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Aspectos do contrato de compra e venda no âmbito da CISG

8. A FIGURA EQUIVALENTE AO CONSUMIDOR NO ÂMBITO DA CISG

8.1 Aspectos do contrato de compra e venda no âmbito da CISG

Assim como a sua antecessora ULIS, a CISG não define expressamente

“contrato de compra e venda”. As obrigações gerais oriundas dos contratos tratados pela CISG são estabelecidas nos arts. 30 e 53, com a entrega dos bens, entrega dos respectivos documentos se cabível, transferência de propriedade por parte do vendedor e pagamento do preço e recebimento da mercadoria nas condições estabelecidas por parte do comprador.

Para a CISG, “contrato de compra e venda” refere-se a contratos bilaterais, objetivando uma troca de mercadorias mediante pagamento.

A CISG se aplica aos contratos de compra e venda de mercadorias entre as partes estabelecida em Estados distintos, quando estes forem Estados contratantes ou quando as regras de direito internacional privado levarem à aplicação da lei de um Estado contratante, conforme art. 1 (1). O conceito de estabelecimento é indicado no art. 10, mas a CISG não define este termo, devendo ser discernível para uma conexão estrangeira como o local de “residência habitual”.192

A este respeito, nem a nacionalidade das partes nem o caráter civil ou comercial do contrato tem relevância (art. 1 (3)). Além da internacionalidade do contrato, a CISG exige que os Estados onde as partes envolvidas tenham estabelecimento sejam contratantes no momento da celebração do contrato. Hoje com

192 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

83 membros, dentre eles as maiores potencias comerciais do mundo, esse acaba sendo um critério bastante relevante.

Vale frisar que o art 1(1) (b) ainda prevê a possibilidade de aplicação da CISG, ainda que o estabelecimento da parte não esteja localizado em Estado contratante. Este dispositivo torna a CISG aplicável quando o Direito Internacional Privado (regras de conflitos de leis) do foro correlato leva à aplicação da lei de um Estado Contratante.

Quanto às partes envolvidas nos negócios de compra e venda, a CISG não traz expressamente o conceito de comprador e vendedor, bastando que ambos tenham celebrado contrato de compra e venda de mercadorias tendo estabelecimentos em Estados contratantes distintos ou, quando não contratantes, tenham suas regras de Direito Internacional Privado dirigidas às aplicação da lei de um Estado contratante (art. 1).

Vale salientar que o art. 1 (3), afirma ser irrelevante a nacionalidade das partes. Proposital, a norma visa evitar dificuldade quando a parte tiver dupla nacionalidade ou as dificuldades de caracterização da nacionalidade da pessoa jurídica, como, por exemplo, no caso das sociedades anônimas. Frisa-se que a CISG não traz distinção entre pessoa física ou jurídica, tampouco sobre o caráter civil ou comercial do contrato.

No mais, a CISG rege contratos que têm por objeto a compra e venda de mercadorias (goods). Em seu art. 2, a CISG se apoia na finalidade do contrato, nas circunstâncias nas quais ele foi celebrado ou em seu objeto como critério para limitar o seu âmbito de aplicação. Ato contínuo, requisitos de direito interno, tais como definição de comerciante, consumidor, empresário ou qualquer outra qualificação não têm relevância para a aplicabilidade da CISG.193

Com relação ao conceito de “mercadorias”, muito embora a CISG também não traga uma definição expressa, há certo consenso entre os doutrinadores de que o

193 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

termo está restrito a bens móveis e tangíveis. Porém, a classificação de “bens” varia de um Estado para outro.

Deste modo, e obedecendo ao intuito de ter uma aplicação universal, a CISG excluiu de seu escopo de aplicação contratos cujos objetos sejam valores mobiliários, títulos de crédito, moeda (art.2(d)) e eletricidade (art.2(f)), pois em alguns países estes itens sequer são considerados “bens”. Da mesma forma, contratos cujos objetos sejam navios, embarcações, aerobarcos e aeronaves (art.2(e)) também estão excluídos, já que tais bens são considerados em alguns países bens imóveis.194

Ademais, quando as mercadorias são destinadas ao consumo (uso pessoal, familiar ou doméstico), igualmente a CISG não se aplica. Como visto, a causa da exclusão é o eminente conflito com a legislação doméstica normalmente hiperprotecionista.

Nesse aspecto, vale salientar que a CISG não define expressamente as características do comprador para uso pessoal, familiar ou doméstico, mas pode-se extrair que o caráter não comercial da compra e venda atrai os basilares conceitos de “hipossuficiência” e “vulnerabilidade” bem como a legislação doméstica protecionista na relação estabelecida neste contexto, a menos que o vendedor não pudesse conhecer o intuito doméstico da aquisição do bem.

Em outras palavras, o comprador da CISG não se apresenta como consumidor de bens para uso pessoal, familiar ou doméstico, não estando investido dos critérios caracterizadores do agente vulnerável e hipossuficiente na relação, conforme conceitos desenvolvidos na Parte A do presente trabalho.

Também com o intuito de respeitar a legislação doméstica, a CISG não se aplica se as mercadorias forem adquiridas em hasta pública ou mediante execução judicial.

Além disso, ainda que determinado contrato preencha todas as hipóteses de aplicação da CISG, ficam excluídos do campo de aplicação da norma os negócios

194 COELHO, Eleonora. A Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de

jurídicos em que a parte adquire determinado produto para incluir parte substancial de materiais e compor uma nova mercadoria.

Também ficam excluídos os contratos que preveem o elemento de prestação de serviço como fator preponderante. A prestação de serviços não é abrangida pela CISG quando refletir parte preponderante do negócio. Sobre o termo “parte preponderante” e controvérsias correlatas, Francisco Augusto Pignatta disserta:

Para se apreciar o termo parte essencial ou substancial duas concepções se opõem: os que consideram que o termo parte essencial se refere à “essencialidade” da mercadoria, isto é, a qualidade/funcionalidade do material fornecido; outros consideram que deverá ser baseado no valor econômico dos elementos fornecidos. [...] “A Opinion” 4 do Comitê Consultivo da CISG se pronuncia, também, a respeito deste aspecto e considera que, para interpretar o termo “parte preponderante” deve-se ater prioritariamente ao critério do “valor econômico”. Segundo esta “Opinion” o critério da essencialidade só deverá ser considerado de forma subsidiária, isto é, somente quando a aplicação do critério do “valor econômico” é impossível ou inapropriada, considerando-se as circunstâncias do caso concreto.

[...]

A questão mais espinhosa em relação a este artigo refere-se aos programas de computador, os Softwares. Serão eles considerados como mercadorias aptas a serem vendidas ou serão considerados como serviços e não entrariam no domínio de aplicação da CISG? Esta questão divide a doutrina e a jurisprudência.

Alguns autores fazem uma distinção, provinda de certos sistemas jurídicos, entre um produto standard e um produto feito sob medida. O Software padrão seria um produto fabricado em cadeia e o Software específico seria aquele produzido “sob medida” onde entraria uma parte preponderante de mão de obra exclusiva. Esses autores consideram que o Software padrão, incorporado em um suporte material como num CD ou num “disco duro” não faz parte da exclusão do artigo 3 e, portanto, a Convenção será aplicada. Outros autores consideram que esta divisão não está prevista pela CISG e que não se pode interpretar a Convenção através de uma divisão oriunda de um direito interno. A jurisprudência majoritária utiliza esta divisão entre Software standard e Software sob medida e afasta a aplicação da Convenção nos últimos casos. Há, porém, decisões que, pelos dados disponíveis, são em sentido contrário. Outras que, aplicando a CISG aos contratos de compra e venda de Software padrão, não se pronunciam em relação ao Software específico.195

195 PIGNATTA, Francisco Augusto. Comentários à Convenção de Viena de 1980. Disponível em:

Assim, a CISG não se aplica a compra e venda que detenha como parte preponderante do produto a consecução de serviços, tendo como critério balizador o próprio valor econômico envolvido na transação.

Como se viu, a Convenção não contém definições expressas sobre seu escopo de aplicação, devendo ser observados os itens de exclusão. Outros itens que podem ser mencionados encontram-se elencados no art. 4(a), os quais limitam a aplicação da CISG a questões relevantes à formação do contrato de compra e venda (Parte II) e aos direitos e obrigações das partes advindos do contrato (Parte III).

Segundo o art. 4.o, fica excluído do âmbito de aplicação da CISG: (i) a validade do contrato; (ii) a validade das cláusulas contratuais; (iii) a validade dos usos e; (iv) os efeitos que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas. O art. 5.o exclui do âmbito de aplicação da CISG, a responsabilidade do vendedor pela morte ou lesões corporais causadas pelas mercadorias. Outras matérias correlatas são também excluídas do domínio de aplicação convencional, tais como (i) a capacidade das partes; (ii) os vícios de consentimento e (iii) o poder de representação.196

Por fim, o art. 6.o permite que a CISG seja afastada pela vontade das partes. Em todos esses casos não se aplicam as regras da CISG, deixando para serem solucionadas pela lei nacional aplicável segundo o método de conflito de leis do Direito Internacional Privado.

8.2 O equivalente ao consumidor na CISG: O comprador para uso pessoal,