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6. DISCUSSÃO

6.3. A exclusão em um mundo de excluídos

De 51 adolescentes entrevistadas(os) cinco declararam-se homossexuais (quatro homens e uma mulher), duas declararam-se transexuais femininas e três adolescentes declararam-se bissexuais. Dentre a população autodeclarada como LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), seis (as duas adolescentes transexuais e quatro homossexuais) referiram que saíram de casa para as ruas devido ao preconceito familiar.

Geni coloca-se como um fardo para a família após a morte da avó que a criou:

“Ninguém mais quis segurar o fardo.”

Lola, também transexual, tinha 16 anos no momento da entrevista e afirma que foi expulsa de casa ao assumir sua identidade transexual:

“Tinha 11 anos, meu padrasto me expulsou quando me assumi trans.”

Billy, 20 anos, também refere ter sido expulso de casa pela mãe aos 17anos por ser homossexual.

“Minha mãe me pôs pra fora de casa, quando descobriu que era homossexual.”

Pesquisa americana realizada com adolescentes em situação de rua, entre 12 e 24 anos de idade, evidenciou uma prevalência de cerca de 20% de adolescentes LGBT, dentre a população de adolescentes/jovens em situação de rua, para a maioria delas e deles, o motivo de estar em situação de rua foi a rejeição familiar (168,169). Outros estudos identificaram taxas de adolescentes LGBT em situação de rua entre 11 a 37%., evidenciando a vulnerabilização desta população. (168–171)

Além da discriminação intrafamiliar, a população LGBT entrevistada (10 adolescentes) referiu ter abandonado os estudos precocemente devido ao preconceito.

Lola admitiu que precisou deixar a escola ao assumir a identidade transexual:

“Faz três anos que larguei a escola, pra me assumir trans precisei sair da escola. Era muito preconceito.”

Apenas um adolescente terminou o ensino fundamental, cinco estudaram até a oitava série, um estudou até a sexta série, uma até a quinta série e um cursou apenas a primeira série.

A evasão escolar pelo preconceito e, muitas vezes, pelo sentimento de insegurança dentro da escola também foi citada em outros estudos internacionais. (168,172)

Devido à evasão escolar precoce, somada ao preconceito familiar essas e esses adolescentes acabam realizando atividades ilícitas para sobreviverem, colocando-se em risco.

Na questão concernente a como fazem para sobreviver na rua, nove das(dos) 10 adolescentes (90%) LGBT referiram prostituir-se, ao passo que, dentre

as(os) 41 adolescentes que se declararam heterossexuais, cinco (12%) afirmaram prostituírem-se para obter dinheiro nas ruas. Este dado evidencia ainda mais a vulnerabilização desta população.

Com relação às ISTs, seis das(dos) 10 adolescentes (60%) LGBT referiram ter contraído ITS (quatro diagnósticos de sífilis, dois de condiloma e dois de HIV, para duas adolescentes houve co-infecção). Comparando-se com a população de adolescentes/jovens que se nomeou heterossexual (n=41), encontramos cinco adolescentes (12%) com diagnóstico de IST (três diagnósticos de sífilis, um de corrimento uretral, dois de HIV, também houve relato de co-infecção).

Para a população de adolescentes homo e transexuais, há ainda mais histórias de violência física ou sexual devido a sua orientação de gênero e/ou orientação sexual.

Maria (atual companheira de Yolanda), 24 anos, assumiu sua identidade de gênero homossexual antes dos 18 anos e refere ter sido estuprada na penitenciária feminina devido a sua orientação sexual.

“Queriam me endireitar ”. Fala com voz de rancor.

Iracema, 16 anos, transexual, refere ter sido estuprada por um estranho por ser transexual.

“Ele me arrastou para o mato, foi uns 40 minutos. Fiquei revoltada, abalada, tinha 11 anos. Fiquei chocada”.

Quando pergunto do que tem mais medo morando na rua, Iracema responde:

“Da cafetinagem e das agressões.”

Para José, 21 anos, ser homossexual na rua causa medo:

“Tenho medo da maldade, de alguém matar ou bater.”

Como já discutido previamente, todas e todos adolescentes/jovens em situação de rua estão vulneráveis a diversas situações de violência. Ser mulher “na rua”, implica em maior vulnerabilização e ser homo ou transexual, significa ainda maior vulnerabilização. Isto pôde ser comprovado no discurso das(dos) adolescentes e vem sendo discutido na literatura internacional.

Estudo de revisão sistemática que analisou a violência homofóbica e transfóbica em 51 estudos entre 2000 e 2016, encontrou valores de até 35% para a violência física e de até 49% para a violência sexual. No caso da violência física, as mulheres lésbicas ou bissexuais apresentaram a maior prevalência, enquanto as

mulheres transexuais relataram sofrer mais violência sexual. Tal estudo também evidenciou maiores taxas de HIV, IST e sofrimento mental na população LGBT. (173) Outra pesquisa realizada nos EUA com população soropotiva, evidenciou maiores taxas de HIV para mulheres transexuais e, destas, uma em cada três relatou histórico de violência sexual na adolescência. (174)

A literatura internacional afirma que os Estados falham em produzir políticas públicas específicas para a população LGBT.(168,170,175)

Como já discutido no início desta Dissertação, a adolescência é um período de consolidação da identidade no qual preponderam os aspectos psico-sociais. Nesta fase são comuns sentimentos de inadequação, que podem precipitar transtornos afetivos, comportamento sexual de risco, uso de drogas.

Para as(os) adolescentes que identificam-se com um gênero ou com uma orientação sexual diversa de sua identidade biológica, o sentimento de inadequação é ainda maior. Neste momento, essas e esses adolescentes necessitam de apoio familiar e uma rede de apoio. No entanto, o que vemos no Brasil e, em vários outros países, é o preconceito familiar levando-as(os) a sairem de suas casas, o preconceito sofrido na escola, causando evasão escolar e, muitas vezes a discriminação de outras instituições que deveriam acolhê-las(los), de modo que essa população encontra-se completamente desamparada.

Em Campinas, dentre todos os abrigos e casas de passagem existentes há apenas um local que aceita abrigar a população LGBT maior de 18 anos. Para a população de adolescentes LGBT não há um espaço próprio.

Lola foi expulsa de um dos abrigos por ser transexual e, na casa de passagem que a havia acolhido, ela sofreu violência por outro adoelscente, não se sentindo segura para retornar a este espaço.

Geni ficou por um ano nesta mesma casa de passagem e assim que completou 18 anos foi para a rua, ainda não há vagas disponíveis para ela neste momento.

No acompanhamento da população LGBT em situação de rua não é incomum ver seus direitos desrespeitados. Em reuniões com equipamentos da Saúde e da Assistência Social e com representantes dos órgão de defesa das crianças e adolescentes, já foi dito mais de uma vez que as(os) adolescentes ainda não têm maturidade para escolher sua orientação sexual e de gênero e, por esse motivo, não podem “aceitar” adolescentes transexuais. Na literatura internacional encontramos

que as(os) adolescentes admitem publicamente sua identidade de gênero ou sexual entre 13 e 21 anos (168,170), todavia, há estudos que mostram que elas e eles começam a reconhecer esta identidade por volta de 3 a 8 anos de idade.(168,172)

Presenciei por diversas situações as(os) representantes dos equipamentos supracitados chamarem a adolescente transexual feminina (como Geni ou Lola) pelo nome de batismo enfatizando o pronome “Ele”.

Na revisão bibliográfica sobre a população LGBT a grande maioria dos estudos citam as violências sofridas por esta população desde muito cedo. Abandono ou violência física e sexual intrafamiliar, discriminação na escola, violação de direitos por órgãos estatais e violência física, psicológica e sexual pela população em geral, de modo que, dentre o grupo já excluído de adolescentes em situação de rua, esta população é a mais excluída e, indesejável.

Para a população LGBT tem-se avançado lentamente em políticas públicas e, para as(os) adolescentes LGBT que estão em situação de rua, não há uma política pré-estabelecida, deixando-as(os) muito mais vulneráveis. Equipamentos como o Consultório na Rua e o CAPSij conseguem aproximar-se desta população mas não consegue oferecer todo o suporte necessário para assegurar seu bem-estar biopsicosocial e diminuir os riscos já bem estudados para transtornos mentais, entre eles o maior risco para suicídio.(176)