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4. MÉTODO

4.9. Percurso Metodológico

Quando decidi estudar a população de adolescentes e jovens em situação de rua, achei que seria do lugar de pesquisadora, imparcial ao campo que eu conversaria com as(os) adolescentes. No entanto, esse momento que tivemos com as(os) adolescentes/jovens, foi muito mais que uma entrevista. Foram encontros, onde, após as formalidades da leitura e assinatura do TALE ou TCLE, tivemos o privilégio de escutá-las(los), apesar do questionário com o roteiro norteador, as conversas fluíram.

Como já expliquei anteriormente, foi imprescindível realizar um diário de campo, caso contrário perderia elementos importantes, não só da entrevista, mas também do campo onde ela se realizou. Minayo afirma que a entrevista, sempre que possível, deve ser acompanhada da observação participante, cuja principal ferramenta é o diário de campo viabilizando o registro de “elementos de relações, práticas, cumplicidades, omissões e imponderáveis que pontuam o cotidiano”(130).

Com o auxílio desta ferramenta, passei a ir ao campo com um olhar ainda mais investigativo, um campo que já conhecia, mas desta vez estava em outro contexto. Na observação participante, o pesquisador/pesquisadora, faz parte do contexto a ser estudado, interferindo nele, ao mesmo tempo em que sofre modificações. (130)

Escutar suas trajetórias, medos e desejos fora do momento da consulta médica modificava-me a cada novo contato.

Foram meses de uma intensidade que me surpreendeu, na qual meu campo/território de trabalho confundiu-se com meu objeto de pesquisa (sujeito pesquisado)

Sobre esta dicotomia entre observador e sujeito pesquisado, Paulon, afirma que “o observador inserido em seu campo de observação transforma, por definição,

seu objeto de estudo” (137). Ouso dizer o “objeto de estudo” também transforma o

observador.

Azevedo B.M.S. descreve que há nesse processo de estudo uma inseparabilidade entre o sujeito (pesquisador) e sujeito pesquisado (objeto de estudo/objeto de pesquisa). Ele também afirma que apenas a presença do pesquisador no campo já produz interferências no mesmo.(135)

Ao longo da pesquisa, as interferências que os encontros nos causaram foram ficando evidentes. A cada novo encontro, Lily Braun aproveitou para fazer suas intervenções sobre RD, Ana identificou questões que precisaram ser encaminhadas para outros membros da equipe, eu identifiquei questões de saúde e psicológicas que também precisaram ser cuidadas. Deste modo, já dávamos os devidos encaminhamentos as demandas trazidas ou observadas durante a entrevista (conversa), desdobrando uma nova rede de cuidados. Além disso, começamos a trazer cada vez mais o tema da população de adolescentes e jovens em situação de rua para a reunião de equipe, desencadeando ações com os CAPSij e Oficinas para adolescentes em uma das Casas de Passagem (Casa Verde). Assim, posso dizer que

este estudo teve elementos de uma pesquisa participativa, na qual o pesquisador contribui efetivamente com os problemas do objeto pesquisado. (137)

Com este outro olhar, percebi as influências do campo nas dinâmicas das conversas, ele era um elemento vivo que se fazia presente de várias formas: nos transeuntes que passavam, nos pares das entrevistadas(os) que às vezes tentavam se aproximar para participar também, nos animais de estimação, na Guarda Municipal que às vezes observava ao longe.

Sobre o campo de pesquisa, o filósofo francês Gilles Deleuze, apropriou- se da palavra utilizada pela geografia, a cartografia, para descrever um método em processo de produção de conhecimento em um território existencial:

“Um território desse tipo é coletivo, porque é relacional; é político, porque envolve interações entre forças; tem a ver com uma ética, porque parte de um conjunto de critérios e referências para existir; e tem a ver com uma estética, porque é através dela que se dá forma a esse conjunto, constituindo um modo de expressão para as relações, uma maneira de dar forma ao próprio território existencial. Por isso, pode-se dizer que a cartografia é um estudo das relações de forças que compõem um campo específico de experiências” (138)

A cartografia permite a produção de encontros que possibilitem, a partir da observação do sujeito/objeto, a percepção das dinâmicas, dos fluxos e intensidades que são inerentes a este, sem isolá-lo de suas articulações históricas e de suas conexões com o mundo, produzindo assim territórios de sentidos e de novos conhecimentos (139), por este motivo, utilizei alguns elementos da cartografia para descrever e analisar as trajetórias das(dos) adolescentes com quem conversei.

No campo, o sujeito/objeto interage com o pesquisador resultando em uma descoberta construída.

Tedesco afirma que:

“a realidade a ser investigada é composta de processos e não só de objetos (...), a entrevista acompanha o movimento e, mais especificamente, os instantes de ruptura, os momentos de mudança presentes nas falas.(...).A entrevista acompanha o movimento e, mais especificamente, os instantes de ruptura, os momentos de mudança presentes nas falas.(...) indicaremos ser a experiência, presente nesse plano de coengendramento entre pesquisador e campo problemático, o principal objetivo da entrevista. Sem eliminar outros dispositivos, proporemos a entrevista como ferramenta eficaz na construção e acesso ao plano compartilhado da experiência”. (134)

Neste campo dinâmico, tão rico de experiências, para uma pesquisadora que já possuía vínculo com a população estudada, os elementos da pesquisa

cartográfica aproximaram-se de meu percurso metodológico, deixando de ser “a ação do pesquisador sobre o campo” para um “estar com” a população estudada, permitindo-se uma coprodução, entre as(os) adolescentes/jovens, a pesquisadora e a equipe do Consultório na Rua.(140)

Ferigato, afirma que:

“Outro desafio do cartógrafo é marcado pelo tempo. Ou seja, uma vez que visamos descrever processos, e não estados de coisa, o pesquisador se propõe a investigar elementos em relação e movimento. Ou seja, é necessário que se situe a pesquisa num espaço de tempo, numa espécie de recorte de um processo. Neste caso, o objeto pesquisado, quando apresentado, nos fornecerá uma teia de enunciados que já não diz mais do que é, mas do que foi no ato da pesquisa. Ao mesmo tempo em que entendemos isso como um desafio, nos perguntamos se em qualquer outra forma de pesquisa qualitativa é possível escapar disso. Talvez, aceitar isso de antemão, aceitar o desafio de pensar a transformação do saber e dos modos de vida possa ser uma diferença no modo de produção da pesquisa cartográfica.” (141)