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A jurisprudência estrangeira como fonte valorosa para a construção de uma

9. A CISG COMO MÁXIMA HARMONIZADORA DA LEI APLICÁVEL A

9.2 A jurisprudência estrangeira como fonte valorosa para a construção de uma

Tendo em vista a análise comparativa a que se presta o presente trabalho, na hipótese de situação de confronto entre a norma doméstica e o texto convencional, deverão ser acessados os diversos bancos de dados contendo decisões acerca de situações fáticas semelhantes, sempre com o intuito de garantir a uniformização do texto convencional.

Dentro de quase 30 anos de vigência da CISG, vários esforços têm sido feitos para auxiliar as cortes judiciais e arbitrais a interpretarem o texto convencional de modo uniforme.

A fonte de jurisprudencial é muito importante ao caráter uniformizador da CISG e deverá servir de base aos juristas brasileiros. Deverá ser ressaltada a importância do legado estrangeiro como fonte valorosa para a construção de uma jurisprudência brasileira coerente e harmônica.

Como visto, ficou claro desde o início que a aplicação uniforme da CISG pressupõe decisões, e que sentenças das cortes de um Estado Contratante e dos tribunais arbitrais estejam disponíveis para os tribunais de outros Estados e de outros tribunais arbitrais.

Conforme Resolução da Comissão das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional, expedida na 21.ª sessão ocorrida em 22.04.1988, foi

225 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

estabelecido um sistema de informação “Clout” (Case Law on Uncitral Texts ou Jurisprudência sobre textos da Uncitral), cujo objetivo é possibilitar a troca de decisões relativas às Convenções da Uncitral. Por esse sistema, agências relatoras nos Estados Contratantes coletam as decisões sobre a CISG e transmitem-nas à Secretaria da Comissão em Viena. As decisões originais estão disponíveis para referência e, além disso, agência relatora envia um resumo da decisão em uma das línguas de trabalho das Nações Unidas, que depois é traduzida pela Secretaria em todos os outros idiomas reconhecidos e publicada pela Uncitral.226

Existe hoje uma série de outros bancos de dados que facilitam ainda mais a tarefa de pesquisar as decisões judiciais e sentenças arbitrais, tais como: (i) www.cisg- online.ch), operado por Ingeborg Schwenzer; (ii) www.cisg.law.pace.edu, site do Instituto de Direito Comercial Internacional da Faculdade de Direito de Pace, operado por Albert Kritzer e utilizado neste trabalho para consulta às decisões que tratam da figura do comprado da CISG (art.2(a)) e, ainda; www.unilex.info, operado por Joachim Bonell.

Novos esforços para auxiliar os tribunais em sua tarefa de promover a aplicação uniforme da CISG levaram à criação do Conselho Consultivo para a CISG (CISG-AC).227 Essa iniciativa privada de uma série de estudos organizados segundo o direito inglês ocupa-se de tópicos controversos da CISG, analisando criticamente casos e contribuições acadêmicas sobre esses tópicos com objetivo de encontrar uma linha uniforme de compreensão e interpretação e, assim, facilitar a aplicação do art. 7(1).

Com a fácil acessibilidade das decisões judiciais e arbitrais, o principal debate existente diz respeito à extensão em que as cortes judiciais e arbitrais devem seguir os precedentes. Embora o art. 7(a) forneça as bases suficientes para a doutrina

stare decisis sobre a CISG, a visão correta leva para outro caminho. As decisões e

sentenças arbitrais estrangeiras podem ter – desde que bem fundamentadas – autoridade persuasiva e devem ser seguidas por outras cortes e tribunais arbitrais.

226 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. São Paulo: RT, 2014. p. 252-253.

227 Advisory Council of the United Nations Convention on the Contracts for the International Sale of

Portanto, a simples citação de decisões estrangeiras não é por si só uma vitória para fins de aplicação uniforme da CISG. As decisões e sentenças estrangeiras devem ser efetivamente avaliadas, especialmente quando há mais de uma corrente doutrinária relativa à disposição normativa a ser interpretada.228

A aplicação uniforme da CISG é atingida, portanto, apenas pela análise cuidadosa dos argumentos apresentados pelo respectivo órgão judicial ao interpretar uma disposição. A mera referência à existência de decisões e laudos estrangeiros sem tal avaliação pode, na verdade, perpetuar raciocínios defeituosos.

228 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

PARTE C

10 EM BUSCA DE UMA intersecção SISTÊMICA POSSÍVEL

Como visto, o objetivo deste trabalho visa estabelecer o campo de atuação da CISG e do CDC, no que diz respeito ao “sujeito ativo” das relações correlatas. Na primeira norma, encontramos o sujeito envolvido em compra e venda internacional, de caráter comercial, ainda que em nível não profissional. No segundo caso, encontramos o sujeito consumidor de bens e serviços para uso desvinculado de sua atividade-fim, vítima de hipossuficiência ou vulnerabilidade relativamente à parte adversa na relação.

Nesse contexto, e conforme será explorado mais adiante, verifica-se que as alternativas sistêmicas conflitam em determinadas hipóteses, em que a norma convencional e a legislação doméstica poderiam se aplicar à mesma relação jurídica estabelecida.

Para tanto, faz-se necessário analisar a intersecção sistêmica entre as normas para que se possa concluir qual diploma deverá ser aplicado em casos de conflito.

Ao tratar dos “grandes sistemas do direito contemporâneo”, afirma René David:

O direito comparado, necessário ao desenvolvimento e ao emprego do direito internacional público, não tem uma função menor a desempenhar, quando se considera o direito internacional provado. Este encontra-se atualmente num estado aflitivo. Consiste essencialmente nas regras de conflito, destinadas a determinar em cada Estado se as jurisdições nacionais serão competentes para conhecer de tal relação de caráter internacional, e por qual direito nacional essa relação será regida. Esta maneira de considerar o problema seria satisfatória se se chegasse, nos diversos países, a soluções uniformes. Entretanto, conflitos de leis e conflitos de jurisdições são resolvidos em cada país sem preocupação com o que é decidido nos outros, daí resultando que as relações internacionais são submetidas, nos diversos países, a regimes diferentes. Duas consequências prejudiciais resultam deste fato: a imprevisibilidade das soluções e o risco de decisões contraditórias sobre um mesmo problema.

Uma das principais tarefas dos juristas da nossa época é terminar com esta anarquia; num mundo em que as relações internacionais tomam

uma extensão e adquirem uma frequência crescente de ano para ano, importa conferir uma base segura a estas relações. Deve ser obtido um consenso entre os diversos países para que, por toda a parte, seja aplicado a uma dada relação o mesmo direito nacional. Os Estados devem elaborar e aceitar, na matéria, soluções uniformes. Devem ser feitas convenções internacionais, e mesmo na ausência de tais convenções a jurisprudência deve, em cada país, levar em consideração, quando estabelece uma regra de conflito, a maneira como o problema foi resolvido pela lei ou jurisprudência de outro país.229

No caso do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, a preocupação acerca da necessidade de observância de uma harmonização sistêmica pode ser notada pela abertura constante do seu art. 7.º, que admite a aplicação de fontes do Direito Comparado, caso dos tratados e convenções internacionais, in verbis:

Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivam dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.230

A CISG, por sua vez, se aplica a todos os contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos (i) quando tais Estados forem contratantes, ou (ii) quando as regras de direito internacional privado levarem à aplicação da lei de um Estado contratante.

Ambas as normas (doméstica e convencional) possuem caráter cogente, são de aplicação imediata e autônoma, podendo colidir em situações em que haja obscuridade no campo de aplicação.

Com o colapso dos impérios econômicos e políticos, uma empresa comercial não pode obrigar parceiros de outros países a fazer negócios consigo e, com o desenvolvimento da competição internacional, tampouco ditar os termos de um

229 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho.

3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 8.

230 TARTUCE, Flávio. Manual de direito do consumidor. Direito material e processual. 3. ed. rev., atual.

contrato. O comércio interno pode ser submetido ao controle nacional, mas o comércio internacional depende do consentimento mútuo.231

Para tanto, deve estar bem estabelecido o campo de atuação de ambos os diplomas, o que se fará com base na análise (i) dos pontos de intersecção deles; (ii) os métodos de solução de conflito; (iii) a possibilidade (ou não) de diálogo entre as fontes para que, ao final, seja possível alcançar a delimitação indicada.

10.1 Identificando pontos de intersecção entre o Código de Defesa do Consumidor