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Necessidade de aplicação harmônica da CISG e interpretação a partir de seus

9. A CISG COMO MÁXIMA HARMONIZADORA DA LEI APLICÁVEL A

9.1 Necessidade de aplicação harmônica da CISG e interpretação a partir de seus

O intérprete tem um papel fundamental no esforço uniformizador da CISG. Para prevenir o risco de interpretações divergentes, a Convenção deve ser considerada um sistema completo e autossuficiente. Ela não depende, portanto, de outros sistemas jurídicos para ser implementada.

Como visto nos tópicos anteriores, o art. 7(1) estabelece as diretrizes de interpretação da CISG.222 O dispositivo denota um recurso-padrão de uniformização do direito e pode ser encontrado em textos convencionais semelhantes.

Referido dispositivo se concentra em três princípios gerais: devem-se ter em conta a origem das regras (“caráter internacional”), o objetivo de se promover a uniformidade e, finalmente, o exercício da “boa-fé” no comércio internacional. A expressão “ter-se-ão em conta” é mais que uma recomendação: trata-se de um comando explícito aos operadores do direito.

Quanto ao primeiro princípio, verifica-se que o caráter internacional da CISG indica que a essência de suas regras deve ser analisada sob o viés da “interpretação autônoma”, ou seja, o significado dos termos usados no texto convencional deve ser interpretado independentemente de qualquer concepção prévia de direito interno.

222 Artigo 7

(1) Na interpretação desta Convenção ter-se-ão em conta seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa fé no comércio internacional.

(2) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei aplicável segundo as regras de direito internacional privado.

Como visto no tópico anterior, a CISG surgiu de negociações entre diversos Estados, o que significa que diversas ideias e aspirações desencadearam propostas advindas de diferentes sistemas jurídicos e, principalmente, em uma língua estrangeira para tais países, de modo que foram feitas muitas concessões com o fito de buscar a harmonização da norma e a manutenção dos interesses mínimos exigidos pelos signatários.

Uma convenção criada nessas condições, naturalmente, deve ser interpretada com muita cautela.

Quanto ao segundo princípio, relativo à promoção da uniformidade de sua aplicação, verifica-se que os destinatários são as cortes nacionais e os tribunais, arbitrais. Já que não existe uma “Suprema Corte Internacional”, constata-se que a uniformização do texto convencional só poderá ser alcançada caso as cortes nacionais e tribunais arbitrais aplicadores da CISG levem em conta as decisões proferidas em outros Estados e, assim, desenvolverem uma interpretação comum da CISG, como fariam em nível nacional. O tópico a seguir se reserva a missão de indicar o valioso banco de dados de decisões estrangeiras como forma de ferramenta de interpretação harmônica do texto convencional.

O terceiro princípio refere-se à observância da boa-fé no comércio internacional. A expressão gerou bastante discussão no âmbito de interpretação da CISG, uma vez que o texto não deixa claro (i) se o termo se aplica apenas à interpretação da CISG ou também diretamente à relação contratual estabelecida entre as partes; (ii) a medida de “boa-fé”; e (iii) em que medida a interpretação de conceitos particulares na CISG pode resultar na modificação de sua interpretação. Conforme Cláudio Finkelstein:

Como o ocorrido com outros dispositivos da Convenção, a redação do parágrafo 7(1) resultou de certo grau de adequação feita entre os anseios daqueles defendendo a inclusão de uma obrigação direta de boa-fé às partes e aqueles ansioso pela completa exclusão da expressão do texto da Convenção. O resultado foi muito criticado, vez que desagradou ambos os lados.

Seja como for, a inclusão da expressão dá azo a toda sorte de discussões sobre sua aplicabilidade, a quem se direciona, qual o seu resultado prático e mesmo qual seria a boa-fé sob a óptica da CISG. Em uma primeira análise do texto do art. 7(1), temos a conclusão preliminar que a boa-fé seria apenas uma ferramenta interpretativa

direcionada aos juízes e árbitros de forma a evitar decisões conflitantes.

Mesmo nessa interpretação, os problemas são diversos. Isso porque, como de fato ocorre com outros institutos utilizados pela CISG, não há precisão sobre o que constituiria a boa-fé em seu escopo, o que leva sua interpretação observando leis domésticas ou a aplicação ao caso concreto, ao menos até que surja uma concepção uniforme aceita pelos diversos sistemas jurídicos, o que, efetivamente, é difícil acreditar que ocorrerá num futuro próximo.

Contudo, há, ainda, uma segunda forma de sua aplicação, pela qual serviria como provisão moduladora que, em vez de criar obrigações para as partes, faz com que elas tenham o dever de, no cumprimento de suas obrigações, o fazer de boa-fé.

No cenário internacional, esta discussão ganha corpo porque em algumas jurisdições a boa-fé nem princípio legal é e nas jurisdições em que a boa-fé é obrigatória ela é interpretada de acordo com a moral daquele povo, que muitas vezes é diferente da moral de outro povo, causando uma virtual impossibilidade de chegar-se a uma concepção universal de boa-fé.223

Como visto anteriormente, existe entendimento consolidado no sentido de que a expressão “boa-fé” não deve se basear em conceitos extraídos do direito interno dos países signatários, refere-se à ferramenta de uniformização, portanto deve ser utilizada pelos operadores do direito para fins de aplicar a CISG dentro de sua estrutura e princípios particulares.

Por fim, no tocante ao preenchimento de lacunas (art.7(2)), a regra ilustra um formato simples incorporando o procedimento em duas etapas. A primeira delas é preencher a lacuna por intermédio de regras de direito uniforme. Essa etapa necessita primeiramente de “questões envolvendo matérias” reguladas pela CISG. Elas são normalmente denominadas de “lacunas internas”.224

Em segundo lugar, “princípios gerais em que (a Convenção) se baseia” devem ser identificados para preencher essas lacunas. Apenas se este procedimento falhar é que se deve recorrer às regras nacionais determinadas pelas regras de conflito.

223 FINKELSTEIN, Cláudio. In A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional

de mercadorias: desafios e perspectivas - São Paulo: Atlas, 2015.

224 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

Tais lacunas são normalmente denominadas de “lacunas externas”. A primeira etapa e seu sucesso decidem, evidentemente, se a segunda etapa é necessária.225

Como conclusão, podemos extrair que a CISG deve ser interpretada autonomamente, tanto quanto aos conceitos por ela incorporados como no tocante aos princípios gerais e regras de preenchimento de lacunas.

9.2 A jurisprudência estrangeira como fonte valorosa para a construção de