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4. O CONSUMIDOR NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

4.1 Considerações gerais

O conceito de consumidor não foi tema exclusivo trazido pelo Código de Defesa do Consumidor. Como vimos, além do tema já ter sido tratado há muito tempo por outros países, também foi objeto de estudo de importantes juristas brasileiros.60

Tal como na legislação estrangeira,61 o conceito jurídico de consumidor sempre foi objeto de grande discussão, em razão da dificuldade de se criar uma definição homogênea ou mesmo precisa do sujeito objeto de lei especial.

58 Como será mais bem explorado adiante, o estímulo ao comércio internacional e segurança jurídica

que viabilizasse o fomento das relações entre os países foi o principal motivo que levou o Brasil a aderir à convenção.

59 Marco Antonio Zanellato traz a definição do consumidor “padrão” com a seguinte lição: “O

chamando Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei 8.078 de 11.09.1990), no art. 2.º, caput, define o consumidor como ‘toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’ Trata-se, como vem entendendo a doutrina, de um conceito padrão ou sem sentido estrito de consumidor, que deve ser sempre observado pelo intérprete e/ou aplicador do Direito no momento da definição da existência da relação de consumo, pressuposto básico pasta a aplicação das normas do Estatuto Consumerista” (ZANELLATO, Marco Antonio. Considerações sobre o conceito jurídico de consumidor. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, n. 45, p. 172, jan.- mar. 2003).

60 Exemplo icônico pode ser extraído dos ensinamentos de Othon Sidou. Vide SIDOU, Othon J.M.

Pois bem. O movimento que importa anotar é que a visão individualista x massificadora do consumidor acabou acompanhando e afinando o conceito, até formar o arcabouço do codex consumerista e das interpretações atribuídas pelos juristas.

Durante o processo de construção da sociedade de consumo, verificamos que o sujeito esteve no centro de toda a atividade, ora como produto, ora como alvo da produção. Com a massificação do consumo, o sujeito foi deixado para segundo plano, trazendo agora um viés de impessoalidade e despersonalização do consumidor.

Surge a necessidade de reequilibrar as relações, posto que o direito do consumidor passou a integrar o conceito de realização da dignidade humana, ainda que, posteriormente, o hiperconsumismo – e o surgimento do consumidor como um problema social62 – tenha se tornado uma cadeia voltada ao supérfluo, em sobreposição à necessidade. A massificação do consumo se aproveitou do lado negativo da transformação do consumidor e, assim, surgiu a intenção do legislador de mitigar essa faceta.

O que importa anotar é que a proteção positivada do sujeito ressignificado obteve o tratamento devido, tal como explica Claudia Lima Marques:

[...] a despersonalização das relações, iniciada com as relações massificadas de adesão e métodos mecânicos de contratação, levaria ao nascimento de “contratos sem sujeito” ou mesmo de uma decantada “morte do sujeito”, em uma desconstrução total desde sujeito. Certo é que as noções de indivíduos e sujeito mudaram, mas também mudou nosso direito e nossa maneira de ver o sujeito: o sujeito de direitos está lá, não morreu, nem desapareceu, foi “re-significado”. Parece-nos que, ao contrário, este sujeito qualificou-se com direitos, multiplicou- se [...].63

61 Thierry Bourgoignie aponta: “Não existe, no direito belga e no estrangeiro, nenhuma definição única

do termo ‘consumidor’”. Em estudo comparativo das legislações adotadas em favor dos consumidores nos Estados-Membros da Comunidade Econômica Europeia, Norbert Reich e Hans Micklitz escrevem, em 1981: “Se nós entrarmos nos detalhes da legislação, não encontraremos um conceito claro de consumidor e notaremos que frequentemente a lei de cada país usa abordagens diferentes” (BOURGOIGNIE, Thierry. O conceito jurídico de consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, p. 7, 1992).

62 Conceito abordado por Marcelo Gomes Sodré na obra A construção do direito do consumidor. Um

estudo sobre as origens das leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009.

63 MARQUES, Claudia Lima. Direitos básicos do consumidor na sociedade pós-moderna de serviços: o

aparecimento de um sujeito novo e a realização de seus direitos. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, n. 35, p. 70, jul.-set. 2000.

E assim, como fenômeno de sua multiplicação, o consumidor figura como comprador no contrato de compra e venda, aderente no contrato de adesão, destinatário da mensagem publicitária, segurado do contrato de seguro, passageiro no contrato de transporte, de modo que os ajustes das beiradas massificou o próprio direito do consumidor.64 Daí porque, para alguns, o codex consumerista como norma principiológica reflete estratégia de proteção à figura do consumidor.65

Necessário, pois, resgatar a figura do consumidor para desenvolvimento do presente estudo.

Nas palavras de Othon Sidou: “Definem os léxicos como consumidor quem compra para gastar em uso próprio” e “consumidor é qualquer pessoa, natural ou jurídica, que contrata, para utilização, a aquisição de mercadoria ou a prestação de serviço, independentemente do modo de manifestação da vontade, isto é, sem forma especial, salvo quando a lei expressamente a exigir”.66

Para os autores do anteprojeto, este seria o conceito que mais se aproxima daquele adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, posto que acentua tão somente o aspecto econômico-jurídico do termo.67

64 MARQUES, Claudia Lima. Direitos básicos do consumidor na sociedade pós-moderna de serviços: o

aparecimento de um sujeito novo e a realização de seus direitos. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, n. 35, p. 70, jul.-set. 2000.

65 Nelson Nery Junior afirma: “O microssistema do CDC é lei de natureza principiológica. Não é nem

lei geral nem lei especial. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à principiologia do CDC. Consequentemente, as leis especiais setorizadas (v.g., seguros, bancos, calçados, transportes, serviços, automóveis, alimentos etc.) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC. Não seria admissível, por exemplo, que o setor de transportes fizesse aprovar lei que regulasse a indenização por acidente ou por vício de serviço, fundada no critério subjetivo (dolo ou culpa), pois isso contraria o princípio da responsabilidade objetiva, garantido pelo CDC, art. 6.º, inciso VI. Como o CDC não é lei geral, havendo conflito aparente entre suas normas e a de alguma lei especial, não se aplica o princípio da especialidade (lex

specialis derogat generalis): prevalece a regra principiológica do CDC sobre a da lei especial que o

desrespeitou. Caso algum setor queira mudar as regras do jogo, terá de fazer modificações no CDC, e não criar lei à parte, desrespeitando as regras principiológicos fundamentais das relações de consumo, estatuídas no CDC” (NERY JUNIOR, Nelson. Visão sobre a principiologia do Código de Defesa do Consumidor. Revista do Advogado, n. 114, p. 100, 2011).

66 SIDOU, Othon J.M. Proteção ao consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 2.

67 FILOMENO, José Geraldo Brito. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de Defesa do

Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro:

Adalberto Pasqualotto reflete acerca do contexto histórico do surgimento do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de estabelecer como critério definidor da relação da consumo a finalidade do bem adquirido.

De um modo geral, os bens podem ser divididos entre bens de produção e bens de consumo, conforme um conceito econômico. Os bens de produção, também chamados bens de capital, destinam-se a produzir outros bens, através da sua transformação. Os bens de consumo são os destinados à satisfação de uma necessidade imediata, a qual, via de regra, exaure o próprio bem, eliminando-lhe a substância. Este é o conceito de bens consumíveis que aparece no art. 51 do CC, o qual, todavia, não serve ao Código de Defesa do Consumidor, que adotou conceito mais amplo, como se verá adiante. De qualquer sorte, essa noção elementar que distingue bens de capital e de consumo permite isolar o conceito das relações de consumo quanto ao seu objeto. São relações de consumo apenas aquelas que envolvem bens (ou produtos) entregues ao seu destinatário final. O mesmo conceito serve para os serviços, também abrangidos das relações de consumo. [...]

A hipossuficiência está implícita na ideia de proteção ao consumidor. Por isso, o conceito mais apropriado, afigura-se-nos o de Jean Calais- Auloy, que tem como ato de consumo aquele que visa à satisfação de uma necessidade pessoal ou familiar.68

Adiante, o autor afirma que o consumidor no sentido jurídico do termo é quem realiza um negócio de consumo, sendo participantes deste negócio de consumo um profissional (que é geralmente um comerciante ou genericamente um fornecedor de bens ou serviços) e um particular, sendo certo que o profissional também é consumidor quando adquire bens ou serviços para o seu próprio consumo.69

Uma concepção mais direta da definição reparte o conceito da seguinte forma: (i) pessoa física ou jurídica – não importando os aspectos de renda e

capacidade financeira; (ii) que adquire, ou seja, compra diretamente ou utiliza, para

uso em proveito próprio ou de outrem produto, assim considerado como bem móvel ou imóvel, material ou imaterial, ou serviço, assim considerado como atividade fornecida por terceiro mediante remuneração e; (iii) como destinatário final, ou seja, para uso

próprio, privado, individual, familiar ou doméstico, não se incluindo, portanto, o intermediário da compra ou o revendedor após montagem, beneficiamento ou

68 PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista

dos Tribunais, São Paulo: RT, n. 40, abr. 1991.

industrialização, com a nota de que a figura do intermediário e do destinatário final podem se sobrepor como, por exemplo, quem adquire material de escritório ou montadora de automóvel que adquire produto para montagem e revenda (autopeças).70

José Geraldo de Brito Filomeno afirma: “Abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, psicológica e outras, entendemos por “consumidor” qualquer pessoa física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um serviço”. Conclui o raciocínio afirmando que toda a relação de consumo: a) envolve basicamente duas partes bem definidas: de um lado, o adquirente de um produto ou serviço (“consumidor”) e, de outro, o fornecedor ou vendedor de um produto ou serviço (“produtor/fornecedor”); b) tal relação destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor; c) o consumidor, não dispondo, por si só, de controle sobre a produção de bens de consumo ou prestação de serviços que lhe são destinados, arrisca-se a submeter-se ao poder e condições dos produtores daqueles mesmos bens e serviços.71