• Nenhum resultado encontrado

Identificando pontos de intersecção entre o Código de Defesa do Consumidor e

9. A CISG COMO MÁXIMA HARMONIZADORA DA LEI APLICÁVEL A

10.1 Identificando pontos de intersecção entre o Código de Defesa do Consumidor e

doméstico

A despeito da demora do Brasil em aderir à CISG e as críticas de que já seria o momento de atualizações ao texto convencional, não há como negar as inúmeras vantagens trazidas ao País com a participação na comunidade internacional que aplica a CISG aos contratos de compra e venda de mercadorias.

A inclusão da CISG no ordenamento jurídico brasileiro faz com que os termos convencionais precedam os dispositivos atuais do Código Civil brasileiro e leis comerciais no que tange aos contratos comerciais internacionais de compra e venda de mercadorias.

Apesar de a doutrina ser enfática no sentido de que não há incompatibilidade entre a CISG e a ordem jurídica nacional232 (a CISG não ofende os dispositivos constitucionais ou de ordem pública brasileiros), resta evidente que a CISG provoca mudanças nas obrigações e nos direitos advindos dos contratos internacionais de compra e venda de mercadorias, que passam a ser disciplinados pela CISG.233

231 HONNOLD, John O. Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations

Convention. 3. ed. The Netherlands: Kluwer Law International, 1999. p. 4.

232 Vide, neste sentido, Parecer da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional por ocasião da

discussão do Projeto Legislativo 222-a de 2011, que deu origem ao Decreto Legislativo (RArb 37, p.282) e Ana Tereza Basilio, Aplicação e interpretação da Convenção de Viena sob a perspectiva do direito brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: IOB, p. 44.

233 BENETI, Ana Carolina. A Convenção de Viena sobre compra e venda internacional de mercadorias

No tocante à questão da qualificação de consumidor que faz o direito brasileiro, poderá haver o que se convencionou chamar vulgarmente de “conflito de qualificação” entre as regras da CISG e do direito brasileiro. Isso porque não se trata de um contrato qualquer de consumo cuja qualificação seria idêntica no CDC e na CISG para o caso de “pessoa física que adquire algo para uso pessoal, familiar ou doméstico”, pois nesse caso não há dúvidas de que a CISG não seria aplicada.234

A discussão surge quando (i) o direito brasileiro qualifica determinado sujeito como consumidor por ser destinatário final na cadeia de consumo, sendo ele pessoa física ou jurídica, e (ii) a CISG o define, pela finalidade da aquisição ou venda, como comprador sujeito aos termos convencionais. Em outras palavras, deverá ser esclarecido como deverá proceder o operador do direito nos casos em que o CDC descreve a relação como consumerista e a CISG como não consumerista.

A dúvida surge diante da maior amplitude do conceito de relação de consumo existente na legislação brasileira e, principalmente, para os conceitos existentes acerca da figura do consumidor. Nesse sentido, como visto anteriormente, o conceito de consumidor pode abranger não somente aquelas pessoas físicas que adquirem produtos e serviços para uso pessoal, mas também pessoas jurídicas de todos os portes e finalidades, desde que consideradas destinatárias finais na cadeia de consumo.

Geralmente, as normas de proteção ao consumidor agarram-se na premissa do comprador hipossuficiente e vulnerável. A CISG, a contrario sensu, não tem essa intenção. Tendo a norma protecionista caráter de “lei de polícia” e de aplicação imperativa na maioria dos sistemas jurídicos, a cláusula exclusionista visa mitigar o conflito de leis. Fernando Kuyven afirma que a controvérsia estaria limitada à pessoa jurídica destinatária final pelo CDC, mas, como visto no item supra, a pessoa física

PEREIRA, Cesar A. TRIPODI, Leandro (Coord.). A CISG e o Brasil. Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. São Paulo: Marcial Pons; Curitiba: Federação das Indústrias do Estado do Paraná, 2015. p. 99.

234 KUYVEN, Fernando. Comentários à Convenção de Viena: compra e venda internacional de

pode realizar a compra ou venda internacional de mercadoria para fins comerciais, o que faz incidir a aplicação da CISG.235

Assim, apesar de a CISG não ter o objetivo de regulamentar relações de consumo entre partes internacionais em contratos de compra e venda de mercadorias, é evidente que há, em comparação com o CDC, uma diferença nos conceitos de relação de consumo que pode criar dúvidas a respeito da legislação a ser aplicada em determinado contrato com a participação de partes brasileiras.236

A intenção dos autores da CISG, ao excepcionalizar a aplicação do texto às relações de compra e venda de uso pessoal, familiar ou doméstico, foi justamente restringir o seu alcance e simplificar a análise da hipótese prática para fins de determinação acerca do seu enquadramento, bastando verificar a destinação do bem transacionado.

Nesse sentido, pouca importa à CISG a natureza jurídica dos agentes envolvidos na operação internacional, podendo ser eles pessoas físicas ou jurídicas ou mesmo a atividade desenvolvida pelas partes contratantes, bastando que haja transação de compra e venda internacional entre partes localizadas em Estados distintos, com a ressalva prevista no art. 2(a).

Um exemplo de situação nebulosa pode surgir quando a destinação do bem pretendida é mista, ou seja, destina-se tanto ao uso profissional quanto ao uso pessoal.

Portanto, vale pontuar que em sentido contrário às “finalidades domésticas” as “finalidades comerciais” da compra e venda da CISG abrangem além do uso para a indústria, a utilização da mercadoria para o uso profissional, por exemplo, a compra de equipamentos de escritório por um advogado, dicionários por um escritor, vestimentas

235 KUYVEN, Fernando. Comentários à Convenção de Viena: compra e venda internacional de

mercadorias. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 66.

236 BENETI, Ana Carolina. A Convenção de Viena sobre compra e venda internacional de mercadorias

(CISG) e a questão do direito do consumidor. In: SCHWENZER, Ingeborg; GUIMARÃES PEREIRA, Cesar A. TRIPODI, Leandro (Coord.). A CISG e o Brasil. Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. São Paulo: Marcial Pons; Curitiba: Federação das Indústrias do Estado do Paraná, 2015. p. 102.

impermeáveis pelo capitão de um navio, câmera fotográfica por um fotógrafo profissional ou produtos de higiene por um empresário para seus colaboradores.237

Por exemplo, há quem entenda que se devem diferenciar os itens de colecionadores em coleções privadas e profissionais, nos quais neste último se aplica a CISG.238

Em resumo, verifica-se então que o fotógrafo que adquire uma máquina fotográfica para o exercício de sua profissão, um advogado que compra um computador para o seu escritório ou um comerciante que compra um automóvel para revenda são exemplos de contratos em que a CISG é aplicada.239 No tocante ao exemplo do advogado que adquire um computador, o jurista brasileiro poderia entender que, em razão da ausência de expertise do profissional (hipossuficiente), na sua relação com o fornecedor fabricante do maquinário (vulnerabilidade), do fato de a mercadoria não ser incorporada na atividade-fim como insumo (destinação final do produto), aplicar-se-ia a legislação consumerista.

Em casos como esse, em que há finalidade mista da aquisição do bem, Dário Moura Vicente afirma que a doutrina tem expressado entendimento no sentido de que as regras da CSIG devem ser aplicadas, na medida em que estariam excluídas apenas as hipóteses em que o uso pretendido para o bem seja exclusivamente privado.240

Logo, entendeu a Suprema Corte da Finlândia:

O Artigo 2(a) da CISG, que estabelece que a Convenção não se aplica a vendas de bens comprados para uso pessoal, familiar ou residencial, a menos que o comprador, em alguma ocasião antes da assinatura ou na própria ocasião da assinatura do contrato, não soubesse ou não tivesse como saber que os bens comprados serviriam para um

237 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas

sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. São Paulo: RT, 2014.

238 NEUMAYER, Karl H.; MING, Catherine. Convention de Vienne sur les contrats de vente

internationale de marchandises. Lausanne: Cedidac, 1993. v. 24, p. 54.

239 PIGNATTA, Francisco Augusto. Comentários à Convenção de Viena de 1980. Disponível em:

<http://www.cisg-brasil.net/doc/fpignatta-art3.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2015.

240 VICENTE, Dário Moura. Desconformidade e garantias na venda de bens de consumo: A Directiva

1999/44 e a Convenção de Viena de 1980. Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, n. 48, p. 4, 2003.

daqueles usos. A Suprema Corte julgou que, levando em conta o histórico legislativo da Convenção, a interpretação do Artigo 2(a) deve ser a de que a CISG também se aplica a vendas em que os bens são comprados parcialmente para fins comerciais e parcialmente para uso pessoal. Quando o Artigo foi redigido, foi considerado se deveria ser atribuída alguma significância à finalidade precípua na determinação do escopo da Convenção, mas a proposta foi rejeitada. O significado do Artigo 2(a) deve ser interpretado restritivamente de forma que ele se aplica somente a vendas de bens exclusivamente para uso pessoal.241

Diferentemente da qualificação de consumidor prevista pelo art. 2.º do Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC), a CISG trata de “uso pessoal, familiar ou doméstico”, restringindo a figura do consumidor somente à pessoa física. A expressão foi cuidadosamente escolhida para não haver dúvidas em relação à figura do consumidor.242

Outra questão relevante refere-se ao fato de que, diferentemente do CDC, a CISG não define a figura do vendedor (“fornecedor”). No caso, também será aplicada a CISG quando o vendedor for pessoa física (não comerciante), e realizar a venda da mercadoria que será destinada para fins comerciais. O importante é a qualificação da transação (internacional e comercial), bem como intenção do comprador, o qual, se não utilizar o bem adquirido para fins “pessoais, familiares ou doméstico”, terá o negócio submetido à CISG.

Nesse cenário, podemos indicar o seguinte exemplo: Pedro, estudante paraguaio vende seu computador usado pela internet para uma lan house brasileira. Nesse caso, a CISG será aplicada, posto que o art. 2(a) somente considera a figura do comprador e a finalidade da compra, independentemente da pessoa do vendedor.243

Em decisão proferida pela Corte Suprema austríaca, entendeu-se que a CISG não se aplicava à venda de uma Lamborghini, pois o comprador adquiriu o carro para uso pessoal. O requerido, um vendedor austríaco de carros italianos importados,

241 Korkein Oikeus [Suprema Corte]. 14 out. 2005. Disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/>.

Acesso em: 5 abr. 2015.

242 KUYVEN, Fernando. Comentários à Convenção de Viena: compra e venda internacional de

mercadorias. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 62.

vendeu um Lamborghini Countach para o requerente, um comprador suíço. O vendedor, entretanto, não podia entregar o carro para o comprador. O tribunal decidiu que, uma vez que o carro havia sido comprado para uso pessoal, de acordo com seu art. 2(a), a CISG não era aplicável. No entanto, o tribunal afirmou que a CISG poderia ter sido aplicada ao caso, se o vendedor houvesse provado que “não soube[r], nem devesse saber, que as mercadorias são adquiridas para tal uso”.

Nesse julgado, a Corte manifestou seu entendimento no sentido de que a análise do enquadramento do negócio à exceção do art. 2.º , alínea (a), deve ater-se ao uso pretendido pelo comprador no momento em que o contrato foi celebrado, e não quando da entrega do bem ou do uso dado a ele posteriormente:

No entanto, mesmo que a CISG seja aplicável ao abrigo do Art. 1(1), ela não se aplica às vendas de mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, a menos que o vendedor, a qualquer momento antes ou na conclusão do contrato, não sabia nem devesse saber que os bens foram comprados para tal uso (cf. Art. 2(a) da CISG). A intenção e não o uso real dos bens tem de ser considerado (Karollus, UN-Kaufrecht, 25 com referência a von Caemmerer / Schlechtriem / Herber, artigo 2(1)). A este respeito, o Juízo de Primeira Instância entendeu que o [comprador], sendo um empregado, não celebrou o contrato como contrato mercantil, mas pretendeu comprar o carro para uso pessoal. Decorre da redação do Art. 2(a) da CISG que o vendedor tem o ônus de provar que a contraexceção é cumprida (Karollus, 26 com referência a Czerwenka, Rechtsanwendungsprobleme, p. 150). No presente caso, não há necessidade de se considerar a opinião de von Caemmerer/Schlechtriem/Herber, art. 2 parág. 15, e segs., segundo os quais o deslocamento do ônus da prova depende da parte que quer contar com a aplicabilidade do CISG. Como dito acima, nenhuma das partes tem contado com a aplicação da CISG.244

O entendimento esposado pela Corte encontra-se em consonância com a segunda parte do art. 2(a), uma vez que o vendedor no momento da conclusão do contrato podia saber que a mercadoria estava sendo adquirida para uso pessoal.245

244 Oberster Gerichtshof, Áustria [Suprema Corte], 11 fev. 1997. Disponível em: <http://www.cisg.law.

pace.edu/>. Acesso em: 5 abr. 2015.

245 Nesse sentido, o Tribunal da Áustria consignou: “O requerido, um vendedor austríaco de carros

italianos importados, vendeu um Lamborghini Countach para o requerente, um comprador suíço. O vendedor, entretanto, não podia entregar o carro para o comprador. O tribunal decidiu que, uma vez que o carro havia sido comprado para uso pessoal, de acordo com seu artigo 2(a), a CISG não era aplicável. No entanto, o tribunal afirmou que a CISG poderia ter sido aplicada ao caso, se o vendedor