6. DISCUSSÃO
6.1. A violência enquanto problema de saúde pública
A trajetória de Carolina traz falas e elementos comuns a todas e todos os adolescentes que entrevistei, por isso a escolha de, a partir de sua história traçar um paralelo com as formas de violência em geral. Essa discussão segue nos parágrafos abaixo.
Dentre 51 entrevistadas(os), apenas 8 afirmaram não ter sofrido nenhuma situação de violência na vida. Isso não significa que cerca de 16% das(dos) adolescentes nunca tenha sofrido nenhuma forma de violência na vida, mas sim que elas(eles) sequer têm a percepção da violência a que estão submetidas(os). Apenas o fato de existir adolescentes e jovens em situação de rua evidencia uma negligência por parte do Estado em não assegurar estruturas que acolham de fato essa população e possam oferecer outras possibilidades de satisfação na vida para além do uso de SPA; tal negligência não foi considerada como violência pelas(os) entrevistadas(os).
A trajetória de Carolina repete-se para as(os) adolescentes/jovens que estão em situação de rua. A possibilidade de entrevistá-las(los) evidenciou que cada qual tem a sua história, todavia em todas elas há presença da violência ancorada em seus percursos.
Estudos evidenciam que entre 50% e 83% das(dos) adolescentes em situação de rua sofreram violência física e/ou sexual, negligência e rejeição parental. (52,144,145)
No caso de Carolina, ela foi abrigada ainda criança, tendo sofrido negligência e privação de cuidados dentro de casa, nova violência ao ser retirada da mãe e transferida para um abrigo e, posteriormente, separada dos irmãos.
Os dados encontrados no presente estudo apontam que 35 das(dos) entrevistados (68,6%) referiram estar na rua devido à violência doméstica. Tal número é muito próximo do encontrado no estudo realizado pelo Conanda, no qual 70 % admitiram que saíram de suas casas devido à violência doméstica.(13) .
Nos relatos sobre a violência doméstica, não foi incomum a tentativa de minimizá-la:
“Meus pais me batiam pelo meu bem, mas não adiantou.”
“Quando eu tinha 7 anos meu tio puxava minha orelha e me arrastava para eu endireitar.” (Juca, 18 anos)
Decidir o que seria melhor para uma criança é sempre uma grande responsabilidade e, infelizmente, na maioria das vezes, nenhuma das decisões tomadas impedirá o impacto negativo na psique da criança, levando a problemas na vida adulta. Crescer em uma família insuficiente é um fator de risco para abuso de álcool e outras drogas, delinquência, comportamento sexual de risco, depressão e suicídio (39,54,56,145–149).
Todavia, o fato de a criança ser abrigada não garante que ela receberá o suporte biopsicossocial necessário para superar os traumas já vivenciados nem que será adotada. Frequentemente, o que vemos são crianças retiradas das famílias, muitas vezes separadas dos irmãos, crescerem nos abrigos, continuando a vivenciar a violência.
“Tive violência a vida toda nos abrigos, por isso fiquei revoltada.”
Teresinha, 21 anos, cresceu entre a família materna e os abrigos, a mãe também esteve em situação de rua por muitos anos.
Para Carolina, nem o abandono por parte de sua mãe, nem os anos no abrigo ficaram registrados como forma de violência; sua primeira memória foi a separação dos irmãos, com quem não teve mais contato.
Uma vez nas ruas, essas e esses adolescentes encontram uma nova vivência, onde a violência está presente em todas as relações: entre as(os) próprias(os) jovens em situação de rua, entre a polícia e elas(eles), entre a população e elas(eles). Na adolescência, elas(eles) deixam de ser vistas(os) como vítimas e passam a ser vistas(os) como bandidas(os), suscitando medo nas pessoas que passam por onde costumam ficar.(27)
As organizações que deveriam acolher e cuidar dessa população vulnerável em uma fase da vida que as(os) deixa ainda mais vulneráveis, submete- as(os) também à violência (institucional) refletida nos comentários preconceituosos, nos olhares jocosos ou até mesmo na recusa ao atendimento por parte dos profissionais de saúde (150,151)
O relatório da Unicef sobre adolescentes brasileiras(os) evidencia tal violência, apontando que essas meninas e meninos em situação de rua são banidas(os), por preconceito e discriminação, por instituições que deveriam acolhê- las(os) (4) . De acordo com o levantamento do Conanda, 12,9% das(os)
entrevistadas(os) já haviam sido impedidas(os) de receber atendimento na rede de saúde e 6,5% de emitir documentos; 36,8% tinham sido impedidas(os) de entrar em algum estabelecimento comercial; 31,3%, de usar transporte coletivo; 27,4%, de entrar em bancos; e 20,1%, de entrar em algum órgão público. (4,13)
As equipes do CnaR e do CAPSad vivenciaram a violência institucional por diversas vezes enquanto acompanhavam Carolina nos serviços que deveriam acolhê- la. Quando ela sofreu fratura de rádio após ser espancada por seu ex-companheiro, ao invés de ser acolhida pelo serviço de urgência, tanto a equipe de enfermagem quanto à equipe médica do hospital trataram-na com rispidez e indiferença, negando- se a hospitalizá-la por ser usuária de SPA, mesmo após insistência da médica do CnaR que acompanhou Carolina ao Hospital, por esse motivo a solução encontrada foi realizar a antibioticoterapia endovenosa no leito noite do CAPS ad.
Essa violência pelos serviços de saúde foi relatada pela população entrevistada: 24% referiu já ter procurado um serviço de saúde e não ter conseguido atendimento, e, 50% daquelas e daqueles que procuraram um serviço de saúde não retornariam a este serviço.
Estudo nacionais e internacionais referem a dificuldade de acesso a serviços de saúde e o despreparo das equipes para atender as necessidades da população em situação de rua (150,152), particularmente adolescentes e jovens.(153) A violência praticada pela polícia também foi uma constante observada nas entrevistas. A frase na qual Carolina resume sua experiência no presídio feminino, “Lá
é um lugar onde o filho chora e a mãe não vê”, resume a experiência amedrontadora
do contato com a polícia.
Relatório da Anistia Internacional de 2015 aponta que a polícia é responsável por uma porcentagem significativa dos homicídios no Brasil. Na intervenção policial que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro em 2010, das 1.275 vítimas de homicídio, 99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade. (66)
Com relação à passagem pela polícia, 26 adolescentes (51%) já estiveram detidas(os). Todas e todos afirmaram ter sofrido violência por agentes penitenciários durante o período de detenção.
Um estudo canadense avaliou 991 adolescentes e jovens em situação de rua (14-26 anos) e as ações realizadas pela polícia. Destes, 44,4% foram abordadas(os) e tiveram seus pertences confiscados e 16,9% relataram terem sofrido
violência por parte da polícia. Não houve relação, neste estudo, entre as ações da polícia e o uso de drogas. (154)
Ser mulher na rua é mais um fator de risco. Carolina afirma ter sido estuprada na rua, por esse motivo manteve um relacionamento abusivo com seu ex- companheiro por 3 anos; de uma forma perversa, ele a protegia dos outros homens. A frase que quase todas as entrevistadas respondiam quando interpeladas sobre o comportamento violento do companheiro foi:
“Ele me protege e eu só apanho dele.”
Das 17 adolescentes entrevistadas, apenas quatro responderam que nunca sofreram violência do companheiro na vida. Quando indagadas novamente com exemplos concretos (se o companheiro nunca gritou com elas, agrediu-as fisicamente ou as forçou a ter relações sexuais com eles), a resposta foi positiva para todas as adolescentes, com uma justificativa em seguida:
“Sim, mas ele tinha usado muito (crack).” Angelica, 16 anos “Sim, mas ele ficou com ciúmes.” Nancy, 17 anos
Essa realidade evidencia-se também em outros países, independentemente do nível socioeconômico destes. Um estudo realizado na cidade de Nova Iorque (EUA.) com 85 adolescentes em situação de rua entre 15 e 24 anos evidenciou maiores taxas de violência psicológica e sexual registradas entre o sexo feminino.(145)
Em outro estudo realizado em Adis Abeba, na Etiópia, com adolescentes em situação de rua entre 10 e 18 anos, 36% das adolescentes do sexo feminino referiram que o principal problema de estar na rua era o estupro.(155)
A violência sexual na rua esteve presente na vida de 11 das 17 adolescentes entrevistadas (65%), esse número é bem superior ao encontrado em estudo brasileiro realizado com mulheres em situação de rua no Rio de Janeiro, no qual 34% das entrevistadas referiram ter sofrido violência sexual(71). Quando perguntei a essas adolescentes se haviam procurado um serviço de saúde para o cuidado após a violência, a maioria respondeu que não:
“Tem que esperar muito no PA.”
Nenhuma das entrevistadas sabia que há serviços especializados para acolher as vítimas de violência sexual.
As vítimas que referiram ter procurado o serviço de saúde foram devido a situação de emergência em que se encontravam após o abuso.
Cecília, uma das entrevistadas de 24 anos, estava grávida de gêmeos quando sofreu o estupro. Ela refere:
“ Eu tava grávida dos gêmeos, dois caras se aproximaram de mim em um carro chique, achei que queriam fazer um programa. Eu entrei no carro, eles me estupraram e me bateram. Fiquei desmaiada e sangrando...( ) Fizeram uma cesárea
de urgência. Quase morri. Nem vi os gêmeos, minha avó aproveitou para dar eles para a doação.”.
O medo de sofrer violência sexual na rua foi relatado por todas as adolescentes. Joana, 17 anos estava em situação de rua há cerca de um ano no momento da entrevista e contou que já havia sofrido dois estupros por desconhecidos na rua. Nunca havia falado sobre isso com ninguém e tinha dificuldades para dormir:
“ Tenho medo, muito medo de dormir na rua.”
Como a maioria das adolescentes em situação de rua, Joana “arrumou” um companheiro para não ficar só. Mesmo sofrendo violência pelo companheiro, elas se sentem protegidas dos homens na rua. Para suportar a violência que sofrem pelo companheiro e também a sensação de solidão, muitas adolescentes desejam engravidar. Gestantes apanham menos de seus companheiros e gerar uma nova vida pode ser a possibilidade de uma vida diferente para essas adolescentes.