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Invisíveis ou indesejáveis : adolescentes em situação de rua e a violência ancorada em seu cotidiano

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

RACHEL ESTEVES SOEIRO

“INVISÍVEIS OU INDESEJÁVEIS: ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA E A VIOLÊNCIA ANCORADA EM SEU COTIDIANO”

Campinas 2018

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RACHEL ESTEVES SOEIRO

“INVISÍVEIS OU INDESEJÁVEIS: ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA E A VIOLÊNCIA ANCORADA EM SEU COTIDIANO”

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Ciências na área de Concentração de Saúde da Criança e do Adolescente

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA DE LURDES ZANOLLI

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA RACHEL ESTEVES SOEIRO E ORIENTADA PELA PROF. DRA. MARIA DE LURDES ZANOLLI

Campinas 2018

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

RACHEL ESTEVES SOEIRO

Orientador (a) PROF(A). DR(A). MARIA DE LURDES ZANOLLI

MEMBROS:

1. PROF(A). DR(A). MARIA DE LURDES ZANOLLI

2. PROF(A). DR(A). KARINA DINIZ OLIVEIRA

3. PROF(A). DR(A). TADEU DE PAULA SOUZA

Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

(5)

A todas e todos os adolescentes que tiveram sua infância roubada e a quem todos os direitos foram negados.

(6)

AGRADECIMENTOS

Por diversas vezes ouvi que escrever uma Dissertação ou uma Tese era equivalente a parir. Após muito tempo de exaustiva pesquisa, leitura e conversas, tenho certeza de que esta Dissertação foi gestada e, finalmente parida. Não só por mim, mas por muitas pessoas que talvez nem saibam que fizeram parte deste importante processo.

Aos meus pais que me deram a dádiva de escolher meu próprio caminho e sempre estão ao meu lado, apoiando as minhas escolhas

As minhas irmãs que foram as primeiras pessoas de quem eu cuidei e minhas primeiras alunas e, que hoje, cuidam de mim com muito afeto

À Lurdinha, minha querida orientadora que me ensinou a Medicina que não existe nos livros e me inspira todos os dias como médica e ser humano

Ao Gérard, o companheiro que me está sempre ao meu lado e me apoiou em todos os momentos desta pesquisa, principalmente na difícil fase da escrita

À Érika e Marie as irmãs com que a vida me presenteou que sempre estão comigo para o que der e vier

À Carina, por me incluir na sua família, pelas viagens e pelas dicas valiosas nesta Dissertação.

À Lêzinha, pelo cuidado afetuoso e pela ajuda preciosa no mundo acadêmico

À Mara, Erikinha, Lupe, Luciana, mulheres que admiro muito e com quem aprendo sempre

Ao Bruno, querido amigo de muitos anos que me trouxe o Norte neste Mestrado À Amarylis, minha grande maestra e hoje grande amiga que me mostrou que a Medicina é muito mais do que aprendemos na faculdade

À Alcyone, pela força em todos os momentos, por acreditar em meu trabalho e pelo seu grande amor pelo Consultório na Rua

À Susy pela sua dedicação em me ajudar nas entrevistas À Monique pela gentileza de desenhar os fluxogramas

(7)

À equipe da Medicina de Família da Unicamp, responsáveis pela minha formação À equipe da Vila Esperança, meu primeiro trabalho com quem aprendi o verdadeiro significado do trabalho em equipe

Às equipes de MSF com quem trabalhei nos contextos mais diversos e com quem aprendi muito mais que trabalho humanitário

À Angela, minha querida professora de yoga

À toda a equipe do Consultório na Rua de Campinas por quem tenho enorme admiração, e que tornam a vida das pessoas em situação de rua menos pesada A todas e todos os pacientes que permitiram que eu, de alguma forma entrasse em suas vidas e confiaram e mim para que eu pudesse aliviar o seu sofrimento

Às(aos) adolescentes que aceitaram dividir comigo suas vidas, seus medos, suas angústias e seus sonhos, possibilitando e realização deste trabalho

(8)

EPÍGRAFE

“Já Faz Tempo que Escolhi

A luz que me abriu os olhos para a dor dos deserdados

e os feridos de injustiça, não me permite fechá-los nunca mais, enquanto viva.

Mesmo que de asco ou fadiga me disponha a não ver mais,

ainda que o medo costure os meus olhos, já não posso

deixar de ver: a verdade me tocou, com sua lâmina

de amor, o centro do ser.

Não se trata de escolher entre cegueira e traição.

Mas entre ver e fazer de conta que nada vi ou dizer da dor que vejo

para ajudá-la a ter fim, já faz tempo que escolhi”.

(Publicado no livro Mormaço na Floresta (1981). In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira)

(9)

RESUMO

A presente Dissertação tem como objetivo conhecer a população de adolescentes e jovens em situação de rua atendidos pelo Consultório na Rua (CnaR) no município de Campinas (SP), Brasil. Trata-se de um estudo com abordagem quanti-qualitativo no qual realizou-se entrevistas (roteiro semiestruturado) com adolescentes/jovens atendidos pela equipe do CnaR. Foram entrevistados 51 adolescentes/jovens: 17 do sexo feminino, 32 do sexo masculino e duas transexuais femininas; as idades variaram entre 11 e 24 anos; 39 (76,5%) já viveram em abrigos; 49 fazem uso de substâncias psicoativas (96%), 100% referiu já ter sofrido alguma forma de violência. A trajetória de vida mais detalhada das três adolescentes apresentadas, assim como a de todos os outros que participaram do estudo é permeada pela violência física, psicológica, institucional, de gênero, homo/transfóbica. Em muitos casos, as estruturas que deveriam protegê-los perpetuam a violência quando os impedem de entrar em transportes públicos ou se recusam a atendê-los nos serviços de saúde. O CnaR consegue acessar parte dessa população, realizando ações de assistência e de promoção à saúde. O desafio é pensar em outras políticas públicas que incluam toda essa população, diminuindo o seu medo do Estado e das instituições que deveriam acolhê-la, garantindo o acesso a seus direitos.

Palavras Chaves: Adolescentes/Jovens em Situação de Rua; Violência; Atenção à Saúde.

(10)

ABSTRACT

The aim of this Dissertation is to get to know the homeless youth assisted by “Consultório na Rua”, mobile health care team in the City of Campinas (SP), Brazil and to highlight the forms of violence that permeate their lives describing the trajectory of three teenagers. This is a quantitative-qualitative study, for which were conducted interviews (semi-structured script) with adolescents/young people assisted by “Consultório na Rua” team. Fifty-one adolescents were interviewed: 17 females, 32 males and two transsexual females; aged 11 to 24 years; 39 (76.5%) have already lived in shelters; 49 used psychoactive substances (96%), 100% reported had already suffered some form of violence. The life history of the three adolescents presented, as well all the others who participated in the study, is permeated by physical, psychological, institutional, gender, homo/transphobic violence. In many cases, the Institutions that should protect these youths perpetuate the violence when they are prevented from using public transportation or refused at health centers when they look for care. The “Consultório na Rua” accesses part of this population, performing health care and promoting actions. The challenge is to think about other public policies that include all this population, reducing their fear of the State and the Institutions that should protect them, guaranteeing access to their rights.

(11)

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Registro fotográfico do abandono de crianças 27

Figura 2 Tipologia da violência OMS 32

Gráfico 1 Evolução das taxas de mortalidade por causas externas de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos 34

Figura 3 Fluxograma de atendimento às crianças e adolescentes

vítimas de violência doméstica (sem lesão) de Campinas 47

Figura 4 Fluxograma de atendimento às crianças e adolescentes

vítimas de violência doméstica (com lesão) de Campinas 48

Figura 5 Mapa dos Distritos de Saúde e distribuição das UBS de

Campinas 49

Quadro 1 Centros de Saúde de Campinas por Distritos de Saúde 51

Figura 6 Fluxograma da rede de saúde de Campinas para a PSR 60

Figura 7 Fluxograma da Assistência Social de Campinas para

maiores de 18 anos 60

Figura 8 Fluxograma da Assistência Social Média Complexidade de

Campinas para menores de 18 anos 61

Figura 9 Figura 9: Fluxograma da Assistência Social Alta

Complexidade de Campinas para menores de 18 anos 61

Figura 10 Campo da Catedral 65

Figura 11 Campo do Largo do Pará 65

(12)

Figura 13 Oficina de Música no Campo do SAMIM 66

Figura 14 Oficina de Terapia Ocupacional no Campo do Largo do

Pará 66

Figura 15 Campo móvel 1 67

Figura 16 Campo móvel 2 67

Figura 17 Campo móvel 3 67

Figura 18 Água disponibilizada em todos os campos 68

Figura 19 Cachimbos de crack fabricados por usuários 68

Figura 20 Piteiras disponibilizadas no kit de Redução de Danos 68

Figura 21 Frente e verso da nota disponibilizada no kit de Redução

de Danos 69

Figura 22 Material disponibilizado no kit para Usuários de Droga

Injetável 69

Figura 23 Material explicativo disponibilizado junto com o kit para

Usuários de Droga Droga Injetável 70

Figura 24 Protetor labial disponibilizado no kit de Redução de Danos 70

Figura 25 Preservativos feminino e masculino disponibilizados no kit

(13)

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Caracterização geral das(dos) 51 adolescentes/jovens

entrevistadas(os) 81

Tabela 2 Uso de SPA e de preservativos, Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) nas(nos) adolescentes e jovens estudadas(os) 82 Tabela 3 Frequência de institucionalização e violência 83 Tabela 4 Aspectos relacionados à maternidade e à vida reprodutiva das

adolescentes entrevistadas 84

Tabela 5 Aspectos relacionados à maternidade e anticoncepção 85 Tabela 6 Adolescentes em situação de rua e a rede de saúde 86

(14)

LISTA DE ABREVIATURAS

ACS: Agente Comunitário de Saúde APS: Atenção Primária à Saúde

CAPS: Centro de Atenção Psicossocial

CAPSad: Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e drogas CAPSij: Centro de Atenção Psicossocial para a Infância e Juventude

CAPS III: Centro de Atenção Psicossocial 24 horas Ceamo: Centro de Apoio à Mulher Operosa

Cebrid: Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas CeCo: Centro de Convivência

CIAP: Classificação Internacional de Atenção Primária

CMDCA: Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CMPCA: Centro Municipal de Proteção à Criança e ao Adolescente Conanda: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CnaR: Consultório na Rua

CNAS: Conselho Nacional de Assistência Social

Condeca: Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

CRAS: Centro de Referência de Assistência Social

CREAS: Centro de Referência Especializado da Assistência Social CS: Centro de Saúde

CT: Conselho Tutelar

ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente EUA: Estados Unidos da América

FCM: Faculdade de Ciências Médicas

Febem: Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor Funabem: Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor HIV: Vírus da Imunodeficiência Humana

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Inpad: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas

Ipea: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IST: Infecções Sexualmente Transmissíveis

(15)

LGBT: Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais LOAS: Lei Orgânica da Assistência Social MAC: Método Contraceptivo

MP: Ministério Público

MVM: Movimento Vida Melhor

OMS: Organização Mundial da Saúde ONG: Organização não Governamental ONU: Organização das Nações Unidas PA: Pronto-Atendimento

PAEFI: Programa de Acompanhamento Especializado para Famílias e Indivíduos PNAB: Política Nacional de Atenção Básica

PNCFC: Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária

PS: Pronto-Socorro

PSR: População em Situação de Rua RAPS: Rede de Atenção Psicossocial RAS: Redes de Atenção à Saúde RD: Redução de Danos

SAM: Serviço de Assistência ao Menor

Samim: Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante SAMU: Serviço Médico de Urgência

SPA: Substância Psicoativa

Sapeca: Serviço de Acolhimento e Proteção Especial à Criança e ao Adolescente Sares: Serviço de Acolhimento e Referenciamento Social

Senad: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas SIDA: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

SOS Rua: Serviço de Orientação Social à Pessoas em Situação de Rua

SPSS: Statistical Package for Social Sciences SUS: Sistema Único de Saúde

SUAS: Sistema Único de Assistência Social

TALE: Termo de Assentimento Livre e Esclarecido TCLE: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UBS: Unidade Básica de Saúde

(16)

UER: Unidade de Emergência Referenciada

Unesco:Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Unicamp: Universidade Estadual de Campinas

Unicef: Sigla do inglês para Fundo das Nações Unidas para a Infância VIJ: Vara da Infância e Juventude

(17)

SUMÁRIO

PRÓLOGO ... 19

1. INTRODUÇÃO ... 22

1.1. Definição de Adolescência ... 22

1.2. Epidemiologia dos adolescentes brasileiros ... 24

1.3. Breve histórico das crianças e adolescentes em situação de rua ... 25

1.4. Quem são os adolescentes e jovens em situação de rua ... 27

1.5. Adolescentes/jovens em situação de rua e a violência ... 30

1.6. Políticas públicas para adolescentes e jovens em situação de rua ... 35

2. OBJETIVOS ... 42

3. HIPÓTESES/PRESSUPOSTOS ... 43

4. MÉTODO ... 44

4.1. Tipo de estudo ... 44

4.2. A realidade reapresentando-se a esta autora... ... 44

4.3. A rede intersetorial de Campinas ... 45

4.4. Caracterização e seleção das(os) participantes ... 62

4.5. Construção do instrumento para abordagem no campo ... 62

4.6. Caracterização dos campos ... 64

4.7. Preparação para as entrevistas ... 70

4.8. Desenrolar das entrevistas ... 72

4.9. Percurso Metodológico ... 75

5. RESULTADOS ... 79

5.1. Caracterização da população de adolescentes/jovens em situação de rua ... 80

5.2. Apresentação dos dados qualitativos ... 86

5.3. Os convites e os encontros ... 87

5.4. Os não convites... ... 96

5.5. Análise dos dados ... 100

6. DISCUSSÃO ... 102

6.1. A violência enquanto problema de saúde pública ... 102

6.2. A maternidade: desejo x culpa / prazer x sofrimento ... 106

6.3. A exclusão em um mundo de excluídos... 112

6.4. As hipóteses/pressupostos e o mundo real ... 116

6.5. O cenário irreal de Campinas ... 120

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 124

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 125

9. APÊNDICE ... 140

(18)

10. ANEXOS ... 142

10.1. Questionário com roteiro semiestruturado ... 142

10.2. Termo de Assentimento Livre e Esclarecido ... 147

(19)

PRÓLOGO

“Um homem precisa viajar.

Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor.

Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto.

Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto.

Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser.

Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir e ver.”

Amyr Klink 1

A pesquisa é uma viagem, dentro de seu campo, permite viajarmos para dentro do outro e, depois para dentro de nós mesmos. É impossível não ser modificado ou tocado pela pesquisa, pelo encontro com o outro.

Sobre a decisão de estudar os adolescentes e jovens em situação de rua

As minhas primeiras memórias de crianças e adolescentes em situação de rua, são de minha infância. Na época, tinha cerca de 4 anos e meu pai costumava ir ao Mercado Municipal da cidade de São de Paulo (SP)2 para comprar frutas (na década de 80 o “Mercadão” não era nada turístico, o prédio era abandonado e comprar lá significava encontrar preços baixos).

Lembro-me de ter visto por várias vezes os caminhões que chegavam para descarregar as frutas. Durante o processo sempre caiam frutas no chão e, imediatamente, crianças pouco mais velhas do que eu, corriam para pegar as frutas

1 Livro Mar Sem Fim, 2000, Cia. Das Letras

(20)

que caíam. Eu não compreendia como podia ser possível que elas comessem as frutas do chão, muitas vezes já amassadas ou mesmo apodrecidas.

As imagens dessas crianças tiravam-me o sono todas as vezes que ia ao Mercadão, como era possível que crianças vivessem em uma situação como esta?

Já adolescente li um livro, sobre as(os) adolescentes em situação de rua que moravam no Largo da Sé, na cidade de São Paulo. Eu tinha a mesma idade dos personagens e meu mundo era completamente diferente do deles, como isso era permitido?3

Anos se passaram, terminei a graduação em Medicina e fiz a residência em Medicina de Família e Comunidade. Trabalhei no SUS como médica de família em um bairro de periferia em Jundiaí durante dois anos. Posteriormente, como integrante da Organização Não Governamental (ONG) Médicos sem Fronteiras, trabalhei no Níger, no Sudão do Sul, na República Democrática do Congo e na Guiné; por diversas vezes vivenciei situações extremas nas quais os Direitos Humanos eram constantemente violados.

De volta ao Brasil, em 2014, comecei a trabalhar com uma equipe diferente, pertencente à Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), chamada Consultório na Rua (CnaR), na cidade de Campinas (SP).4

Nesta equipe, deparamo-nos diariamente com aquelas situações de extrema vulnerabilidade que me tiravam o sono na infância.

Graças as políticas sociais do Governo Lula, o número de crianças em situação de rua havia diminuído bastante, no entanto, os adolescentes continuavam na rua, vivenciando situações de violência, preconceito e de abandono, na maioria das vezes invisíveis à sociedade.

Acredito que muitos de nós, por medo, ou por nos sentirmos impotentes, preferimos as nossas lentes seletivas, enxergando aquilo que nos dá a sensação de lugar conhecido, confortável e, por diversas vezes, essas/esses adolescentes passam por nós sem que os notemos, ou, se os vemos, rapidamente subimos o vidro do carro para que não se aproximem.

Eu, que me imaginava experiente em vulnerabilidades, de repente, em vários momentos não sabia, como lidar com essa população que, com tão pouca idade havia vivido situações difíceis de imaginar, daquelas que vimos em filmes dramáticos

3 Livro: “Eu gosto tanto de você...”, Leila Rentroia Ianone, 1992, Editora Veredas, 9ª. edição 4 O município de Campinas nesta Dissertação é sempre no Estado de São Paulo

(21)

premiados, dando-nos a sensação de que este mundo existe apenas no imaginário fictício cinematográfico.

Quem eram esses e essas adolescentes e jovens que circulam nas ruas de Campinas? Por que foram para a Rua? Quais os seus sonhos, desejos e medos?

Motivada por essas questões, decidi buscar entender esta população. Deste modo, a minha implicação neste Mestrado, não é apenas como pesquisadora, mas também como trabalhadora da equipe do Consultório na Rua de Campinas.

(22)

1. INTRODUÇÃO

1.1. Definição de Adolescência

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a adolescência como a população compreendida entre 10 a 19 anos de idade e a Organização das Nações Unidas (ONU), para fins estatísticos, caracteriza Juventude (Youth) pelo período situado entre 15 e 24 anos. Há, portanto, uma intersecção entre a segunda metade da adolescência e os primeiros anos da juventude. (1,2)

As políticas do Ministério da Saúde reconhecem a vulnerabilidade da população entre 10 e 24 anos e há diretrizes específicas para promoção e cuidado à saúde desta faixa etária. (2,3)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990, artigo 2º, classifica, para fins legais, crianças, a população até a idade de 12 anos incompletos, e adolescentes até 18 anos de idade. Em casos expecionais, e, expressos na lei, o ECA pode ser aplicável até os 21 anos de idade. (4–6)

Azevedo M.R.D. (7) divide ainda a Adolescência em três fases marcadas pelas modificações biológicas inerentes à puberdade e pelos aspectos sócio-psico-emocionais que estas mudanças implicam.

A primeira fase nomeia de Adolescência Inicial, dos 10 aos 14 anos, período correspondente à puberdade e que tem como aspecto prepoderante as mudanças morfológicas e fisiológicas que, ao final desta fase, indicarão a maturidade reprodutiva. (7)

A segunda seria a Adolescência Média, dos 14 aos 17/18 anos, período de consolidação da identidade no qual preponderam os aspectos psicosociais levando o adolescente a buscar modelos e a vincular-se a um grupo. Os problemas mais comuns neste período são referentes a sentimentos de inadequação, que exacerbados podem precipitar transtornos afetivos, comportamento sexual de risco, uso de drogas. (7)

A terceira fase corresponde à Adolescência Tardia, dos 18 aos 20/24 anos, período em que os jovens passam a incoporar o sistema de valores dos adultos, predominando as relações com grupos sociais formais. Os critérios que delimitam o final desta fase não são claros e variam de acordo com aspectos sócio-econômicos e culturais. (7)

(23)

Para além das definições políticas e estatísticas, é difícil definir a adolescência enquanto período da vida em termos precisos, pois cada indivíduo o experimenta de maneira diferente dependendo de sua maturidade física, emocional e cognitiva (8). Assim, parece ser mais adequado falar em adolescências e juventudes, levando-se em conta os diferentes grupos populacionais, porque essa etapa dentro do continuum da vida implicará em experiências diferenciadas e em significados específicos (9)

Frequentemente, fatores sociais e econômicos como a pobreza e o preconceito privam adolescentes e jovens do direito de acesso à educação, lazer e saúde. Além disso, esse grupo populacional é constantemente exposto aos riscos associados à violência física, aos distúrbios sociais, às migrações e aos conflitos armados, acrescentando-se ainda, o fato deste período de vida ser caracterizado pela instabilidade emocional, pelo desejo de pertencer a um grupo e pela curiosidade de experimentar tudo o que se apresenta como novo. (3,7).

Essa situação, na qual há a sobreposição de múltiplas variáveis como fatores biológicos e psicológicos, culturais, socioeconômicos, políticos, étnicos e raciais, pode aumentar a vulnerabilidade das(dos) adolescentes e jovens aos mais diversificados agravos à saúde. (7,9)

No entanto, essas vulnerabilidades não afetam todas e todos adolescentes e jovens da mesma maneira, o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em relatório sobre a adolescência brasileira, elencou nove indicadores que comprometem gravemente o desenvolvimento das(dos) adolescente e jovens brasileiros. São eles:

1. “a pobreza e a pobreza extrema 2. a baixa escolaridade

3. a exploração do trabalho

4. a privação da convivência familiar e comunitária

5. a violência que resulta em assassinatos de adolescentes 6. a gravidez

7. a exploração e o abuso sexual 8. as DST/AIDS

9. o abuso de drogas” (4)

Ao longo desta dissertação, constataremos que os adolescentes e jovens em situação de rua, estão expostos a todos esses fatores de vulnerabilidade.

(24)

1.2. Epidemiologia dos adolescentes brasileiros

Mesmo com a desaceleração do ritmo de crescimento da população brasileira, hoje, a geração de adolescentes e jovens de 10 a 24 anos de idade é a mais numerosa em toda a história do Brasil, representando, no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, um total de 51.402.821 pessoas (32,9% da população brasileira), sendo 34.157631 adolescentes de 10 a 19 anos e 17.245.190 jovens com idades entre 20 e 24 anos (10). A grande maioria (83%) das(dos) adolescentes e jovens brasileiros (10 a 24 anos) vive em áreas urbanas. (10) Com relação ao consumo de álcool e de outras drogas, um estudo do Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), realizado em 2004 em 108 cidades brasileiras (todas as cidades com mais de 200.000 habitantes), ressalta o alto consumo destas substâncias entre adolescentes e jovens (faixa etária entre 12 e 24 anos)(11). Dentre as drogas lícitas e ilícitas, as bebidas alcoólicas ocupam o topo da lista, tornando-se um importante problema de saúde pública. A prevalência do uso de álcool na vida é de 54,3% para adolescentes entre 12 e 17 anos e de 78,6% para jovens entre 18 e 24 anos. (11), para a dependência de álcool, as prevalências encontradas no estudo também são alarmantes: 7 % para adolescentes entre 12 e 17 anos e de 19,2% para jovens entre 18 e 24 anos. (11)

Outro estudo mais recente, realizado em 2012, pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) em cidades brasileiras de mais de um milhão de habitantes, a prevalência de uso na vida de álcool manteve-se elevada com taxas de 9% para a faixa etária de até 11 anos, 50% entre 12 e 14 anos e 41% entre 15 e 17 anos. (12)

Os dados já apresentados evidenciam, parcialmente, o panorama geral das(dos) adolescentes e jovens brasileiras(os). No entanto, apesar de tais dados representarem graves problemas de saúde pública, há ainda uma numerosa população de adolescentes e jovens brasileiros, privada do direito à convivência familiar e comunitária, encontrando-se em abrigos ou em situação de rua. Para estas e estes, muitas vezes faltam estatísticas, e as que temos, mostram que estão expostas(os) a toda a sorte de riscos, aumentando as já lamentáveis estatísticas brasileiras para mortes prematuras por violência, abuso e depedência de álcool e outras drogas e outras questões de saúde pública.

(25)

Segundo dados de um estudo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) de 2011, em 75 cidades do país (capitais e municípios com mais de 300 mil habitantes), além dos meninos e meninas vivendo em abrigos, estima-se que, atualmente no Brasil, há cerca de 24 mil adolescentes em situação de rua. (13)

Considerando-se o censo do IBGE de 2010 (51.402.821 habitantes entre 10 e 24 anos de idade), teríamos 0,5% da população de adolescentes e jovens vivendo em situação de rua.

Comparando-se com dados de outros países, este número é muito inferior ao encontrado. A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) estima que há cerca de 150 milhões de crianças e adolescentes em situação de rua no mundo (14). Nos Estados Unidos (EUA), a população de adolescentes e jovens em situação de rua é estimada em cerca de 2 milhões (entre 9 a 15 % do total desta população) (15,16). Deste modo, supomos que o número estimado para a população de adolescentes e jovens em situação de rua no Brasil esteja subnotificado.

Face a esses dados, de acordo com as Diretrizes Nacionais para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua, de 2017, não há estatísticas oficiais sobre a quantidade e o perfil desta população no Brasil.(17)

1.3. Breve histórico das crianças e adolescentes em situação de rua

O ato de abandonar os próprios filhos é antigo e ocorre em todas as culturas. Ao longo dos séculos ele foi asssistido de diferentes formas pela sociedade e pelo Estado, passando do formato assistencial e caritativo para obrigação e dever do Estado. (18)

Há várias descrições para definir o termo “crianças de rua” na literatura. Koller e Hutz afirmam que a população infanto-juvenil não está estática na rua.(19) A rua possui uma rede complexa de relações e situações, podendo ser local de moradia, trabalho, para passar o dia, de modo que é mais adequado nomear “crianças em situação de rua”. (20)

O termo criança de rua (Street children), foi utilizado pela primeira vez na literatura em 1851, pelo escritor, Henry Meyew, na obra “London labour and the

(26)

Outras grandes obras literárias também apresentam crianças vivendo nas ruas como protagonistas: “Oliver Twist” de Charles Dickens (1837), conta a história de um menino que foge de um abrigo e passa a viver nas ruas de Londres (22) e o pequeno Gavroche, a criança de rua que morre em uma das batalhas da Revolução Francesa, no romance “Os Miseráveis” de Victor Hugo (1862). (20)

Apesar de tais exemplos literários, a revisão histórica da literatura mostra uma visão menos “romântica” na descrição das crianças ou adolescentes em situação de rua, caracterizando-as(os) muitas vezes como sujas(os), incapazes de aceitar disciplina, desinteressadas(os) por estudos e amantes das drogas. (23) Os nomes utilizados para identificá-las(os) são igualmente pejorativos: “pivete”, “trombadinha”, “delinquente”, “menor infrator”. (24)

No Brasil, desde o segundo século da colonização, as crianças concebidas fora do casamento e ou filhas de moças solteiras de classe média alta eram abandonadas em calçadas, florestas ou outros locais. (25) Para acolher estas crianças abandonadas, a Igreja Católica criou a Roda dos Expostos, institucionalizando o abandono no Brasil e protegendo a identidade das moças solteiras das classes médias e altas. (18,25)

No início da República, encontram-se as primeiras estatísticas sobre o abandono, criminalidade e prostituição de crianças e jovens nas ruas da cidade de São Paulo. (18,26)

Gradualmente, a caracterização de que crianças e adolescentes na rua são agressores e infratores, deu lugar à compreensão de que esta população é vítima de uma exposição a diversos tipos de violência, sendo a rua, diversas vezes, o melhor cenário para sobrevivência (27).

No entanto, a dicotomia das crianças, adolescentes e jovens em situação de rua ora “coitadinhas(os)” ora bandidos, ainda é um discurso frequente na sociedade brasileira.

Já no final do século XIX o fotógrafo Jacob Riis registrou o abandono das crianças em metrópoles como Nova York (Figura 1). (28)

(27)

Figura 1 Registro fotográfico do abandono de crianças(28)

1.4. Quem são os adolescentes e jovens em situação de rua

Minayo em seu artigo “A violência na Adolescência: um problema de saúde pública” (29) cita a matéria, ainda atual nos dias de hoje, do pediatra-educador, Lauro Monteiro Filho, que descreveu a população de adolescentes e jovens em situação de rua no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, no primeiro caderno de 20 de maio de 1990:

“A população já conhece (e desconhece) estes meninos. Estão em todos os bairros, andam andrajosos, em bando. Praticam pequenos furtos, pedem, vendem frutas e balas e se oferecem para passar flanela nos vidros dos carros e nos sapatos. No seu dia-a-dia são explorados por marginais desocupados (e por policiais: acréscimo nosso). Dormem aglomerados uns aos outros, junto a respiradouros de transformadores de luz e metrô ou em qualquer lugar que possam encontrar para fugir do frio e da violência da noite. Comem o que conseguem. Urinam e evacuam onde podem. As pessoas os temem, os desprezam e os ignoram. Alguns vivem longe de suas famílias, há anos. Outros estão nas ruas, obtendo algum ganho para levar para casa (...)Têm em média 14 anos, 80% são do sexo masculino e 80% são negros e pardos. São franzinos — 70% estão abaixo da média brasileira em peso e 60% em altura, 80% têm pais ausentes, desconhecido ou morto. Apesar da desenvoltura em que vivem, muitos chupam dedo (e até chupeta) têm pesadelo e medo de escuro (...) Que adultos estão sendo forjados sob tamanho abandono social, sofrimento físico e emocional? Cada criança dessas é uma demonstração da inoperância do Estado e do egoísmo da Sociedade”.

(28)

A Unicef, em 1997, classificou os jovens em situação de rua, como aqueles que passam parte de seu dia na rua, retornando a suas casas ou abrigos no final do dia, ou aqueles que dormem na rua. (8)

Muitas vezes essas crianças e adolescentes começam a ir para a rua de forma gradual, passando, inicialmente, algumas horas do dia na rua e à noite retornando para a suas casas ou abrigos. À medida que vão conhecendo o “mundo da rua”, entendendo a dinâmica e estabelecendo novas relações, frequentam a rua também no período da noite, até que não retornam mais para dormir. (30,31)

Em todo o mundo, as causas para crianças, adolescentes e jovens encontrarem-se em situação de rua são inúmeras: abuso de álcool e outras drogas, morte dos pais, dinâmicas familiares complexas, guerras, desastres naturais, vulnerabilidade socioeconômica. (14,32)

Relatório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos afirma que, a maioria das crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua no mundo tiveram múltiplas violações de seus direitos antes de irem para as ruas, seja dentro da família, em abrigos, em centros de detenção ou reabilitação. (32)

Apesar da fragilidade dos dados estatísticos brasileiros que não tem estimativa de quantos são as(os) adolescentes e jovens vivendo em situação de rua atualmente, o levantamento do Conanda de 2011 estimou um total de 24 mil meninas e meninos em situação de rua que, dos quais 59,1% dormem na casa de seus familiares e trabalham nas ruas; 23,2% dormem nas ruas; 2,9% dormem temporariamente em instituições de acolhimento e 14,8% circulam entre esses espaços. Segundo os próprios meninos e meninas, a principal razão para estar nas ruas é a violência doméstica, responsável por 70% das citações sobre os motivos que os levaram a sair de casa. (13)

O relatório da Unicef sobre adolescentes brasileiros, evidencia que, mais do que excluídas(os), esses meninos e meninas em situação de rua são banidos, por preconceito e discriminação, mesmo por instituições que deveriam acolhê-las(os). (4) De acordo com o levantamento do Conanda, 12,9% dos entrevistados já haviam sido impedidos de receber atendimento na rede de saúde e 6,5% de emitir documentos; 36,8% deles tinham sido impedidos de entrar em algum estabelecimento comercial; 31,3%, de usar transporte coletivo; 27,4%, de entrar em bancos; e 20,1%, de entrar em algum órgão público. (13)

(29)

A transição da adolescência para a vida adulta é marcada pelo desafio das mudanças físicas, mentais e sociais. Para adolescentes em situação de rua, soma-se a esta fase de transição a falta de recursos financeiros e de suporte psicológico e social, expondo esta população a diversas situações de vulnerabilidade. (33)

Agravando este cenário, adolescentes em situação de rua tentam misturar-se a misturar-seus pares adolescentes que não estão em situação de rua, tentando passar desapercebidas(os) por serem menores de idade (34). Deste modo, esta população altamente vulnerável raramente acessa serviços institucionais como abrigos, assistência social, serviços de saúde, pois não vêm esses serviços como seus parceiros. (35)

Uma vez nas ruas, este grupo populacional apresenta altas taxas de abuso de SPA, de doenças sexualmente transmissíveis (incluindo HIV), gravidez, violência e suicídio (32). Estudo realizado com adolescentes que viviam ou trabalhavam nas ruas na Ucrânia revelou que 22% já havia feito uso de drogas injetáveis, 65% das meninas já havia se prostituído e, apenas 13% fazia uso de preservativo nas relações sexuais (32). Outra pesquisa realizada em Los Angeles (EUA) evidenciou que entre 35 a 60 % das(dos) jovens em situação de rua referiram terem se prostituído para obter comida, dinheiro, ou drogas ilícitas.(36)

Risley-Curtis investigou sobre a atividade sexual de 846 crianças/adolescentes entre 8 e 18 anos de idade em situação/circulação de rua em Baltimore (EUA): a idade de início da atividade sexual foi em média 8 anos de idade ou menos e, 30 % desta população admitiu ter relações sexuais desprotegidas e não utilizar nenhum método contraceptivo. (37)

Estudos internacionais evidenciam que adolescentes em situação de rua estão mais sujeitas(os) à privação de sono, doenças respiratórias, tuberculose, uso precoce de SPA (inclusive drogas injetáveis), hepatite B, HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis.(38–41)

Devido a exposição constante dessas e desses adolescentes/jovens a fatores estressantes e estigmatizantes, há um intenso sofrimento psicológico levando a maior propensão de transtornos mentais. Estima-se que 20% desta população apresentará transtorno depressivo antes de chegar à vida adulta. (42)

Estudo de revisão sistemática analisou 46 estudos com adolescentes e jovens em situação de rua (12 a 26 anos) e a prevalência de transtornos mentais encontrada em todos os estudos foi superior à encontrada em seus pares que não se

(30)

encontram em situação de rua. Os principais transtornos identificados foram depressão maior, transtorno de conduta, mania, pensamentos e comportamento suicidas, déficit de atenção, hiperatividade e transtorno pós-traumático. (43)

Outros estudos evidenciaram taxas de transtorno depressivo entre 29 a 84% dentre adolescentes em situação de rua e maior prevalência de transtornos psicóticos. (42,44)

Para algumas e alguns adolescentes e jovens em situação de rua, o uso de SPA é uma estratégia para lidar com os sintomas de saúde mental, considerando-se as SPAs como medicação para tais sintomas. (42)

Com relação ao uso de SPA, no Brasil, em 2003, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), juntamente com o Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) (45) realizou um levantamento sobre o uso de SPA em todas as capitais brasileiras, com 2.807 adolescentes entre 10 e 18 anos em situação de rua. A frequência de utilização das SPAs foi:

- tabaco: 44,5% uso no mês e 64% uso na vida - álcool: 43% uso no mês e 76% uso na vida - solventes: 29% uso no mês e 44% uso na vida - maconha: 25% uso no mês e 40% uso na vida

- cocaína, crack e merla: 13% uso no mês e 25% uso na vida

- medicamentos psicotrópicos: 5% uso no mês e 13% uso na vida (45)

O estudo também observou um rebaixamento da crítica e um aumento da impulsividade decorrentes da intoxicação pelo uso ou fissura pela droga, como brigas, roubos, prostituição. Além disso, foi relatado que 12,6% das entrevistadas e entrevistados já haviam tentado suicídio, muitos deles mais de uma vez. (45)

1.5. Adolescentes/jovens em situação de rua e a violência

A realidade apresentando-se a esta autora...

Lembro-me como se tivesse sido ontem, estava no primeiro ano do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ansiosa pela minha primeira ida ao Centro de Saúde (CS). O meu grupo iria para o São Marcos, o professor avisou que iríamos com o veículo oficial da Unicamp pois o território onde se encontrava o CS São Marcos era considerado “perigoso”. Era cerca de 8h30 da manhã e, à medida que nos aproximávamos do CS,

(31)

vi um movimento grande de pessoas em um terreno baldio, olhei mais atentamente e vi o corpo de um adolescente pardo, aparentando cerca de 17 anos. Havia também alguns policiais em volta do corpo, não consegui entender porque o adolescente estava tão exposto, sem nada para cobri-lo.

O CS era a alguns metros do terreno baldio, a coordenadora nos recebeu simpaticamente mas disse que não poderia falar muito tempo conosco porque a irmã do adolescente morto há alguns minutos sentiu-se mal e estava na sala de urgência. Não consegui dormir por várias noites, lembrando-me do rosto do adolescente.

Não foi preciso muitas idas ao CS São Marcos para entender que o assassinato de adolescentes era uma prática comum, ora pelos “chefes” do tráfico, ora pela polícia. Infelizmente, esses assassinatos haviam se tornado uma prática banal.

Retomando com a literatura...

A palavra violência tem sua origem latina na palavra violentia, do verbo

violare: tratar com violência, profanar, transgredir.(46)

A definição do dicionário para a palavra violência é “constrangimento físico ou moral; uso da força; coação. Violentar: exercer violência sobre; forçar; coagir; constranger; torcer o sentido de; alterar; inverter”. (47)

No primeiro relatório mundial sobre a violência, de 2002, a OMS define violência como:

“Uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”. (48) Marilena Chauí, define violência como: “...toda prática e toda ideia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural”. (49)

Minayo classifica a natureza da violência em quatro modalidades: física, psicológica, sexual e a violência envolvendo negligência, abandono ou privação de cuidados. Ela também afirma que a violência pode se manifestar de diversas formas: criminal, estrutural, institucional, intrafamiliar, interpessoal, estrutural, auto infligida, cultural, de gênero, racial, contra a pessoa deficiente. (50)

(32)

A figura abaixo resume a tipologia da violência de acordo com a OMS (48):

Figura 2: Tipologia da violência

Conceituar a violência não é algo fácil, há diversas definições desde a etimologia da palavra até as definições sociais, há diversos estudos sobre suas origens e implicações na sociedade, no entanto, até o momento há muito pouco sobre propostas para erradicar ou minimizar a violência. Quando se escuta as(os) adolescentes em situação de rua, percebe-se que há vários tipos de violência perpassando seus caminhos, desde muito pequenas(os).

De acordo com o comitê de Direitos Humanos das Crianças da ONU, em todo o mundo, crianças em situação de rua são expostas desde a tenra idade a diversas formas de violência física, sexual ou psicológica. (51)

Estudos internacionais corroboram que a relação entre violência e situação de rua entre crianças e adolescentes é um fenômeno mundial e esta condição, torna-as(os) vulneráveis, expondo-torna-as(os) a vários riscos para problemas de saúde como uso abusivo ou dependência de substâncias psicoativas (SPA), doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV. (52–55)

Estudo canadense apontou a associação existente entre maior risco de suicídio para adolescentes e jovens (14-26 anos) em situação de rua que relataram terem sofrido alguma forma de violência na infância. (56)

(33)

Adolescentes e jovens que se encontram em situação de rua experimentam praticamente todas as formas e naturezas da violência. São vítimas da violência estrutural, sofrem a violência institucional quando são impedidos de acessar serviços de saúde ou da assistência social. (4,13)

Geralmente sofreram violência intrafamiliar antes de irem para a rua. Estão imersos na violência criminal que dita as regras da rua, sofrem a violência policial cotidiana e a violência dos poderes paralelos ao Estado. Para negros, pardos e deficientes há ainda a violência racial e contra os deficientes. (51,57)

No Brasil, de acordo com indicadores do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2008, o segundo grupo mais prevalente nos atendimentos à violência foi de adolescentes de 10 a 19 anos de idade, entre as(os) quais a violência sexual representou 56% dos atendimentos; seguida das agressões psicológicas (50%), físicas (48%) e negligências e abandono (13%). (58)

Em Campinas, município do estudo, dados do Sistema de Notificações de Violência (SISNOV) de 2016 evidenciam que os atendimentos por violência concentraram-se na faixa etária entre 10-19 anos com 57,5% do total de notificações. (59)

Com a relação à mortalidade, no Brasil, os acidentes e violências ocupam a primeira causa de morte de adolescentes e jovens (60). Desde 1980 a taxa de homicídio entre jovens vem aumentando vertiginosamente. Nas décadas de oitenta e noventa houve um aumento de homicídios entre jovens de até 25 anos, respectivamente de 89,9% e 20,3%. Entre 2005 e 2015, o aumento foi de 17,2% com uma diminuição na idade média do homicídio de 25 para 21 anos. Se considerarmos apenas o ano de 2015, o homicídio de jovens entre 15 e 19 anos representou 53,8% do total de homicídios.(61)

No relatório sobre a prevenção da mortalidade mundial da OMS, os homicídios foram mais prevalentes entre a faixa etária de 15 a 29 anos com uma taxa de 18,2 para cem mil habitantes (62). No Brasil, esta taxa para a mesma faixa etária é de 60,9 homicídios para cem mil habitantes e quando se analisa os jovens vítimas de homicídio no Brasil entre 2005 e 2015, houve uma queda de 12,2% entre os jovens não negros com um aumento de 18,2% entre os jovens negros.(61)

Neste mesmo período, também se observa um aumento no número de mortes violentas não esclarecidas, chegando à 13,8% no estado da Bahia contra menos de 1% nos países desenvolvidos. (61)

(34)

O relatório sobre a violência da Unesco de 2015 mostrou que, entre 1980 e 2012, a população brasileira teve um crescimento de 61% enquanto os assassinatos por arma de fogo entre jovens tiveram um crescimento de 460%.(63)

O Gráfico 1 abaixo, extraído da Mapa da violência para adolescentes de 2015 (64), evidencia a evolução dos homicídios para esta faixa etária:

Fonte: Mapa da violência 2015: adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil (64)

Gráfico 1: Evolução das taxas de mortalidade por causas externas de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos.

Para adolescentes entre 16 e 17 anos, os homicídios aumentaram 641% entre 1980 e 2013. Dos homicídios ocorridos em 2013, destes 93% foram do sexo masculino e 73% entre negros ou pardos.(64)

Não há dados específicos sobre os homicídios entre adolescentes e jovens em situação de rua, muito provavelmente, essas mortes fazem parte das estatísticas dos casos não esclarecidos e rapidamente esquecidos.

O documentário “Falcão - Meninos do tráfico”, exibido em 2006, retratou a vida de 17 meninos que viviam nas favelas brasileiras envolvidos com o tráfico de drogas. Durante as gravações, 16 dos 17 meninos morreram vítimas da violência.(65) Em 23 de Julho de 1993, oito adolescentes entre 13 e 19 anos que dormiam em frente à Igreja da Calendária no Rio de Janeiro foram assinados por policiais, os sobreviventes reconheceram os algozes, nove homens foram indiciados, apenas três foram condenados. (66,67)

Os abusos cometidos pela polícia, sua falta de investigação e impunidade foi também relatado no relatório mundial sobre a prevenção da violência da OMS. (62)

(35)

Além dos casos de homicídios entre adolescentes e jovens, há a violência não fatal. Estudos evidenciam que para cada homicídio juvenil há cerca de 20 a 40 vítimas de violência juvenil não fatal recebendo tratamento hospitalar.(48)

As adolescentes em situação de rua estão ainda mais vulneráveis, convivem com todas as formas de violência somando-se a ela a violência de gênero: o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking mundial dos homicídios de mulheres, com uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres.(57)

A literatura internacional e nacional apontam que o estupro é o maior problema das mulheres em situação de rua (68–71). Estudo realizado na cidade de Los Angeles, EUA, com 974 mulheres em situação de rua evidenciou que 13% relataram terem sido vítimas de estupro no último ano, metade destas mulheres havia sido estuprada pelo menos duas vezes (68). Pesquisa qualitativa realizada em Ghana evidencia que a maioria das adolescentes e jovens em situação de rua que não tem um companheiro fixo já sofreu estupro coletivo, elas identificam seus agressores como “The killers”.(54)

Estudo realizado na cidade do Rio de Janeiro com mulheres usuárias de crack em situação de rua constatou que, nos últimos 12 meses, 48,7% havia procurado serviços de atendimento do SUS por violência física e 11,9% por violência sexual.(71)

Marilena Chauí, afirma que: “os meios de comunicação costumam referir-se à violência com as palavras “surto”, “onda”, “epidemia”, “crireferir-se”, ou referir-seja, termos que indicam um fenômeno anômalo, passageiro e acidental” (49), conforme discorrido até o momento, fica evidente, que a violência no Brasil é endêmica e, se considerarmos para efeitos midiáticos que estamos vivendo um “surto” ou uma “epidemia”, faz-se imperativo pensarmos em políticas públicas para resolvê-la.

1.6. Políticas públicas para adolescentes e jovens em situação de rua

Do período colonial até meados do século XIX, as políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua baseavam-se no assistencialismo, sem a pretensão de realizar mudanças sociais. As Câmaras Municipais eram oficialmente responsáveis por prover assistência às crianças e adolescentes abandonadas(os). No entanto, elas delegavam tal função às Santas Casas de Misericórdia, através de convênios e concessões firmados. (18)

(36)

Em 1854, o decreto n◦ 1331-A determinava o recolhimento das crianças que vagavam pelas ruas:

“ Art. 62. Se em qualquer dos districtos vagarem menores de 12 annos em tal estado de pobreza que, alêm da falta de roupa decente para frequentarem as escolas, vivão em mendicidade, o Governo os fará recolher a huma das casas de asylo que devem ser creadas para este fim com hum Regulamento especial”. (72)

A promulgação da Lei 2040 de 28 de Setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”, contribuiu para o aumento de crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil. Esta lei declarava livre as filhas e os filhos de mulheres escravas nascidas(os) após a data de sua promulgação e foi um avanço importante para a abolição da escravidão no Brasil. No entanto, as crianças poderiam ficar com suas mães apenas até a idade de oito anos. Após esta idade, cabia aos senhores de escravos decidir se entregariam essas crianças ao Governo (recebendo uma indenização) ou ficariam com elas para que trabalhassem gratuitamente até completarem 21 anos de idade. Na prática, muitas crianças não tinham para onde ir e iam para as ruas. (73–75)

Em 13 de Maio de 1888, a promulgação da Lei Áurea que finalmente aboliu a escravidão no Brasil, também acabou contribuindo para o aumento do número de crianças abandonadas nas ruas (73) pois, tal lei, aboliu a escravidão sem garantir nenhuma reforma social para a integração da população negra que foi abandonada à própria sorte, exacerbando o racismo e a discriminação.(76)

Ainda no século XIX, o código penal de 1890 incluía em seus artigos a premência da criação de instituições preventivo-correcionais e instituía a idade de nove anos como limite mínimo para a responsabilidade penal. (18)

Em 1891, o governo republicano de Marechal Deodoro da Fonseca promulga a primeira lei que regulamenta o trabalho infantil, proibindo o trabalho de menores de 12 anos (77). Todavia, esta lei jamais foi cumprida, as crianças começavam a trabalhar nas fábricas ou mesmo nas ruas antes dos 10 anos de idade (73), ou eram recolhidas em instituições preventivo-correcionais ou colônias agrícolas, que visavam o “tratamento educativo do menino desvalido”. (18)

Na cidade do Rio de Janeiro, em 1902 foi criada a Colônia Correcional de Dois Rios para “reabilitação pelo trabalho e educação, dos meninos, do sexo

masculino, vagabundos ou vadios, capoeiras, ébrios habituais, jogadores, ladrões, dos que praticarem lenocínio e dos menores viciosos...”(18). Havia uma política

(37)

higienista e coercitiva por parte do Estado, na qual crianças e adolescentes pertencentes às famílias em situação de pobreza eram recolhidas pelo Estado que considerava que estes pais incapazes de criar seus filhos e filhas. (18,73,78)

Em 1923, sob influência da Primeira “Declaração dos Direitos da Criança”, foi criado o Juízo de Menores do Rio de Janeiro, responsável pela organização dos serviços de assistência às crianças/adolescentes recolhidas(os). (18,79)

Em 1927 é promulgado o Código de Menores, que regulamentou o trabalho das crianças e adolescentes maiores de 12 anos e aumentou a maioridade penal para 18 anos de idade. Este código era de caráter assistencialista, higienista e paternalista. (18,79)

A Constituição de 1937 dedicou dois artigos (125 e 127) às crianças e adolescentes como responsabilidade do Estado (18,80):

“Art. 125. A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos paes. O Estado não será estranho a esse dever, collaborando, de maneira principal ou subsidiaria, para facilitar a sua execução ou supprir as deficiencias e lacunas da educação particular”. (80)

“Art. 127. A infancia e a juventude devem ser objecto de cuidados e garantias especiaes por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições physicas e moraes de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intellectual ou physico da infancia e da juventude importará falta grave dos responsaveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de prove-las do conforto e dos cuidados indispensaveis á preservação physica e moral. Aos paes miseraveis assiste o direito de invocar o auxilio e protecção do Estado para a subsistencia e educação da sua prole”. (80)

No ano de 1941, através do Decreto-Lei n◦ 3799 (81), o Estado cria o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que ficou conhecido como uma “prisão para menores transviados”(78) e foi o predecessor direto da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), representando mais uma ameaça às crianças de baixa renda (“pobres”) do que uma proteção. (18,82)

“Art. 2º O S. A. M. terá por fim:

a) sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e delinquentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares ;

b) proceder à investigação social e ao exame médico-psicopedagógico dos menores desvalidos e delinqüentes;

c) abrigar os menores, à disposição do Juízo de Menores do Distrito Federal;

d) recolher os menores em estabelecimentos adequados, afim de ministrar-lhes educação, instrução e tratamento sômato-psíquico, até o seu desligamento;

(38)

e) estudar as causas do abandono e da delinquência infantil para a orientação dos poderes públicos;

f) promover a publicação periódica dos resultados de pesquisas, estudos e estatísticas.”(81)

Ao passo que no Brasil, as crianças e adolescentes em situação de rua ou pertencentes a classes sociais baixas eram encarceradas ou exploradas no “trabalho profissionalizante”; no contexto mundial, em 1959, a ONU, proclama a Declaração Universal dos Direitos da Criança pela Resolução da Assembleia Geral 1.386(XIV) que fundamenta a criança como detentora de direitos (liberdade, saúde, educação, bem-estar). (82,83)

Em 1964, o Estado brasileiro, sob o comando do Governo Militar, cria a Funabem em substituição ao SAM, cujo objetivo era elaborar e instaurar uma política nacional de bem-estar para crianças e adolescentes. A Funabem criou as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febem) e, contrariamente ao nome da instituição e seu objetivo, na prática havia o exercício do autoritarismo e do abuso de autoridade principalmente em relação às crianças e adolescentes em situação de rua. (18,73,82)

Em 1975, em meio ao movimento pela redemocratização do Brasil, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), conhecida como CPI do Menor Abandonado que levou cerca de um ano para analisar as condições das crianças e adolescentes provenientes de famílias de baixa renda ou em situação de rua. Seu relatório final diagnosticava tal população como vítima de um sistema excludente e asseverava a urgência de políticas públicas para crianças e adolescentes.(73,84)

A exposição à sociedade das condições de vida das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e a pressão internacional após a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 culminaram na elaboração do Estatuto do Menor em 1979. Tal Estatuto determinava que as instituições de assistência e proteção de menores, seriam responsabilidade do Estado e instituiu a condição do “Menor em Situação Irregular” que eram as crianças e adolescentes filhas e filhos de famílias de baixa renda e marginalizadas. Na prática, o Estatuto do Menor não alterou em nada as condições de vida desta população destituída de direitos, mantendo-se a prática da institucionalização ao invés da elaboração de políticas que visassem melhorar suas oportunidades e condições de vida. (18,73,78,82)

Com o fim da ditadura militar, houve uma intensa mobilização pública em prol dos direitos pelas crianças e adolescentes, principalmente aquelas e aqueles em

(39)

situação de rua. Em 1988, é promulgada a Constituição Federal Brasileira que reconhece pela primeira vez a criança como sujeito de direito e, também pela primeira vez, a palavra “menor” foi substituída por criança e adolescente.

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.(85)

Em julho de 1990, a Lei n◦ 8.069 aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que substituiu legalmente o coercivo Estatuto do Menor, considerando a criança como sujeito de direito em desenvolvimento (cidadão) sob responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. O ECA preconiza a descentralização das ações e a participação popular na fiscalização da execução das políticas públicas. São instaurados o Conselho Tutelar (CT), o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Em 2006, o Governo Federal promulga a Resolução conjunta CNAS/Conanda n° 01/2006: Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária (PNCFC). Tal plano prevê a preservação e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, rompendo com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes. (86)

A alteração mais recente do ECA, também conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, foi sancionada em 8 de março de 2016 e preconiza a implementação de políticas públicas específicas para os primeiros 6 anos de vida, dentre elas a alteração do artigo 19:

“Art. 25. O art. 19 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. (87)

O ECA foi um marco importante na mudança do paradigma do “menor-objeto” para a criança e adolescente como sujeitos detentores de direitos, garantiu os direitos previstos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e previu a

(40)

participação popular através de conselhos de fiscalização. No entanto, mesmo após 28 anos da promulgação do ECA e suas diversas alterações visando seu aprimoramento, ainda não há menção sobre as crianças e adolescentes em situação de rua.

Em defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua, vimos, nesta última década, uma grande mobilização popular resultando em fóruns de debate sobre o tema. (17)

Em 2009, o Decreto Presidencial nº 7.053 (88), instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PSR), incluindo princípios do SUS como a equidade e integralidade, além de preconizar:

“... o respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à convivência familiar e comunitária, a valorização e respeito à vida e à cidadania, o atendimento humanizado e universalizado, o respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência”.pag 14(89)

A fim de viabilizar a Política Nacional para a População em Situação de Rua, foram criados, em 2012, os Consultórios na Rua (CnaR). Este equipamento enquadra-se na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), constituindo o componente Atenção Básica da Rede de Atenção Psicosocial e atua frente aos diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação de rua, inclusive na busca ativa e cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas. (89)

Finalmente, em 2015, crianças e adolescentes em situação de rua são citadas(os) na Portaria GM/MS 1.130 como prioridade concernente à atenção à saúde (90). Tal portaria também instituiu um Grupo de Trabalho no âmbito do Ministério da Saúde para discutir e implementar ações de saúde, resultando na publicação das Diretrizes Nacionais para o Atendimento à Crianças e Adolescentes em Situação de Rua em 2017. (17)

As Diretrizes Nacionais para o Atendimento a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua basearam-se, entre outros documentos, na Política Nacional para a População em Situação de Rua e estas, além de definirem de forma ampliada quem são as crianças e adolescentes em situação de rua, apresentam orientações técnicas para as(os) profissionais que atuarão frente a esta população: equipes de educadores sociais de rua, assistentes sociais e equipes de saúde, reforçando a importância do

(41)

vínculo familiar e do trabalho em equipe multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial. (17)

É inegável o avanço dentro das políticas públicas para as crianças e adolescentes no Brasil, incluindo-as(os), recentemente. Todavia, como será discutido ao longo desta dissertação, na prática cotidiana, essa população continua ora invisível, ora como ameaça para a maioria das cidadãs e cidadãos brasileiros, inclusive para as equipes de saúde e assistência social.

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2. OBJETIVOS

O objetivo geral desta pesquisa foi caracterizar o perfil epidemiológico e fatores de vulnerabilidade da população de adolescentes e jovens em situação de rua no município de Campinas.

Os objetivos específicos foram:

 Analisar as variáveis sócio demográficas: gênero, composição familiar, escolaridade e suas relações com as/os adolescentes e jovens em situação de rua.

 Identificar os fatores de vulnerabilidade a que as(os) adolescentes e jovens em situação de rua foram expostos antes de morarem na rua.

 Analisar as variáveis situação de rua, uso de substância psicoativa, idade de início do uso de substância psicoativa, padrão de consumo desta substância e droga de escolha, e suas relações.

 Caracterizar a situação de saúde das(dos) adolescentes e jovens em situação de rua: comportamento sexual de risco, gravidez não planejada, doenças sexualmente transmissíveis.

 Descrever a experiência e a percepção das(dos) adolescentes e jovens em relação às situações de violência por elas(eles) vivenciadas.

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3. HIPÓTESES/PRESSUPOSTOS

As hipóteses iniciais, baseadas nos objetivos, foram:

 Adolescentes e jovens expostas(os) à situação de vulnerabilidade extrema são mais propensas(os) a morar em situação de rua.

 Adolescentes e jovens em situação de rua fazem uso de substâncias psicoativas em decorrência da vulnerabilidade à que estão expostas(os) em seu cotidiano.

 Adolescentes e jovens em situação de rua estão mais expostas(os) quotidianamente a situações de violência extrema.

 Adolescentes e jovens em situação de rua não possuem percepção de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, infectocontagiosas ou planejamento familiar por estarem submetidas(os) a situações de violência e/ou por comprometimento de julgamento por efeito de substâncias psicoativas.

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4. MÉTODO

4.1. Tipo de estudo

Trata-se de um estudo transversal com delineamento analítico descritivo de abordagem quanti-qualitativa. Nesta abordagem há uma integração entre as metodologias quantitativas e qualitativas, buscando-se a complementaridade entre elas.(91)

Segundo Minayo (92), este tipo de estudo relaciona-se diretamente com o objeto a ser estudado, entendendo-se que nas pesquisas sociais é possível analisar as frequências e regularidades, mas também as relações, as histórias, os pontos de vista e a lógica interna dos sujeitos que estão sendo estudados.

Vários autores definem a saúde como um processo social (93), que trabalha, simultaneamente, problemas coletivos e determinações biológico-social-ambientais, sendo considerada como um bem social compartilhado. (92,94)

4.2. A realidade reapresentando-se a esta autora...

Inicialmente, imaginei-me como pesquisadora que analisaria dados com um olhar imparcial ao campo. No entanto, logo descobri que o desafio de pesquisar quem é essa população de adolescentes e jovens que passa pelo Consultório na Rua cotidianamente e, que está à margem da sociedade (literalmente, em muitos casos, não há lugar para elas e eles), é enorme. Deste modo, mesmo como o objetivo de realizar uma pesquisa para o Mestrado, o que obtive nesses pouco mais de dois anos de estudo, foi muito mais do que questionários respondidos. Ampliei o meu olhar para além do físico e do psíquico, ouso dizer que, após anos de prática como médica, foram as conversas com essas e esses adolescentes que me permitiram realmente enxergar o biopsicossocial.

Acredito também, que, no decorrer da pesquisa a equipe do Consultório na Rua ampliou o olhar para a população de adolescentes e jovens em situação de rua em Campinas.

Devido à especificidade do campo de pesquisa: dinâmico, com vivência e percepção do tempo próprias e com regras singulares, precisei recorrer a mais de uma abordagem metodológica para analisar todas as variáveis em questão.

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