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8. A FIGURA EQUIVALENTE AO CONSUMIDOR NO ÂMBITO DA CISG

8.2 O equivalente ao consumidor na CISG: O comprador para uso pessoal, familiar

8.2.1 Discernibilidade

Além das hipóteses taxativamente arroladas no art. 2 (a), as quais preveem as hipóteses de inaplicabilidade da CISG, existe uma exceção relativa ao “conhecimento” ou o “dever de conhecimento” do vendedor para com a finalidade do uso da mercadoria adquirida pelo comprador. Vejamos:

Esta Convenção não se aplicará às vendas:

(a) de mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, salvo se o vendedor, antes ou no momento de conclusão do contrato, não souber, nem devesse saber, que as mercadorias são adquiridas para tal uso; [...]

Referida exceção leva ao entendimento de que não basta a intenção do comprador para uso pessoal, familiar ou doméstico, caso o vendedor “não saiba” ou “não pudesse saber” sobre a finalidade da compra nessas hipóteses.

Como nessa hipótese se levam em consideração as características subjetivas para se definir a intenção do contrato (art. 1 (2)), a segunda parte do dispositivo infere a necessidade de a finalidade do uso pessoal ser “reconhecível”, caso isso não seja óbvio ao vendedor.205

Isso visa proteger o vendedor de uma surpresa no tocante à lei aplicável ao contrato de compra e venda. Seja porque o vendedor imaginava que a venda seria regida pela CISG, mas não o é, seja porque o vendedor, caso soubesse que a venda se destinasse a um consumidor de determinado país, talvez não realizasse o negócio para

205 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

evitar, por exemplo, que determinadas leis exageradamente protetoras do consumidor do país em questão fossem aplicadas.206

Podemos citar como exemplo o caso submetido à apreciação da Corte alemã, em que o comprador havia contratado a compra de um carro, mas não revelou que este seria destinado ao uso de um de seus empregados.207

A autora, uma empresa letã, adquiriu um carro usado da ré, uma concessionária de carros alemã. O formulário pré-impresso do contrato de compra continha a observação “sem repintura”, escrita manualmente, a qual foi adicionada pela ré a pedido da autora. A ré tinha obtido o carro de pelo menos um intermediário. Anteriormente, o carro pertencia a um banco PCL e havia sido avariado e reparado, inclusive pintado. Após o pagamento do preço de compra, o carro foi entregue em Riga a expensas da compradora. Quando examinou o carro pela primeira vez em 7 de julho de 2006, a compradora constatou que ele havia sido repintado e também que a avaria causada pelo acidente não havia sido reparada por um profissional, bem como verificou que alguns acessórios (mencionados no contrato) não tinham sido entregues. Em carta datada de 15 de julho de 2006, a compradora exigiu um pagamento de 2.500 euros até 2 de agosto de 2006, declarando que anularia o contrato e exigiria indenização, caso a vendedora se recusasse a efetuar o pagamento. Após troca de correspondências, a compradora declarou o contrato anulado em carta datada de 25 de setembro de 2006.

A compradora ingressou com ação objetivando restituição do preço de compra e reembolso dos custos de transferência e guarda do carro. O Tribunal Regional, em primeira instância, deferiu a ação. O Superior Tribunal Regional reformou a decisão e acolheu o recurso da ré. O tribunal declarou que o contrato entre as partes era regido pela CISG, uma vez que as duas partes tinham sede em Estados signatários da CISG e que as “exigências de aplicação da CISG” também haviam sido satisfeitas: quando as partes estabeleceram o contrato, a vendedora tinha o direito de acreditar que a compradora estava adquirindo o carro para fins profissionais (artigo 2(a) da CISG). O Tribunal também observou que a Convenção não havia sido excluída nem explícita nem expressamente. A CISG está incorporada ao direito alemão: portanto, se as partes presumem que as leis alemãs serão aplicáveis, a CISG também será. Para que a Convenção fosse excluída, seria obrigatória a inclusão de texto específico como, por exemplo, “O contrato é regido pela lei de venda de bens do Código Civil alemão”. A exclusão da CISG não é implícita nem mesmo quando os termos e condições gerais de uma vendedora indicam que o foro será a Alemanha. Por fim, a aplicação da CISG não poderia ser

206 PIGNATTA, Francisco Augusto. Comentários à Convenção de Viena de 1980. Disponível em:

<http://www.cisg-brasil.net/doc/fpignatta-art3.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2015.

207 Decisão proferida em 31 de março de 2008 pelo Tribunal alemão, OLG Stuttgart. Disponível em:

afastada porque os argumentos apresentados pelas duas partes na primeira instância se fundamentaram exclusivamente na lei alemã.

Referida decisão mostra claramente que a real negligência do vendedor em constatar a finalidade da compra quando da conclusão do negócio não afasta a aplicação da CISG.208 Em outras palavras, o vendedor deveria saber que uma concessionária, adquirindo um veículo, desencadeia a caracterização da relação para fins comerciais ou, no mínimo, consubstancia-se forte indício do caráter comercial da compra e venda.

Assim, como dizem Neumayer e Ming,

[...] se, no momento da conclusão do contrato, o vendedor não tem nenhuma razão de desconfiar que a mercadoria foi adquirida para uso pessoal, familiar ou doméstico, sobretudo em relação à quantidade, ao endereço de entrega ou outra circunstância da transação que não são usuais em uma venda de consumo, o contrato é submisso à Convenção. O que o vendedor ficar sabendo depois é sem pertinência.209

Vale ressaltar da reflexão supracolacionada que a conclusão do contrato é o momento relevante para obter conhecimento sobre a intenção de uso ou para culposamente deixar de alcançar esse conhecimento. O conhecimento posterior da intenção de uso das mercadorias é irrelevante para fins de afastamento da aplicação da CISG.

208 Por outro lado, Martin Schmidt-Kessel atacou decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal da

Alemanha, a qual afastou a aplicação da CISG sob o argumento de que a legislação alemã não prevê que o vendedor deva saber qual o intuito da compra e venda realizada: “Em outro argumento, o Supremo Tribunal menciona o fato de que a Convenção também é aplicável a não comerciantes. A delimitação divergente de contratos com consumidores no Art. 2(a) da CISG e no par. 13 do BGB [definição de consumidor] pode levar à sobreposição de disposições legais. ‘Visando à aplicação prática da lei e a fim de evitar discriminação contra partes contratuais que não sejam comerciantes, é necessário incluir condições e termos gerais em contratos regidos pela CISG sujeitos a princípios uniformes.’ A Suprema Corte está embasando seu argumento em uma diferença desconhecida para a CISG, isto é, a diferença entre partes comerciais e não comerciais. Na verdade, o Art. 1(3) da CISG é explícito em rejeitar exatamente esse tipo de distinção. A única fronteira que a própria Convenção estabelece são as características de uma venda ao consumidor, no Art. 2(a) da CISG. Ao introduzir ܺ◌ não como uma indicação flexível, mas como um elemento normativo tal como no par. 13 do BGB – a figura da parte contratante não comercial na interpretação do Art. 8, a decisão viola a obrigação de promover uma interpretação uniforme da Convenção. A CISG proíbe que as leis nacionais obrigatórias de proteção ao consumidor sejam consideradas na esfera de sua aplicação” (Supremo Tribunal Federal da Alemanha (Bundesgerichtshof), 31 out. 2001. Disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/>. Acesso em: 5 abr. 2015. Tradução livre).

209 NEUMAYER, Karl H.; MING, Catherine. Convention de Vienne sur les contrats de vente

Contudo, caso o vendedor não seja diligente ou cometa uma negligência grosseira, ele poderá se valer desse artigo para ver aplicada a convenção. Se indícios havia de que a venda seria para uso “pessoal, familiar ou doméstico”, o vendedor não poderá alegar que “não sabia”. Os indícios devem ser fortes: uma simples desatenção ou uma negligência leve não basta. Em uma venda por correspondência, por exemplo, o vendedor deverá estar atento a certos indícios que possam demonstrar a finalidade da transação. Por exemplo, uma venda de computador cuja entrega deve ser realizada em um endereço comercial é um indício suficiente de que a venda é para uso profissional.210

Nesse sentido, Peter Schlechtriem e Ingeborg Schwenzer comentam:

A intenção de utilizar o bem de forma pessoal pode ser reconhecida por várias maneiras: geralmente é indicada pela mera natureza da mercadoria (como, por exemplo, no caso de compra de vestuário ou artigos esportivos ou materiais para a prática de um hobby). Em contrapartida, a compra de vários objetos idênticos (por exemplo, três câmeras idênticas), como regra, não indicará o uso privado. Se as mercadorias podem ser utilizadas de formas diferentes (por exemplo, um notebook ou um carro), a aparência do comprador fornecerá pistas; como negociações conduzidas utilizando notas promissórias ou no escritório do comprador acabam por ir contra a intenção de uso provado. A identidade do comprador em si pode indicar também a intenção de uso comercial, como no caso de um fotógrafo profissional ao adquirir uma câmera.211

Ainda, a intenção pode ser verificada pelas manifestações do comprador. Por exemplo: um advogado envia pedido de compra em papel timbrado, informando tratar-se de compra para uso doméstico. Caso as informações estejam incorretas, não podendo o vendedor saber da real intenção do comprador, a CISG não é afastada automaticamente. O vendedor precisa efetivamente identificar ou ao menos ter podido identificar que as mercadorias adquiridas são para o uso pessoal. A intenção da ressalva

210 KUYVEN, Fernando. Comentários à Convenção de Viena: compra e venda internacional de

mercadorias. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 64.

211 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

“dever saber” extrai uma interpretação no sentido de saber se existe uma forte negligência do vendedor para afastar a aplicação da CISG.212

Outro exemplo utilizado pelos autores é o seguinte: “Quando um vendedor contrata a aquisição de um caminhão de 40 toneladas, alegando falsamente que este será usado em âmbito domiciliar, o afastamento unilateral da Convenção não pode ser aceita”.213Em outras palavras, caso as manifestações do comprador tentem induzir uma intenção forjada, cabe ao vendedor elidir referida presunção por meio dos indícios apresentados.