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6. DISCUSSÃO

6.5. O cenário irreal de Campinas

Em nota oficial à imprensa, em janeiro de 2016, o prefeito de Campinas declarou que não havia crianças e adolescentes nas ruas deste município.(179)

“Para alcançar o resultado positivo apresentado nesta terça-feira, foram realizadas centenas de abordagens a crianças e adolescentes, sendo 778 em 2013, 620 em 2014 e 622 abordagens em 2015. Desse total, o número de crianças em situação de rua abordados foi de 15 em 2013, oito em 2014 e cinco em 2015, todos devidamente encaminhados e acolhidos”.(179)

Tal afirmativa refere-se ao número de crianças e adolescentes abordadas(os) pelos representantes da Secretaria de Assistência Social do município de Campinas

Durante os meses desta pesquisa, entrevistei apenas cinco menores de 18 anos. Para esta população, a grande preocupação é que elas e eles tentam permanecer invisíveis aos olhos do Estado: esquivam-se, evitam dar seus nomes verdadeiros, dizem ser mais velhas(os) do que são. Têm medo de serem recolhidas(os) para abrigos onde sabem que as regras são muitas e as ofertas de cuidado são poucas.

Sobre este acolhimento compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua e a falta de políticas públicas adequadas para esta população, Di Lorenzo et al. (180) afirmam:

“No que se refere às medidas compulsórias de retirada de crianças e adolescentes, a questão maior a ser levantada é como se desenvolve a proposta. Qualquer ação que tenha como método a intimidação, a coação, a violência e o uso da força é, inquestionavelmente, uma afronta aos direitos fundamentais; os fins não podem jamais justificar os meios.

Acredita-se que crianças e adolescentes precisam, urgentemente, sair do ambiente de rua, mas não a qualquer custo. Todo processo de mudança requer cuidado, adaptação e planejamento; retirá-las do seu local de vida sem um projeto mais amplo é utilizar o intuito com o fim de limpeza urbana, escondendo e mascarando o verdadeiro problema. Não se acredita, aqui, que as ações compulsórias, por si só, resolvam o problema das crianças e dos adolescentes de rua, muito menos que não possam ferir princípios fundamentais. O que se levanta é justamente a colisão desses direitos junto às propostas de intervenção, na busca do melhor interesse da criança.

O grande dilema de retirar crianças e adolescentes das ruas forçosamente com o fim de institucionalizá-las para tratamento é acreditar que o problema se encontra apenas na condição de moradia. A questão tem dimensão bem mais ampla, envolve diversos fatores que inibem o desenvolvimento do país, entre eles, o capitalismo global, a pobreza, o desemprego, a inversão de valores sociais e a exclusão de classes menos favorecidas.

As políticas públicas para crianças e adolescentes de rua devem ir além da institucionalização, sendo planejadas para colocá-los na convivência familiar e comunitária. É preciso garantir o desenvolvimento ensinando a criança a viver em sociedade. A institucionalização contribui para a segregação, pois não se ensina a viver em sociedade.”(180)

Na prática, vemos uma antítese das autoridades que deveriam proteger as(os) adolescentes em situação de rua: enquanto são menores de 18 anos, esforçam-se para reabrigá-las(los) de qualquer modo e, assim que completam 18

anos, são, literalmente, colocadas(os) nas ruas. A maioridade civil transforma essa população do dia para a noite em adultas(os) aptos a viverem nas ruas?

Neste cenário de extrema vulnerabilização, no qual as políticas públicas de proteção específicas para crianças e adolescentes são frequentemente descumpridas, a presença de serviços como o CnaR, CAPSij, CAPSad , SOS Rua, MVM são essenciais para o cuidado desta população.

Dentro da Política Nacional para a População em Situação de Rua, o CnaR tem uma atuação significativa no cuidado dessas e desses adolescentes/jovens, não só no tratamento das patologias mais prevalentes, mas também na promoção de saúde e produção de potências. Aposta-se no vínculo, tentando trazer essa população de adolescentes e jovens para as oficinas de música e terapia ocupacional. A pesquisa apontou que, das(dos) 51 entrevistados, 55% conheceram o CnaR porque a equipe chegou até elas e eles.

Discutimos o papel das drogas em suas vidas e, mesmo sem utilizar o nome Redução de Danos, trazemos o uso da SPA para reflexão, sem julgamento moral. São disponibilizados preservativos, evidenciando a importância da prevenção de infecções sexualmente transmissíveis.

No caso das adolescentes, discute-se o planejamento familiar, sem impor os MACs. Entendemos o desejo da maternidade, porém ponderamos a necessidade de que elas se preparem para uma nova gestação considerando o cuidado físico e psicológico. Com relação à violência de gênero, fazemos rodas de conversa, enquanto os redutores de danos abordam esta questão, simultaneamente, com os companheiros.

A maior parte dessa população não adere ao primeiro contato; são realizados inúmeros contatos, sempre respeitando o tempo delas e deles para que se vinculem à equipe do CnaR. Todas e todos conheceram a violência desde muito pequenas(os) sob diversas formas, sofreram inúmeras perdas, são negligenciadas(os) por serviços de saúde que deveriam acolhê-las(los) e sofrem constantes impropérios de transeuntes.

Em virtude de suas histórias de vida, é natural que haja um ressabio não apenas com outros serviços de saúde, mas também com outros equipamentos estatais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo quinto, prevê: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”(181)

No entanto, o que vemos na prática é uma violação constante dos direitos dessas e desses adolescentes, seja nas recusas em atendimentos nos serviços de saúde, nos maus-tratos recebidos pelos agentes penitenciários, pela discriminação nos estabelecimentos comerciais ou pela ausência do Estado, que falha em protegê- las(los) (não há nenhuma citação aos adolescentes em situação de rua no ECA). Além da constante violação de seus direitos na infância e na adolescência, há ainda o fato de que, assim que completam 18 anos, essas e esses adolescentes não possuem mais nenhum estatuto para protegê-las(os). Espaços de cuidado na adolescência, como os CAPSij, transferem-nas(nos) para os CAPSad com adultos e as(os) adolescentes que estão em abrigos perdem o direito de continuar nesses espaços.

A última pergunta do questionário foi: “Como foi esta entrevista para você?”. As respostas diferiram bastante, porém para todas e todos o retorno foi bastante positivo. Houve respostas com expressões do seu cotidiano delas e deles como:

“Muito legal!”; “Da hora” até respostas longas nas quais agradeciam a oportunidade

de falar sobre suas vidas e de serem ouvidos. Também houve vários agradecimentos ao final, por nos interessarmos por quem elas e eles são, para além da consulta médica a que estão habituadas(os).