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1. INTRODUÇÃO

1.5. Adolescentes/jovens em situação de rua e a violência

A realidade apresentando-se a esta autora...

Lembro-me como se tivesse sido ontem, estava no primeiro ano do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ansiosa pela minha primeira ida ao Centro de Saúde (CS). O meu grupo iria para o São Marcos, o professor avisou que iríamos com o veículo oficial da Unicamp pois o território onde se encontrava o CS São Marcos era considerado “perigoso”. Era cerca de 8h30 da manhã e, à medida que nos aproximávamos do CS,

vi um movimento grande de pessoas em um terreno baldio, olhei mais atentamente e vi o corpo de um adolescente pardo, aparentando cerca de 17 anos. Havia também alguns policiais em volta do corpo, não consegui entender porque o adolescente estava tão exposto, sem nada para cobri-lo.

O CS era a alguns metros do terreno baldio, a coordenadora nos recebeu simpaticamente mas disse que não poderia falar muito tempo conosco porque a irmã do adolescente morto há alguns minutos sentiu-se mal e estava na sala de urgência. Não consegui dormir por várias noites, lembrando-me do rosto do adolescente.

Não foi preciso muitas idas ao CS São Marcos para entender que o assassinato de adolescentes era uma prática comum, ora pelos “chefes” do tráfico, ora pela polícia. Infelizmente, esses assassinatos haviam se tornado uma prática banal.

Retomando com a literatura...

A palavra violência tem sua origem latina na palavra violentia, do verbo

violare: tratar com violência, profanar, transgredir.(46)

A definição do dicionário para a palavra violência é “constrangimento físico ou moral; uso da força; coação. Violentar: exercer violência sobre; forçar; coagir; constranger; torcer o sentido de; alterar; inverter”. (47)

No primeiro relatório mundial sobre a violência, de 2002, a OMS define violência como:

“Uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”. (48) Marilena Chauí, define violência como: “...toda prática e toda ideia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural”. (49)

Minayo classifica a natureza da violência em quatro modalidades: física, psicológica, sexual e a violência envolvendo negligência, abandono ou privação de cuidados. Ela também afirma que a violência pode se manifestar de diversas formas: criminal, estrutural, institucional, intrafamiliar, interpessoal, estrutural, auto infligida, cultural, de gênero, racial, contra a pessoa deficiente. (50)

A figura abaixo resume a tipologia da violência de acordo com a OMS (48):

Figura 2: Tipologia da violência

Conceituar a violência não é algo fácil, há diversas definições desde a etimologia da palavra até as definições sociais, há diversos estudos sobre suas origens e implicações na sociedade, no entanto, até o momento há muito pouco sobre propostas para erradicar ou minimizar a violência. Quando se escuta as(os) adolescentes em situação de rua, percebe-se que há vários tipos de violência perpassando seus caminhos, desde muito pequenas(os).

De acordo com o comitê de Direitos Humanos das Crianças da ONU, em todo o mundo, crianças em situação de rua são expostas desde a tenra idade a diversas formas de violência física, sexual ou psicológica. (51)

Estudos internacionais corroboram que a relação entre violência e situação de rua entre crianças e adolescentes é um fenômeno mundial e esta condição, torna- as(os) vulneráveis, expondo-as(os) a vários riscos para problemas de saúde como uso abusivo ou dependência de substâncias psicoativas (SPA), doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV. (52–55)

Estudo canadense apontou a associação existente entre maior risco de suicídio para adolescentes e jovens (14-26 anos) em situação de rua que relataram terem sofrido alguma forma de violência na infância. (56)

Adolescentes e jovens que se encontram em situação de rua experimentam praticamente todas as formas e naturezas da violência. São vítimas da violência estrutural, sofrem a violência institucional quando são impedidos de acessar serviços de saúde ou da assistência social. (4,13)

Geralmente sofreram violência intrafamiliar antes de irem para a rua. Estão imersos na violência criminal que dita as regras da rua, sofrem a violência policial cotidiana e a violência dos poderes paralelos ao Estado. Para negros, pardos e deficientes há ainda a violência racial e contra os deficientes. (51,57)

No Brasil, de acordo com indicadores do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2008, o segundo grupo mais prevalente nos atendimentos à violência foi de adolescentes de 10 a 19 anos de idade, entre as(os) quais a violência sexual representou 56% dos atendimentos; seguida das agressões psicológicas (50%), físicas (48%) e negligências e abandono (13%). (58)

Em Campinas, município do estudo, dados do Sistema de Notificações de Violência (SISNOV) de 2016 evidenciam que os atendimentos por violência concentraram-se na faixa etária entre 10-19 anos com 57,5% do total de notificações. (59)

Com a relação à mortalidade, no Brasil, os acidentes e violências ocupam a primeira causa de morte de adolescentes e jovens (60). Desde 1980 a taxa de homicídio entre jovens vem aumentando vertiginosamente. Nas décadas de oitenta e noventa houve um aumento de homicídios entre jovens de até 25 anos, respectivamente de 89,9% e 20,3%. Entre 2005 e 2015, o aumento foi de 17,2% com uma diminuição na idade média do homicídio de 25 para 21 anos. Se considerarmos apenas o ano de 2015, o homicídio de jovens entre 15 e 19 anos representou 53,8% do total de homicídios.(61)

No relatório sobre a prevenção da mortalidade mundial da OMS, os homicídios foram mais prevalentes entre a faixa etária de 15 a 29 anos com uma taxa de 18,2 para cem mil habitantes (62). No Brasil, esta taxa para a mesma faixa etária é de 60,9 homicídios para cem mil habitantes e quando se analisa os jovens vítimas de homicídio no Brasil entre 2005 e 2015, houve uma queda de 12,2% entre os jovens não negros com um aumento de 18,2% entre os jovens negros.(61)

Neste mesmo período, também se observa um aumento no número de mortes violentas não esclarecidas, chegando à 13,8% no estado da Bahia contra menos de 1% nos países desenvolvidos. (61)

O relatório sobre a violência da Unesco de 2015 mostrou que, entre 1980 e 2012, a população brasileira teve um crescimento de 61% enquanto os assassinatos por arma de fogo entre jovens tiveram um crescimento de 460%.(63)

O Gráfico 1 abaixo, extraído da Mapa da violência para adolescentes de 2015 (64), evidencia a evolução dos homicídios para esta faixa etária:

Fonte: Mapa da violência 2015: adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil (64)

Gráfico 1: Evolução das taxas de mortalidade por causas externas de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos.

Para adolescentes entre 16 e 17 anos, os homicídios aumentaram 641% entre 1980 e 2013. Dos homicídios ocorridos em 2013, destes 93% foram do sexo masculino e 73% entre negros ou pardos.(64)

Não há dados específicos sobre os homicídios entre adolescentes e jovens em situação de rua, muito provavelmente, essas mortes fazem parte das estatísticas dos casos não esclarecidos e rapidamente esquecidos.

O documentário “Falcão - Meninos do tráfico”, exibido em 2006, retratou a vida de 17 meninos que viviam nas favelas brasileiras envolvidos com o tráfico de drogas. Durante as gravações, 16 dos 17 meninos morreram vítimas da violência.(65) Em 23 de Julho de 1993, oito adolescentes entre 13 e 19 anos que dormiam em frente à Igreja da Calendária no Rio de Janeiro foram assinados por policiais, os sobreviventes reconheceram os algozes, nove homens foram indiciados, apenas três foram condenados. (66,67)

Os abusos cometidos pela polícia, sua falta de investigação e impunidade foi também relatado no relatório mundial sobre a prevenção da violência da OMS. (62)

Além dos casos de homicídios entre adolescentes e jovens, há a violência não fatal. Estudos evidenciam que para cada homicídio juvenil há cerca de 20 a 40 vítimas de violência juvenil não fatal recebendo tratamento hospitalar.(48)

As adolescentes em situação de rua estão ainda mais vulneráveis, convivem com todas as formas de violência somando-se a ela a violência de gênero: o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking mundial dos homicídios de mulheres, com uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres.(57)

A literatura internacional e nacional apontam que o estupro é o maior problema das mulheres em situação de rua (68–71). Estudo realizado na cidade de Los Angeles, EUA, com 974 mulheres em situação de rua evidenciou que 13% relataram terem sido vítimas de estupro no último ano, metade destas mulheres havia sido estuprada pelo menos duas vezes (68). Pesquisa qualitativa realizada em Ghana evidencia que a maioria das adolescentes e jovens em situação de rua que não tem um companheiro fixo já sofreu estupro coletivo, elas identificam seus agressores como “The killers”.(54)

Estudo realizado na cidade do Rio de Janeiro com mulheres usuárias de crack em situação de rua constatou que, nos últimos 12 meses, 48,7% havia procurado serviços de atendimento do SUS por violência física e 11,9% por violência sexual.(71)

Marilena Chauí, afirma que: “os meios de comunicação costumam referir- se à violência com as palavras “surto”, “onda”, “epidemia”, “crise”, ou seja, termos que indicam um fenômeno anômalo, passageiro e acidental” (49), conforme discorrido até o momento, fica evidente, que a violência no Brasil é endêmica e, se considerarmos para efeitos midiáticos que estamos vivendo um “surto” ou uma “epidemia”, faz-se imperativo pensarmos em políticas públicas para resolvê-la.