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5. RESULTADOS

5.4. Os não convites

Apresentarei a seguir duas histórias. Elas representam os não convites, adolescentes que eu gostaria de ter convidado a participar da pesquisa, mas que, o cotidiano rude e violento da rua impediu que conseguisse me aproximar tempo suficiente para conversar.

O Guri

Guri, um adolescente franzino, tinha 16 anos mas aparentava 14. Sua família era do interior de Minas Gerais, de onde ele saiu com uma outra família para trabalhar em rodeios no interior do Estado de São Paulo. Quando o trabalho acabou, a família passou por Campinas e abandonou Guri, que acabou sozinho em situação de rua.

A equipe do CnaR encontrou com o Guri pela primeira vez em um dos campos mais complexos que o CnaR realiza.

Neste local há um abrigo municipal para maiores de 18 anos, mas há também muitas pessoas dormindo do lado de fora do abrigo porque o seu período de

permanência já expirou ou porque não conseguiram adaptar-se às regras para ficar lá. Além deste cenário já complicado, quase em frente ao abrigo há um galpão invadido, onde funciona uma autarquia7. Sabemos que neste galpão a violência prepondera nas relações: entre a população que está em situação/circulação de rua, entre a facção criminosa do galpão que dita as regras (decide quem deve ser punido ou não) e entre a Guarda Municipal e a população que está em situação/circulação de rua. Há um círculo vicioso de violência. Toda esta população (pessoas dentro e fora do abrigo e moradores do galpão) é paciente do CnaR e considera positivamente o trabalho da equipe.

Esta pequena digressão foi necessária para explicar o contexto onde Guri encontrava-se. Como ele era menor de idade, não poderia ser aceito no abrigo municipal. Acabou dormindo na rua por algumas noites e, em pouco tempo estava dormindo dentro do galpão.

Em uma sexta-feira pela manhã, quando a equipe do CnaR chegou para atendimento, Guri aproximou-se dos redutores de danos, com o responsável pelo galpão olhando-o de não tão longe e não foi possível estabelecer uma conversa.

Em reunião de equipe, expusemos uma grande preocupação em relação ao Guri, tínhamos certeza de que ele era menor de idade, primeira vez em situação de rua, dentro do galpão com pessoas experientes no crime organizado. Combinamos que tentaríamos afastá-lo um pouco mais do galpão para poder conversar melhor sobre sua situação.

Nas semanas que se seguiram, não vimos mais o Guri, quando perguntávamos às pessoas do “galpão” sobre o garoto, as respostas eram sempre evasivas.

Passaram-se meses e, em uma sexta-feira de manhã, para meu espanto (após quatro anos de Consultório na Rua, ainda me surpreendo com situações de extrema vulnerabilização), assim que a equipe iniciou o atendimento, Guri aproximou- se sozinho e disse, rapidamente e em voz baixa, que estava em cárcere privado, sendo usado para o tráfico de drogas e abusado sexualmente e pediu ajuda para a equipe.

Em um momento como esse, há sempre o impasse entre ajudar e não colocar a equipe do CnaR em risco. Neste dia, após uma breve análise da situação a

gestora achou que seria possível tirar Guri do galpão, sem expor a equipe. Fizemos contato telefônico com o Movimento Vida Melhor (MVM), que, em uma ação rápida e discreta (menos de uma hora após o telefonema), conseguiu tirar Guri da barbárie onde se encontrava antes que seu algoz retornasse. Ele foi acolhido em um abrigo protegido e poucos dias depois foi levado até o seu avô em Minas Gerais.

O que é mais relevante na trajetória de Guri, foi sua invisibilidade perante um serviço oficial de Assistência Social. Ele esteve temporariamente em frente ao abrigo municipal e os funcionários estavam tão sobrecarregados em sua carga de trabalho, que não enxergaram Guri (sua aparência deixava claro que ele era menor de idade), deixando-o à mercê do tráfico que, rapidamente, o encarcerou. O MVM poderia ter sido avisado meses antes e Guri teria sido acolhido sem experimentar o terror de ser aprisionado no galpão. Infelizmente, isto é o que vemos e não enxergamos diariamente, essas e esses adolescentes estão nos semáforos, embaixo de viadutos, nas praças e, nos serviços de saúde ou da assistência social que deveriam acolhê-las(los) e não os enxergam.

Felizmente, Guri conseguiu escapar do galpão por alguns minutos e, naquele momento, havia uma rede (CnaR e MVM) que o acolheu imediatamente. Ele poderia não ter encontrado esta rede de apoio e, provavelmente algum tempo depois seria encontrado morto como um dos adolescentes que entrevistei (19 anos) que foi encontrado morto (assassinado) um mês após a nossa conversa.

A violência institucional8 pode ser caracterizada como negligência na assistência que deveria ser oferecida, discriminação social, violência física (142).

Há poucos estudos nacionais e internacionais sobre a violência institucional nos serviços de saúde, assistência social entre outros. Sabe-se, entretanto, que a violência institucional aumenta ainda mais a vulnerabilidade de quem a sofre. (143)

Beatriz

Era uma tarde de outono, fomos para um dos nossos campos móveis onde há uma grande concentração de pessoas em uso intenso de SPA., predominantemente o crack.

8 A violência Institucional é cometida principalmente contra os grupos mais vulneráveis como crianças, adolescentes, mulheres e idosos. É aquela exercida pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão. Pode incluir desde a dimensão mais ampla da Falta de Acesso a serviços, até a Má Qualidade dos Serviços. Abrange abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais dentro das instituições (143)

Enquanto atendia alguns pacientes, vimos uma adolescente (com aparência de 16 anos) sair do matagal seguida de um homem alto que aparentava 30 anos.

A menina andava com dificuldade e, assim que viu a Van pediu para ser consultada.

Imediatamente, toda a equipe percebeu que havia algo errado. O redutor de danos (João) aproximou-se do companheiro e eu de Beatriz. Ofereci uma cadeira para que ela se sentasse. Beatriz recusou e disse baixinho:

“Ele me forçou a ter relação anal. Está doendo.”

Chamei a técnica de enfermagem para medicá-la para dor, enquanto sentia que, a cada movimento, estávamos sendo observadas pelo companheiro, já demonstrando sinais de impaciência.

Perguntei o que mais podíamos fazer por ela. Neste momento ela não esconde mais as lágrimas e pede em fala quase imperceptível para que a tiremos de lá. Diz que estava em um abrigo e o companheiro foi buscá-la. Saiu por vontade própria, mas não queria mais ficar na rua. O companheiro a agredia física, verbal, sexual e psicologicamente.

Preocupada com a gravidade da situação, discretamente chamei a gestora que entrou na Van para telefonar para o abrigo.

Enquanto Ana telefonava, Lily Braun aproximou-se dizendo que o companheiro estava armado e já ficando muito nervoso. Proferiu que seria muito arriscado para a equipe tentar tirar Beatriz de lá.

Neste momento Ana retornou falando que a monitora do abrigo conhecia Beatriz e sua situação de violência, no entanto, como já estava escurecendo, não poderiam ir buscá-la.

O companheiro, que já estava impaciente, começou a gritar chamando Beatriz, ela hesitou, agradeceu pelo cuidado e seguiu atrás dele.

Percebemos que não deveríamos insistir. Alguns minutos mais tarde, enquanto guardávamos nossos equipamentos, pudemos ver um carro de luxo que se aproximou, o companheiro de Beatriz foi até ele e, minutos depois, Beatriz entrava no carro.

Desta cena nós inferimos que o companheiro de Beatriz era seu cafetão, obrigando-a a se prostituir. Infelizmente, esta situação não é incomum no cotidiano das mulheres em situação de rua, além de serem violentadas por seus companheiros,

eles também as agenciam para obter dinheiro.

Não consegui entrevistar Beatriz, não sei quando nem por que ela foi para a rua. Mas tenho certeza de que ela é submetida diariamente à violência.

Violência doméstica e sexual, quando é explorada sexualmente por seu próprio companheiro e violência institucional por parte de um Estado omisso que, apesar de todas as Leis e Estatutos que deveriam proteger essas e esses adolescentes, deixam-nas(nos) abandonadas(os) em locais insalubres, vivendo em condições desumanas.

Naquela tarde havia uma aluna do quarto ano de graduação em Medicina acompanhando as atividades do CnaR. Assim que entramos na Van, após presenciar esta situação abominável, a aluna começou a chorar e disse:

-“Eu tenho só 22 anos, nunca imaginei que existissem situações como essa ao meu lado. O mundo não é justo”

Essas duas histórias ilustram o cotidiano das(dos) adolescentes e jovens em situação de rua. Essa população, que tem uma relação com a rua diferente da população adulta, desde o relacionamento com seus pares, até as formas de sobrevivência (alimentação, trabalho, uso de substâncias psicoativas), vive situações de intensa violência em que são exploradas(os), omitindo muitas vezes sua verdadeira identidade, porque não querem retornar às famílias e tampouco aos abrigos porque identificam a violência em ambas as situações.

Esse receio de todos os equipamentos sociais e da saúde e a tentativa de ser invisível a eles e à sociedade, expõe-las(los) ainda mais à vulnerabilização e dificulta a quantificação do número real de adolescentes em situação de rua.

Após esta breve leitura e a das trajetórias anteriores, intento que as leitoras e leitores possam vislumbrar o cotidiano da população de adolescentes em situação de rua e compreender a dificuldade que temos em acessá-las(los) e porque os dados oficiais sobre adolescentes/jovens em situação de rua são bastante defectivos.