é a mais bem-sucedida lei uniforme sobre trocas mercantis. Ela reuniu, em um só instrumento internacional, as matérias tratadas nas duas Convenções da Haia de 1964 (LUVI – Lei Uniforme sobre a Venda Internacional de Mercadorias e LUF – Lei Uniforme sobre a Formação dos Contratos de Venda Internacional de Mercadorias), quais sejam, respectivamente, a formação dos contratos de compra e venda internacional e as obrigações das partes nesses contratos.2

O Brasil aderiu à CISG em 2013 e sua vigência em âmbito nacional se deu a partir de 1.º.04.2014. Os principais objetivos da CISG são: (i) previsibilidade e segurança jurídica; (ii) quebra de barreiras culturais e (iii) menores custos de transação. Assim, o foco do presente trabalho está na Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (The United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods), sob o enfoque do

1 Disponível em: <http://www.cisg-brasil.net/a-cisg>. Acesso em: 31 jul. 2015.

(13)

recepcionamento da norma no sistema jurídico brasileiro e possíveis entraves que podem ocorrer caso sejam incorretamente interpretados seus dispositivos.

De caráter absolutamente comercial, com objetivo precípuo de fomentar as relações internacionais, será que a CISG pode correr o risco de ter sua aplicabilidade afastada pela imposição de norma doméstica dos países-membros? É a partir de tal indagação que será desenvolvido o trabalho ora proposto.

Vale frisar que a CISG ainda foi pouco difundida no ordenamento jurídico pátrio, pois estamos falando de uma lei ainda recente. Portanto, dentro da análise comparativa da norma com a legislação doméstica, o presente trabalho também visa familiarizar o leitor com os fundamentos da adoção de um direito uniforme de compra e venda internacional de mercadorias.

Ultrapassada essa etapa, será desenvolvida a análise comparativa acerca da figura (i) do consumidor no Código de Defesa do Consumidor e do (ii) comprador da CISG, para que, ainda nas hipóteses conflitantes, seja delimitado o âmbito de aplicação de cada norma, posto que ambas possuem absoluta distinção de objeto ou objetivo, visão que pode ser obstruída pela má interpretação dessa “nova” norma.

No que se refere ao consumidor do Código de Defesa do Consumidor, a primeira parte do trabalho traz um breve panorama acerca da construção da sociedade de consumo. A segunda parte traz um panorama sobre a formação do direito do consumidor. A terceira parte traz a definição da figura do consumidor no Código de Defesa do Consumidor e a atual intepretação dada pelos tribunais. Seguindo adiante, será realizada a análise da jurisprudência acerca da figura do consumidor, no âmbito das teorias atualmente aplicadas. Encerrando o tema, a última parte traz a indicação legislativa do consumidor no Direito Comparado.

(14)

PARTE A

2 A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DE CONSUMO

Não há como ilustrar a construção da sociedade de consumo sem antes tecer breves comentários acerca dos reflexos do aumento do poder econômico e da influência da ciência econômica na transformação operada na sociedade. O conceito propriamente dito de consumidor será explorado adiante.

Thierry Bourgoignie faz uma reflexão acerca da influência das noções de economia dentro do contexto da compreensão da figura do consumidor, diante da clara ausência de definição precisa ou mesmo homogênea deste sujeito:

A ausência de definição precisa de consumidor nos textos normativos em vigor nos obriga a nos voltar para a realidade econômica da nossa tentativa de melhor apreender o destinatário das iniciativas que propõe uma política de promoção dos interesses do consumidor no centro do sistema econômico. A literatura sócio-econômica consagra de maneira específica a problemática do consumo que permanece insuficiente, reflete a menor a atenção dedicada pela doutrina à função de consumir entre as diversas funções econômicas. Ela deixa aparecer duas abordagens fundamentalmente opostas à percepção do papel do

consumidor no centro do sistema econômico capitalista.3

Neste sentido, destaca José Geraldo Brito Filomeno:4

Sob o ponto de vista econômico, consumidor é considerado todo indivíduo que se faz destinatário da produção de bens, seja ele ou não adquirente, e seja ou não, a seu turno, também produtor e outros bens. Trata-se, como se observa, da noção asséptica e seca que vê no

consumidor tão somente o homo economicus, e como partícipe de uma

dada relação de consumo, sem qualquer consideração de ordem política, social, ou mesmo filosófica-ideológica.

3 BOURGOIGNIE, Thierry. O conceito jurídico de consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São

Paulo: RT, p. 15-16, 1992.

4 FILOMENO, José Geraldo Brito.

Manual de direitos do consumidor. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

(15)

Maria Antonieta Zanardo Donato5 acerva que consumidor e consumo são

figuras da ciência econômica:

Conceituam-no os economistas, como sento destinatário da produção de bens, seja ou não adquirente, seja ou não, por sua vez, produtor de rendas. Ou então, como adquirentes de bens e serviços que são os produtos finais do ciclo econômico.

Dos elementos contidos nesses conceitos econômicos de consumidor destaca-se, primordialmente, o elemento teleológico, ou seja, está o consumidor na ponta final do processo econômico, como destinatário do processo produtivo econômico.

Neste sentido, vale traçar um panorama histórico inclinado ao aspecto econômico, para fins de ilustrar a formação da sociedade de consumo diante dos principais eventos incorridos na história da humanidade.

Tendo em vista o contexto econômico como fator de significante influência na sociedade do consumo, a construção histórica aqui abordada possui como marco a era da explosão capitalista.

Isso porque a economia baseada na subsistência e na figura do produtor rural como núcleo de uma microssociedade organizada (história antiga dos grandes impérios ou história medieval apoiada no sistema feudal) perde a sua tonalidade dentro do cenário estudado, diante das brutais investidas que acompanharam os grandes acontecimentos históricos do capitalismo e da busca incessante por poder, lucro e domínio.

Assim, a despeito de ser um fenômeno humano disciplinado desde a antiguidade, a economia encontra no final do século XVIII seu precedente jurídico mais próximo à ordem econômica atual, em sua fase mais agressiva, caracterizada pela Revolução Industrial (17606) – a famosa “revolução burguesa”, acompanhada também

da Revolução Francesa (1789), – período que vale fixar como marco para estudo da evolução consumerista ante a inauguração de um marco social de extrema relevância.

5 DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: RT,

1992. p. 45-46.

6 A revolução industrial foi um período de transição para novos processos de manufatura no período

(16)

Portanto, pode-se dizer que a noção de poder econômico surge mais expressivamente a partir desse momento histórico, em que o mercado se concretiza como um projeto político palpável, assumindo a principal forma de comunicação social de modo ostensivo, inundando a vida da sociedade.7

As grandes rupturas – social e econômica – da história ocorrem, portanto, no século XVIII. A Revolução Industrial promoveu a grande modificação na estrutura do mercado, realizando a grande revolução no setor econômico, enquanto a Revolução Francesa, em 1789, promoveu a ruptura com o modelo sociojurídico até então existente. [...] Na economia, a Revolução Industrial significou: (i) a revolução nos meios de comunicação, transportes, agricultura e pecuária; (ii) o desenvolvimento de uma política econômica (liberalismo econômico); (iii) a procura de colônias fornecedoras de matéria-prima e consumidoras de manufaturados (neocolonialismo); (iv) a procura de zonas de influência econômica e pontos estratégicos; (v) a divisão do mundo em países adiantados ou produtores industriais e países atrasados ou produtores de matéria-prima; (vi) o investimento de capitais da Europa industrializada em outros países; (viii) o interesse inglês no fim do tráfico negreiro e na independência da América Latina; e (viii) o desenvolvimento do sistema fabril. Socialmente implicou: (i) a separação do capital e dos meios de produção e do trabalho; (ii) o aumento da população europeia que irá determinar uma corrente migratória principalmente para as Américas e também África e Índia; (iii) o êxodo rural; (iv) o surgimento das associações operárias (trade unions, espécies de sindicatos) em razão do crescimento do

proletariado e a pressão decorrente na burguesia; e (v) o desenvolvimento de novas doutrinas sociais como o socialismo e o anarquismo.8

Nesse momento, viu-se acentuada a concepção de “mercado” para denotar o local onde seriam praticados os negócios jurídicos. O mercado passa a caracterizar um projeto político, passando a ser compreendido como um plexo de relações jurídicas e fáticas integrantes e inerentes à organização da sociedade9:

Ao final do século XVIII, [o mercado] toma forma como projeto político e social e serve ao tipo de sociedade que os liberais desejavam instaurar. O mercado se desdobra: sem deixar de referir os lugares que designamos como mercado e feira assume o caráter de ideia, lógica que reagrupa uma séria de atos, de fatos e de objetos. Mercado deixa

7 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico e gestão orgânica. In: FERRAZ JUNIOR,

Tercio Sampaio; SALOMÃO FILHO, Calixto; MUSDEO, Fábio (Org.). Poder econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri: Manole, 2009. p. 21.

8 BAGNOLI, Vicente.

Direito e poder econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 47. 9 GRAU, Eros.

(17)

então de significar exclusivamente o lugar no qual são praticadas relações de troca, passando a expressar um projeto político, como princípio de organização social. Neste sentido, há autores como

Rosanvallon, que o tomam como representação da sociedade civil.”10

Naturalmente, a insurgência do conceito de poder econômico impactou frontalmente a vida social.

Pois bem. A partir da Revolução Industrial, surgiram significantes alterações na estrutura da sociedade. Com a evolução da técnica, o setor têxtil foi mecanizado, as máquinas foram sofisticadas e, gradativamente, a produção e o aumento do capital foram acentuados. Para acompanhar, o setor metalúrgico foi impulsionado juntamente com os transportes.

Acompanhando a consolidação de valores extraídos das revoluções liberais e o surgimento de uma primeira geração de direitos fundamentais11, a antiga “sociedade

medieval” transformou-se em “sociedade burguesa”.

10 GRAU, Eros.

A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.

33-34.

11 Sobre os direitos fundamentais, a doutrina identifica três gerações em sua evolução, chegando,

inclusive, ao reconhecimento de uma quarta geração. Vejamos:

a) Direitos Fundamentais de 1.ª Geração: a primeira geração de direitos fundamentais dominou o século XIX e diz respeito às liberdades públicas e aos direitos civis e políticos, correspondendo aos direitos de liberdade. Tais direitos têm como titular o indivíduo e se apresentam como direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. Postulou-se, nesta época, a não intervenção do Estado. b) Direitos Fundamentais de 2.ª Geração: a partir do século XIX, após a Revolução Industrial europeia, marcada pelas péssimas condições de trabalho, houve a necessidade de se privilegiar os direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo aos direitos de igualdade. Para que a igualdade se concretizasse, ao contrário do defendido da 1.ª Geração, era necessária maior participação do Estado, face ao reconhecimento de sua função social, por meio de prestações positivas, que visassem o bem-estar do indivíduo.

c) Direitos Fundamentais de 3.ª Geração: no final do século XX, período marcado por profundas mudanças na comunidade internacional e na sociedade (contratação em massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico), com a finalidade de tutelar o próprio gênero humano, surgiram os direitos considerados transindividuais, de pessoas consideradas coletivamente. São os direitos de fraternidade, de solidariedade, como o direito ao meio ambiente equilibrado, à proteção dos consumidores etc.

d) Alguns autores, como Paulo Bonavides, apontam a existência de uma quarta geração de direitos, a qual seria resultado de uma globalização dos direitos fundamentais, como por exemplo, direito à democracia, informação e ao pluralismo. Já Noberto Bobbio trata a quarta geração de direitos sob o enfoque da problemática da manipulação da genética humana (GARCIA, Leonardo de Medeiros.

Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 10. ed. rev., ampl. e atual. Salvador:

(18)

Diante de tais alterações, os subsistemas integrantes da sociedade passaram a obter papel relevante (político, ético, econômico e cultural) alterando a complexidade das relações sociais e fazendo nascer conceitos operacionais que viabilizassem a concepção da própria sociedade.12

Sem dúvida, a Revolução Industrial transformou a sociedade agrária em sociedade de produtores, apoiada precipuamente em valores como acumulação de capital, obtenção desenfreada do lucro e estimulo à mão de obra do trabalhador.

Em esmagada síntese, a implantação de um modelo capitalista desenfreado e o surgimento de grandes potências com ideais e interesses distintos, desencadeou a Primeira Grande Guerra em 1914-1918, a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a Segunda Guerra Mundial em 1939-1945.

Para Marcelo Gomes Sodré, a sociedade de consumo se consolida para valer após a Segunda Guerra Mundial:

A Grande Guerra exigiu um enorme investimento na invenção e na construção de armamentos e respectiva logística, o que dependia de um extremo desenvolvimento tecnológico. Uma vez findo o conflito mundial, toda esta logística industrial bélica e a tecnologia aplicada passaram a ser utilizadas para fins civis, com o objetivo de produzir

bens de consumo.13-14

12 Tercio Sampaio Ferraz Junior, divagando sobre as teorias orgânicas de poder, traz um estudo

interessante sobre as mudanças no conceito da sociedade, no sentido de indicar que a própria sociedade cria mecanismos operacionais para se desenvolver: “A partir da Revolução Francesa, ocorre uma radical transformação. Essa transformação tem suas raízes no período anterior, mas o transcende. Se, antes, os homens de uniam em torno do rei, eram indivíduos que se agrupavam em torno de um chefe amado e respeitado. Depois, eles passam a se unir na Nação, como membros de um todo. [...] O advento, já no século XIX, das tendências chamadas de conservadorismo e liberalismo provoca uma modificação importante. Pouco a pouco, crescendo a complexidade social, com a diferenciação entre os diversos subsistemas (político, ético, econômico, cultural), a sociedade – como um todo – exige, para concebida, conceitos cada vez mais abstratos (em relação às vinculações de conceitos do tipo amizade, amor, obediência, que são individualizados), conceitos, pois, mais operacionais. Pouco a pouco, podemos dizer que situação se inverte, pois o conceito de sociedade, abarcando em si a sociedade política, a econômica, a cultural, a ética, a religiosa, torna-se um conceito analítico, que exclui o indivíduo concreto, apreendido, então, por meio de conceitos abstratos, como papel, função, valores, ação social, processo, sistema, estrutura etc. (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 24-25.

13 SODRÉ, Marcelo Gomes.

A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 15.

14 Em posição contrária sobre o surgimento da sociedade de consumo, sem se restringir a um fato

histórico tal como a Revolução Industrial e o Pós-Guerra, afirma McCracken: “Não houve boom de

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O que se denomina “sociedade de produtores” vigorou até os idos da segunda metade do século XX, quando, a partir de 1970, começa a declinar, dando lugar ao anseio social que associa a felicidade não mais à satisfação de necessidades, mas sim ao volume/intensidade de anseios sempre crescentes que refletem na rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-los. Surge, então, a “sociedade de consumo” designada como aquela destinada a consumir e produzir cada vez mais, para fins de aumentar a respectiva capacidade de consumir e produzir.15

Neste sentido, descreve Claudia Lima Marques:

[...] a passagem do século XVIII para o XIX foi denominada pela

visão de homo politicus, o homem natural e gregário que deu

nascimento ao Estado-Nação; a do século XIX para o XX pelo confronto capital e trabalho e a visão do homo faber, na expressão

famosa de Hannah Arendt, para designar a pessoa como aquela que faz, fabrica, produz, um homem de vita activa (não contemplativa,

como na Idade Média), um animal laborans, o homem trabalhador e

comerciante; e que o atual momento de passagem do século XX para o

XXI é denominado pela visão do homo economicus, visão conhecida

desde Adam Smith, como aquele que atua no mercado, que consome, que se define pelos produtos e serviços que tem acesso, pela informação e conhecimento que detém, [...]. E mais, nestes tempos pós-modernos, é um homem cultural, que caracteriza-se por suas

influência e identidades culturais: um homo economicus et

culturalis”.16

A difusão rápida das informações, notícias e meios publicitários, no contexto da globalização, impulsionada a partir da segunda metade do século XX, serviu para difundir valores e costumes perante a sociedade, culminando também na

canto da sociedade havia se convertido em seu centro magnético. A transformação permanente. Profundas mudanças no consumo haviam gerado profundas mudanças na sociedade, e estas, por sua vez, haviam produzido ainda mais modificações no consumo. Por volta do século XIX, consumo e sociedade estavam inextricavelmente ligados em um contínuo processo de mudanças. Não houve, portanto, nenhum ‘boom de consumo’ no século XIX, porque havia agora uma relação dinâmica,

contínua e permanente entre as mudanças no consumo e as sociais, as quais, juntas, conduziam a perpétua transformação do Ocidente” (MCCRACKEN, Grant. Cultura e consumo: novas abordagens

ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 21).

15 BAUMAN, Zygmunt.

Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de

Janeiro: Zahar, 2008. p. 43.

16 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno; LIKINSKI, Lucas. Desenvolvimento e consumo –

bases para uma análise da proteção do consumidor como direito humano. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado. Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Forum, 2010. p.

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globalização do consumismo, arrastando a massa dos sujeitos econômicos ao anseio desenfreado da noção de “ter” atrelada ao “ser”.

Esta noção associa-se à doutrina de McCracken, estudioso do tema, que sustenta existir um movimento de “caça e perseguição” na sociedade, caracterizado pela apropriação ou imitação de símbolos, estilo de vida e bens materiais pela base na sociedade, ao passo que a elite segue buscando a diferenciação, criando um movimento circular caracterizador da sociedade de consumo.17

Seguindo o rumo das transformações anotadas anteriormente, surge o aumento da impessoalidade e descartabilidade das relações econômicas.

Nesse contexto, produtos antes confeccionados com “exclusividade” perdem espaço no mercado, fazendo enfraquecer a figura do produtor, substituído pelas empresas de produção em massa, ressaltando a figura da impessoalidade. O consumidor perde o interesse em se distinguir e, ao mesmo tempo, aflora o interesse por produtos de notória descartabilidade, ante à facilidade de substituição. Surge a massificação do consumismo. Assim, desenvolve Zygmunt Bauman:

A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). O método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos no universo dos desejos dos consumidores. Mas outra forma de fazer o mesmo, e com maior eficácia, permanece quase à sombra e dificilmente é trazida às luzes da ribalta, a não ser por

jornalistas investigativos perspicazes: satisfazendo cada

necessidade/desejo/vontade de tal maneira que eles só podem dar origem a necessidades/desejos/vontades ainda mais novos. O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade deve se transformar em compulsão ou vício. E assim ocorrem desde que o impulso para buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades nas lojas, e apenas nelas, continue sendo um aspecto do comportamento não apenas destinado, mas encorajado com avidez, a

se condensar num hábito ou estratégia sem alternativa aparente.18

17 MCCRACKEN, Grant. Cultura e consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das

atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p 124.

18 BAUMAN, Zygmunt.

Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de

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Nesse contexto, surge a figura do “hiperconsumidor”. Gilles Lipovetsky afirma que “a própria revolução do consumo foi revolucionada”. Isso porque a sociedade não estaria mais restrita ao próprio consumo, mas ao hiperconsumo, que altera o foco da oferta para o da procura. Assim, o hiperconsumidor estaria “à espreita de experiência emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação”.19

A título exemplificativo, o cidadão brasileiro é um dos que gastam maior porcentagem da sua renda para usar celular, telefone fixo ou banda larga, em comparação com cidadãos de outros países, sendo que as companhias que fornecem esses serviços estão entre as que mais faturam no mundo. Segundo pesquisa, o brasileiro é o 10.º entre os que gastam maior percentual de sua renda para fazer ligações de celular: na média, 7,3%.20

No ano passado, o brasileiro bateu o recorde de gastos derivados do turismo no exterior. Segundo os números divulgados pelo Banco Central, as despesas lá fora somaram US$ 25,6 bilhões em 2014.21

Feitas essas breves notas acerca da construção da sociedade de consumo e a sua correlata evolução, passe-se à análise da formação das normas de direito do consumidor, no sentido de espelhar as relações jurídicas tão suntuosamente fincadas na sociedade.

19 LIPOVESTKY, Gilles.

A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007.

20 Disponível em: <http://app.folha.uol.com.br/#noticia/154438>. Acesso em: 31 jul. 2015.

21 Disponível em:

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3 A EVOLUÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR

Naturalmente, conforme explorado no tópico supra, o pilar do consumerismo foi se organizando a partir de interesses específicos da sociedade,22

impulsionado por seu próprio desenvolvimento, além do desenvolvimento econômico, das mudanças na qualidade de vida, da expansão do conhecimento, da mudança das necessidades, dos valores, do avanço tecnológico e do acesso à informação. No entanto, a evolução da sociedade de consumo não trouxe apenas benefícios ao consumidor, fazendo ressaltar a necessidade de criação de normas para proteção desse “novo” sujeito.

3.1 Panorama geral

A massificação da sociedade de consumo e o crescente individualismo gerou uma crise sociológica por muitos denominada “pós-moderna”, decorrente naturalmente da crise da era moderna e dos ideais sedimentados na Revolução Francesa,23 sobre liberdade, igualdade e fraternidade, não realizados para todos e hoje

22 MIRAGEM, Bruno.

Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 24.

23 Acerca da nova teoria contratual, assevera Claudia Lima Marques: “Já se afirmou que o direito

moderno nasce com a Revolução Francesa, e neste sentido queremos destacar a influência que a famosa teoria do contrato social exerceu sobre o direito contratual. Esta teoria de Rousseau lança a ideia do contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organizada, isto é, o Estado. Aqui vamos reencontrar o dogma da vontade livre do homem, pois, segundo esta revolucionária teoria francesa, a autoridade estatal encontra seu fundamento no consentimento dos sujeitos de direito, isto é, os cidadãos. Suas vontades se unem (em contrato) para formar a sociedade, o Estado como hoje o conhecemos. [...]. Note-se que também aqui está presente de renúncia a parte da liberdade individual. É necessário renunciar através do contrato social, mas a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O contrato é, assim, não só a fonte de obrigações entre os indivíduos, ele é a base de toda autoridade. Mesmo o Estado retira sua autoridade de um contrato; logo, a própria lei estatal encontra aí sua base. O contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que vale porque deriva de um contrato. [...]. Destaca-se, por fim, a maior realização da Revolução Francesa no campo do direito civil, o Código Civil francês de 1804. O Code Civil é elaborado na época napoleônica,

(23)

considerados irrealizáveis dentro do contexto do capitalismo neoliberal, de tom bastante agressivo.24

Assim, avançou a necessidade de se estabelecer a proteção do consumidor ou do ato de consumo. Vale frisar que a proteção do consumidor não está interligada a princípios ideológico-políticos comunistas ou socialistas. Muito pelo contrário, a formação do direito do consumidor insere-se no âmbito do desenvolvimento econômico, pautado por princípios como o da livre iniciativa, verificados em países com economia de mercado.

Nesse sentido, leciona Nelson Nery Junior25: “As economias estatizadas não

se coadunam com a defesa do consumidor. Nos países capitalistas notadamente os mais industrializados (EUA, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Suécia, Canadá, Austrália, etc.) é que se tem desenvolvido com maior rigor a defesa do consumidor”. Esse também é um outro ponto de partida para o estudo ora desenvolvido.

Acrescenta João Batista de Almeida:

O objetivo da defesa do consumidor não é e nem deve ser o confronto entre as classes produtora e consumidora, senão o de garantir o cumprimento objetivo da relação de consumo, ou seja, o fornecimento de bens e serviços pelos produtores e prestadores de serviço e o atendimento das necessidades do consumidor, este, porém, juridicamente protegido pela lei e pelo Estado [...].26

Dentro deste contexto, verifica-se a formação do direito do consumidor nos países de economia mais avançada, estendendo-se posteriormente aos países subdesenvolvidos, com o avanço da norma jurídica de proteção ao vulnerável, o que será tratado com mais profundidade no próximo tópico.

As primeiras entidades de defesa do consumidor surgiram na década de 20 do século XX, precedidas das primeiras leis de proteção ao consumidor. Nessa época

24 MARQUES, Claudia Lima.

Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011.

25 NERY JUNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 3, p. 47, set.-dez. 1992. 26 ALMEIDA, João Batista de.

A proteção jurídica do consumidor. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:

(24)

também surgiram as primeiras controvérsias levadas ao poder judiciário, especificamente nos Estados Unidos diante de intercorrências de consumidores no âmbito da indústria automobilística.27

O movimento foi naturalmente impulsionado pela força que ganhou a sociedade de consumo. A necessidade de criação de normas (i) que evitassem o desequilíbrio das relações, (ii) que evitassem o abuso de direito e (iii) reinterpretassem os antigos conceitos de igualdade e liberdade, apresentou-se imponente diante da rapidez com que evoluiu o mercado consumidor.

Ao discorrer sobre as transformações do direito contemporâneo para a criação de normas com o objetivo de equilibrar as relações jurídicas marcadas pela desigualdade, reflete Marcelo Gomes Sodré:

Todo este desenvolvimento da sociedade industrial concentra o poder econômico nos grandes conglomerados empresariais e, por outro lado, determina um enorme investimento para a formação de uma sociedade efetivamente de consumo, sendo que o movimento de proteção dos

consumidores vem a reboque destas inovações.28

Conforme Jean Calais-Auloy,29 a razão da existência da legislação

consumerista é: “uma tripla constatação: a) os consumidores estão naturalmente em posição mais fraca em relação aos profissionais; b) a lei tem a função de proteger o fraco contra o forte; c) o direito civil clássico é impotente para assegurar a proteção dos consumidores”.

Iain Ramsay indica outras três causas: “(i) falhas no mercado; (ii) metas éticas como a justiça equitativa, direitos do consumidor e valores sociais; (iii) paternalismo”.30

27 SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 12-27.

28 Idem, ibidem, p. 16.

29 CALAIS-AULOY, Jean. Droit de La consommation. Paris: Dalloz, 1996. Apud SODRÉ, Marcelo

Gomes. A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das leis principiológicas

de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 30.

30 RAMSEY, Iain. Consumer protection: tex and materials. London: Weindenfield and Nocolson, 1989.

Apud SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens

(25)

3.2 A herança advinda dos países desenvolvidos

Neste sentido, dentro da imponente necessidade de estabelecer normas para proteção da (construída) sociedade de consumo, surgiram nos países desenvolvidos as primeiras produções legislativas sobre o tema.

O objeto deste trabalho, como visto, cinge-se a equiparar a figura do consumidor no Código de Defesa do Consumidor ao comprador da CISG, de modo que apresenta-se suficiente apenas uma exposição tópica sobre o surgimento das normas de consumo ao redor do mundo.

A proteção do consumidor esteve presente na história dos povos, ainda que de forma individualmente considerada.

O Código de Hamurabi (Babilônia), redigido nos idos do século XVIII a.C., trazia alguns conceitos sobre direito e economia, com previsões sobre serviços deficientes.

O Código de Manú (Índia), redigido nos idos de II a.C., trazia sanções para os casos de adulteração de alimentos.

Os depoimentos de Marco Túlio Cícero, século I a.C., posteriormente transcrito na Lei das XII Tábuas (Roma), nos idos de 425 a.C., a garantia por vícios ocultos.

Na época de Justiniano, o Corpo de Direito Civil publicado no século VI, entre 529 e 534 d.C., a responsabilidade independentemente da ignorância do vício.

O Código Civil francês de 1804 previu consequência aos vícios ocultos.

Até então, verifica-se a proteção mais inclinada ao ato de consumo. Mas esta tendência precisou evoluir. O “Sherman Antitrust Act” de 1890 foi a primeira manifestação moderna da necessidade de proteção ao direito do consumidor.31

31 MARQUES, Claudia Lima.

Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um

(26)

Dando um salto à era pós-moderna, Marcelo Gomes Sodré lista dois fatos históricos marcantes para a criação do direito do consumidor: (i) a mensagem do presidente Kennedy ao Congresso Nacional dos Estados Unidos em 1962 e; (ii) a criação da International Organization of Consumer Union (IOCU), atual de denominação de Consumers Internacional (CI) em 1960”.32

Para Kennedy, existia uma ideia de que, apesar de todos serem consumidores, não havia representação condizente. Vale a transcrição de trecho de mensagem dirigida por Kennedy ao Congresso dos Estados Unidos:

Ao Congresso dos Estados Unidos:

Consumidores, por definição, somos todos nós. Eles são os maiores grupos econômicos na economia, afetando e sendo afetados por quase toda decisão econômica pública ou privada. Os consumidores respondem por dois terços de tudo gasto na economia. Mas eles são o único grupo importante na economia que não são efetivamente

organizados cuja opinião frequentemente não é ouvida.33

Vale também a transcrição de trecho do discurso no qual foram elencados os principais objetivos relativos aos esforços a serem despendidos via atuação governamental e via promulgação de nova legislação em prol da classe consumerista:

(1) O direito à segurança: ser protegido contra o mercado de bens jurídicos à saúde ou à vida;

(2) O direito de ser informado: ser protegido contra práticas fraudulentas, enganosas ou grosseiramente enganosas da informação, publicidade, rotulagem, ou de outras práticas, e de ter acesso às informações necessárias para fazer uma escolha consciente;

(3) o direito de escolher: ter assegurado, sempre que possível, o acesso a uma variedade de produtos e serviços a preços compatíveis; e naqueles ramos em que a concorrência não seja viável e a regulamentação governamental substituível, garantida qualidade satisfatória de serviço a preços justos e;

(4) o direito de ser ouvido: ser assegurado de que os interesses do consumidor receberão a devida atenção na formulação de políticas

32 SODRÉ, Marcelo Gomes.

A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 22.

33 Tradução livre extraída de “Public Papers of the President”, p. 235. Publicação oficial do Governo dos

Estados Unidos, realizada por Marcelo Gomes Sodré em A construção do direito do consumidor. Um

(27)

governamentais e tratamento justo e pronto em tribunais administrativos.34

Em 1969, foi criada uma “comissão para a política dos consumidores” pela “Organization for Economic Co-operation and Development” (OCDE) por iniciativa da Alemanha, Bélgica, França, Estados Unidos e Holanda, a qual criou o primeiro documento contendo estudos sobre a situação dos países da comunidade.35

Em Genebra, em 1973, ocorreu a 29.ª deliberação pela Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, no sentido de ressaltar o direito do ser humano, enquanto consumidor, de gozar de segurança, informação sobre produtos, serviços e condições de venda, do direito à escolha de bens alternativos de qualidade satisfatória e preços razoáveis, e também do direito de ser ouvido para fins de decisões governamentais.

Posteriormente, ainda em 1973, a Assembleia Consultiva do Conselho da Europa aprovou por meio da Resolução n.º 543 a “Carta do Consumidor” e emitiu uma recomendação ao Conselho de Ministros para fins de incentivo (i) à implementação do documento pelos membros da comunidade europeia e (ii) a futura criação de uma “Convenção Europeia sobre a Proteção do Consumidor”. Referida carta serviu de base para a Resolução do Conselho de Ministros da Comunidade Europeia de 14.04.1975, fonte importantíssima, por tratar-se do primeiro documento que reconheceu que os consumidores sofrem problemas específicos, e dividiu os direitos dos consumidores em cinco categorias: (i) a proteção à saúde e segurança; (ii) a proteção de seus interesses

34 Disponível em: <http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=9108>. Acesso em: 3 jul. 2015. Tradução

livre. Texto original: (1) The right to safety – to be protected against the marketing of goods which are hazardous to health or life. (2) The right to be informed – to be protected against fraudulent, deceitful, or grossly misleading information, advertising, labeling, or other practices, and to be given the facts he needs to make an informed choice. (3) The right to choose – to be assured, wherever possible, access to a variety of products and services at competitive prices; and in those industries in which competition is not workable and Government regulation is substituted, an assurance of satisfactory quality and service at fair prices. (4) The right to be heard – to be assured that consumer interests will receive full and sympathetic consideration in the formulation of Government policy, and fair and expeditious treatment in its administrative tribunals.

35 SODRÉ, Marcelo Gomes.

A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

(28)

econômicos; (iii) a reparação de danos; (iv) a informação/educação e; (v) a consulta e representação.36

Nessa época, surgem outras leis de proteção ao consumidor, como por exemplo na França: “1972 – Lei estabelecendo prazo de reflexão; 1973 – Lei Royer que tinha como objetivo orientar o comércio; 1978 – lei que diz respeito à responsabilidade dos construtores imobiliários”.37 O ingresso da figura do consumidor nos textos

constitucionais teve como pioneira a Espanha, que em sua Constituição de 1978 dispôs em seu art. 51: “os poderes públicos garantirão a defesa dos consumidores e usuários, protegendo, mediante procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses econômicos dos mesmos”.38

Assim que, em 1985 a Organização das Nações Unidas aprovou a Resolução n.º 39/248, indicando a necessidade de regulamentação dos direitos de proteção ao consumidor da seguinte forma:

a) proteção dos consumidores diante dos riscos para sua saúde e segurança;

b) promoção e proteção dos interesses econômicos dos consumidores;

c) o acesso dos consumidores a uma informação adequada que lhes permita fazer eleições bem fundadas conforme os desejos e necessidade de cada qual;

d) a educação do consumidor;

e) possibilidade de compensação efetiva ao consumidor;

f) a liberdade de formar grupos e outras organizações de consumidores e a oportunidade para essas organizações de fazer ouvir suas opiniões nos processos de adoção de decisões que as afetem.39

g) a promoção de padrões de consumo sustentáveis.40

36 SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 131.

37 Idem, ibidem, p. 27.

38 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor da constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: RT, 1990.

39 Disponível em:

<http://www.un.org/documents/ecosoc/cn17/1998/background/ecn171998-consumer.htm>. Acesso em: 3 jul. 2015. Tradução livre.

40 Esta última, incluída apenas em 1999 pelas Nações Unidas. Nos dizeres de Marcelo Gomes Sodré:

(29)

As “diretrizes” da ONU forneceram um importante conjunto de metas internacionalmente reconhecidas, fixadas especialmente para os países em desenvolvimento, a fim de ajudá-los a ampliar suas políticas de proteção ao consumidor. Para alguns, a origem dos direitos básicos do consumidor está na referida resolução.41

Pode-se dizer que as diretrizes da ONU fomentaram a promulgação de leis específicas de proteção ao consumidor nos países de terceiro mundo, sendo consideradas, portanto, “diretrizes para o terceiro mundo”.42

Isso porque, nos idos de 1985 (aprovação das diretrizes) os países desenvolvidos como Estados Unidos, Alemanha e França, por exemplo, já possuíam instrumentos legais para que seus consumidores se sentissem seguros, ao passo que a realidade dos países subdesenvolvidos era totalmente distinta. Com exceção do México, os países da América Latina, por exemplo, não tinham quaisquer normativos sobre a proteção do consumidor. Isso se deu, de forma mais enfática, após a aprovação das diretrizes: a lei brasileira é de 1990, a peruana, de 1991, a argentina, de 1993, a chilena, de 1997, a paraguaia, de 1998 e a uruguaia, de 1999.43

3.3 A formação legislativa no Brasil

Em um estudo sobre a formação legislativa da proteção do consumidor no Brasil, João Batista de Almeida traça um panorama sobre os principais marcos da proteção do consumidor/consumo em uma estrutura que será utilizada para fins de análise, pois sintetiza de modo suficientemente detalhado os principais movimentos nacionais de como se deu a construção normativa em comento.

(SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 109).

41 GRINOVER, Ada Pellegrini.

Código brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores

do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. I. Direito Material (arts. 1.º a 80 e 105 a 108).

42 SODRÉ, Marcelo Gomes.

A construção do direito do consumidor. Um estudo sobre as origens das

leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 91

(30)

Foram selecionadas dentro do período de 1933/1971 as normas que “indiretamente” protegiam o consumidor, a despeito da intenção do legislador não ser precipuamente esta. Posteriormente, entre 1971/1988, com a promulgação da Constituição Federal, os eventos de manifesto interesse na proteção do consumidor.

 Em 1933, a primeira manifestação de que se tem notícia nesta área, refere-se ao Decreto n.º 22.626, editado com o intuito de reprimir a usura;

 Em 1934, a Constituição previa a proteção à economia popular (arts. 115 e 117);

 Em 1938, o Decreto-lei n.º 869 e depois, em 1946, o Decreto n.º 9.840 cuidaram dos crimes contra a economia popular;

 Em 1951, a Lei de Economia Popular (Lei n.º 1.521/1951), até hoje

vigente;

 Em 1962, a Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico – “Lei n.º

4.137” (revogada pela Lei n.º 8.884/1994) que reflexamente beneficia o consumidor, além de criar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) na estrutura do Ministério da Justiça, ainda existente, subordinado à Secretaria Nacional de Direito Econômico.

 Entre 1971 e 1973, foram proferidos discursos pelo Deputado Nina

Ribeiro, alertando sobre a gravidade do problema, densamente de natureza social, e para a necessidade de uma atuação mais enérgica do setor;

 Em 1978, surge em nível estadual o primeiro órgão de defesa do

consumidor, o Procon de São Paulo, criado pela Lei n.º 1.903 de 1978;

 Em 1984, a Lei n.º 7.244 (revogada pela Lei n.º 9.099/1995) autorizou aos Estados instituírem Juizados de Pequenas Causas;

 Em 1985, surge em nível federal o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor criado pelo Decreto n.º 94.469, posteriormente substituído pela SNDE;

(31)

Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que tinha por objetivo assessorar o presidente da República na formulação e condução da política nacional de defesa do consumidor;

 Em 1986, a Lei n.º 7.492 criou a punição contra crimes ao Sistema Financeiro Nacional, os denominados “crimes do colarinho branco”.44

Em 15.03.1988, em comemoração ao Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, data escolhida em homenagem ao discurso do então presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy (16.03.1962), as matérias jornalísticas ainda eram modestas quanto ao tema: “No Brasil ainda não há motivos para comemoração. Os direitos fundamentais dos consumidores continuam desrespeitados. A moradia, a escola e o transporte, por exemplo, necessidades básicas, lideram a vasta lista de queixas recebidas pelo Procon nos últimos meses”. E como título em caixa alta: “Brasil só está ‘engatinhando’”. Ainda, “A voz do consumidor só começa a tomar força no Brasil no início dos anos 80, embora já fosse ouvida internacionalmente há muito mais tempo”.45

Finalmente, em 1988, a Constituição Federal veio refletir o que foi sedimentado ao longo dos anos na sociedade agora permeada pelas novas concepções de liberdade e igualdade, inevitavelmente atreladas ao pós-guerra e ao brutal crescimento do capitalismo.

Como é cediço, a Constituição Federal de 1988, como norma máxima de nosso ordenamento jurídico, trouxe inovações e mudanças de paradigmas dentro do direito privado, especialmente ao trazer, de forma sistemática, a ideia de proteção do cidadão frente a abusos que podem ser originados no próprio Estado, ou nas relações entre particulares.

Por ter sido promulgada ainda sob os resquícios da ditadura militar, mostrava imprescindível uma mudança desses paradigmas, já que diversos abusos foram então cometidos sob a égide da lei, ou mesmo em seu nome.

44 ALMEIDA, João Batista.

A proteção jurídica do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2000. p. 10-11.

45 Reportagem extraída dos arquivos do jornal

O Estado de S. Paulo, 15 mar. 1988, p. 34. Disponível

(32)

Claudia Lima Marques, de forma primorosa, conseguiu expor o papel da Constituição como agente transformador do direito privado, ao afirmar que

[...] certos estão aqueles que consideram a Constituição Federal de 1988 como centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário. A Constituição seria a garantia e o limite de um direito privado construído sob seu sistema de

valores e incluindo a defesa do consumidor.46

Assim, no âmbito do direito do consumidor, a Carta Magna trouxe inovações no sentido de estabelecer (i) como dever do Estado a defesa do consumidor (art. 5.º, inciso XXXII) e (ii) como princípio da ordem econômica pautada no trabalho humano e da livre iniciativa a defesa do consumidor (art. 170, inciso V).47 Além disso,

(iii) atribuiu prazo para elaboração de um Código para esse fim (art. 48).48

Por conseguinte, para atender à ordem constante do art. 48 das Disposições Finais e Transitórias da Constituição Federal de 1988, elaborou-se uma comissão para a elaboração de um anteprojeto do que seria o Código de Defesa do Consumidor.49

Portanto, iluminado agora por uma Constituição garantista, protetiva e que trata de criar mecanismos de proteção aos mais vulneráveis (assim porque determina normas que deverão regular não só o direito do consumidor, mas da criança e adolescente, do idoso, entre outros), é que o legislador infraconstitucional, em 1990, cria o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal de forte cunho principiológico que, pela primeira vez inseriu expressamente no direito privado limitação ao exercício

46 MARQUES, Claudia Lima et al.

Manual de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 28. 47 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]

V – defesa do consumidor;

48 Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição,

elaborará código de defesa do consumidor.

49 TARTUCE, Flávio.

Manual de direito do consumidor. Direito material e processual. 3. ed. rev., atual.

(33)

pleno das liberdades individuais, implicando, decerto, em novos paradigmas para o campo.

José Geraldo Brito Filomeno ressalta uma observação importante em seus comentários ao Código de Defesa do Consumidor, quando inclui o surgimento das normas consumeristas (“movimento consumerista”) ao mesmo tempo em que surgiu o movimento sindicalista, nos idos da segunda metade do século XIX, ocasião em que surgiram as reivindicações mais significativas acerca de melhores condições de trabalho e melhoria da qualidade de vida, em sintonia com o binômio “poder aquisitivo/aquisição demais e melhores bens e serviços”.

Para os autores do anteprojeto, o Código de Defesa do Consumidor teve especial inspiração no Projeto de Código do Consumidor Francês, nas diretrizes europeias sobre proteção do consumidor e, especialmente, pelo Direito norte-americano, o qual serviu por meio de seus precedentes e estatutos como fonte norteadora das diretrizes europeias consolidadas:

A maior influência sofrida pelo Código, veio, sem dúvida, do Projet

de Code de la Consommation, redigido sob a presidência de Jean

Calais-Auloy. Também importantes no processo de elaboração foram as leis gerais da Espanha (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, Lei 26/1984), de Portugal (Lei nº 29/81, de 22 de agosto), do México (Lei Federal de Protección al Consumidor, de 5 de fevereiro de 1976) e de Quebec (Loi sur la Protection du Consommateur, promulgada em 1979).

Visto agora pelo prisma mais específico de algumas de suas matérias, o Código buscou a inspiração, fundamentalmente, no Direito comunitário europeu: as Diretivas nºs 84/450 (publicidade) e 85/374 (responsabilidade civil pelos acidentes de consumo). Foram utilizadas, igualmente, na formulação do traçado legal para o controle das cláusulas gerais de contratação, as legislações de Portugal (Decreto-Lei nº 446, de 25 de outubro de 1985) e Alemanha (Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Gedchafts-bedingungen – AGB Gesetz, de 9 de dezembro de 1976).

Uma palavra à parte merece a influição do Direito norte-americano. Foi ela dupla. Indiretamente, ao se usarem as regras europeias mais

modernas de tutela do consumidor, todas inspiradas nos cases e

statutes americanos. Diretamente, mediante análise atenta do sistema

legal de proteção ao consumidor nos Estados Unidos. Aqui foram

(34)

Product Safety Act, o Truth in Lending Act, o Fair Credit Reporting Act e o Fair Debt Collection Practices Act”. 50

Assim, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor foi instituído em 11.09.1990 pela Lei n.º 8.060/1990, constituindo uma típica norma de proteção de vulneráveis. Era essa a intenção do legislador e essa nota é deveras importante para o estudo ora desenvolvido.

Em reportagem jornalística da época, liam-se os seguintes slogans, que, para

nós, hoje parecem óbvios: “Consumidor ganha código e polêmica”, “informação é o direito básico de todo o comprador”, “legislação deve ampliar o controle sobre contratos”, “O comércio terá de cumprir toda oferta anunciada”, “Produto que não agradou poderá ser devolvido”, “Prestadoras de serviços vão ter deveres com a lei”, “Punição severa é arma contra a publicidade falsa” e “Será mais fácil definir quem tem responsabilidade”.

Em entrevista ao mesmo jornal, informou Nelson Nery Junior que a lei não representa instrumento para contrariar as empresas e sim um incentivo à eficiência: “Ao contrário, estimula a iniciativa privada e beneficia as empresas eficientes, pois afasta os picaretas do mercado”.51

O intuito protetivo do Código de Defesa do Consumidor foi notado de forma pacífica pelos doutrinadores à época de sua promulgação. A ideia da relação de consumo pautar-se pela existência da figura do consumidor, a principio caracterizado por uma pessoa física isolada, desconhecedora de seus próprios direitos ou impossibilitada de acioná-los e impotente frente à lesão aos seus interesses legítimos, diante da necessidade de consumir bens imprescindíveis à sua existência e dignidade,

50 GRINOVER, Ada Pellegrini.

Código brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores

do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. I. Direito Material (arts. 1.º a 80 e 105 a 108).

51 Reportagem extraída do acerco do jornal

O Estado de S. Paulo, 16 set. 1990. Disponível em:

(35)

parecia desenhar o reconhecimento da vulnerabilidade previsto no art. 4.º da aludida norma.52

Portanto, neste mesmo sentido, o intuito do novo codex era claro:

reestabelecer o equilíbrio da relação de consumo em que, quase sempre, existe disparidade constante entre interesse (fornecedor) e necessidade (consumidor). Neste sentido, o codex reformula o antigo conceito de igualdade, pois passa a ser um conceito

de proporcionalidade no sentido de atribuir tratamento desigual aos desiguais.53 Não é

demais mencionar que alguns juristas entenderam que referido tratamento poderia ferir o princípio da igualdade, mas esta posição jurídica, já modesta, foi aos poucos desaparecendo diante da evolução do pensamento sobre o tema desde os primórdios:

A declaração de que todos são livres e iguais, tenho dito e escrito, é ociosa quando apenas alguns podem viver concretamente esta liberdade.

Que liberdade há para que desconhece as regras básicas do mercado, os produtos e seus similares, os preços e seus componentes?

Que liberdade há para quem está sob pressões diversas (publicidade subliminar, rótulos e embalagens enganadoras, monopólios, insuficiência salarial etc. e etc.?).

Que liberdade há para quem ignora o sentido e alcance das consequências jurídicas de cláusulas contratuais exclusivamente arquitetadas pelo economicamente mais forte?

Como se pode ver a famosíssima e secular liberdade contratual ou autonomia da vontade amiúde não passa de máscara para a vontade unilateral, e por isso mesmo e enquanto princípio absoluto, acha-se a caminho do museu de belas utopias jurídicas.54

Pois bem. Naquele momento, vigente o Código Civil de Clóvis Bevilacqua, houve consenso na comunidade jurídica, no sentido de que as relações de consumo eram reguladas apenas pelo Código de Defesa do Consumidor, criando-se, assim, um

microssistema normativo.

Nos dizeres de Claudia Lima Marques: “é uma microlei, lei privilegiadora, microssistema que acaba por abalar ou pelo menos modificar o sistema geral a que

52 PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais,São Paulo: RT, n. 40, abr. 1991.

53 Idem, ibidem.

54 AMARAL, Luiz. O Código, a política e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

(36)

pertencia o sujeito, no caso, o Direito Civil. Trata-se, porém, de uma necessária concretização do Princípio da Igualdade, de tratamento desigual aos desiguais [...].55 As

normas do Código Civil ou do Código Comercial somente poderiam incidir nas relações de consumo quando houvesse lacuna e, ainda, se fossem compatíveis com os princípios reguladores do Código de Defesa do Consumidor.56

Neste ano de 2015, o Código de Defesa do Consumidor completou 25 anos. Ainda atual, o Ministro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, em seu discurso de entrega dos “Anteprojetos de Atualização” perante a Comissão de Juristas para Atualização do Código de Defesa do Consumidor57 afirma:

Promulgado em 1990, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) colocou o Brasil na vanguarda dos países que trataram da matéria, permanecendo como marco normativo revolucionário, uma das maiores conquistas legislativas do povo brasileiro na segunda metade do Século XX. Amplamente conhecido da população, que o reconhece como instrumento de efetiva garantia, facilitou o acesso à Justiça e fortaleceu a cidadania-econômica de todos – ricos, pobres, analfabetos e cultos, urbanos e rurais. Com seu microssistema de normas, o CDC preparou o mercado brasileiro para o século XXI e consolidou uma nova ética empresarial, apoiada na visão moderna de valorização do consumidor como técnica eficaz de se diferenciar da concorrência e de ampliar a fidelidade dos clientes. Depois de 20 anos de vigência, o CDC não deixa, como qualquer lei, de ser prisioneiro de seu tempo. Apesar de normas visionárias, não havia como prever em 1990 o crescimento exponencial das técnicas de contratação a distância, as transformações tecnológicas e o crescente comércio eletrônico de consumo, assim como imaginar a verdadeira democratização do crédito, fenômeno que amplia a facilidade de acesso a produtos e serviços, superando esquemas elitistas e popularizando sofisticados

55 MARQUES, Claudia Lima. Direitos básicos do consumidor na sociedade pós-moderna de serviços: o

aparecimento de um sujeito novo e a realização de seus direitos. Revista do Consumidor, São Paulo:

RT, n. 35, p. 72, jul.-set. 2000.

56 NERY JUNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 3, p. 58, set.-dez. 1992.

57 Trecho de discurso extraído do Relatório Geral da Comissão de Juristas de Atualizado do Código de

Defesa do Consumidor nomeados pelo Senado Federal, cuja cerimônia para entrega da versão preliminar dos anteprojetos elaborados ocorreu em 14.03.2012 perante a Presidência do Senado Federal, o qual teve por escopo principal estabelecer os debates no sentido de aprimorar as normas constantes do codex consumerista em razão (i) do avanço do comércio eletrônico (PLS 281/12, ainda

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