• Nenhum resultado encontrado

6. DISCUSSÃO

6.2. A maternidade: desejo x culpa / prazer x sofrimento

A questão da maternidade apareceu em todas as respostas das adolescentes. O desejo de ser mãe, foi uma resposta que se repetiu nas entrevistas. Entretanto, para essas meninas que, desde muito cedo conheceram a violência, não há um referencial materno. Desejam muitas vezes aquilo que gostariam de ter vivenciado, mas não sabem como fazê-lo. No cotidiano do Consultório na Rua, vi diversas vezes a ambiguidade nas mulheres usuárias de SPA e, em situação de rua com relação à maternidade.

A gestação é um período bastante conturbado para as mulheres devido a oscilações hormonais e mudanças corporais. Há diversas dúvidas e anseios. Para as gestantes adolescentes e em situação de rua, todas essas questões multiplicam-se exponencialmente.

Das 17 adolescentes entrevistadas, 14 (82%) já engravidaram, três apresentaram gestações que não evoluíram até o final, 11 pariram. Destas, três

vivenciaram a experiência de parir, porém não saíram da maternidade com seus bebês, referem que foram separados logo após o parto e não puderem amamentá- los; outras oito adolescentes puderam ficar com seus filhos por um período, no entanto perderam a guarda rapidamente.

Durante as conversas com as adolescentes, quando pedia que falassem sobre experiência da gestação e da maternidade, a maioria delas abria um sorriso, porém, para muitas, ao mesmo tempo em que sorriam havia uma sombra da culpa de ter feito uso de SPA durante a gestação ou a dor da perda de seu filho.

“Foi fabuloso, tinha 16 anos. Foi lindo, me senti mais vivida”. Teresinha,

estava com 21 anos no momento da entrevista, seu filho morava com o pai biológico (seu ex-companheiro) desde que ela recaiu no uso de SPA e retornou para a rua. Teresinha cresceu entre abrigos e a casa da avó materna. Sua mãe esteve por muitos anos em situação de rua, e atualmente está em um abrigo para mulheres com a filha caçula de 3 anos. Mãe e filhas são acompanhadas pelo CnaR.

“Foi tudo de bom (a gravidez). Gostaria de ser mãe”. Nina, 23 anos, ficou

grávida uma única vez, aos 15 anos. Sofreu um aborto espontâneo e, desde então deseja engravidar novamente.

“Foi felicidade né, o primeiro filho é muita felicidade. Parecia que eu tava nascendo de novo, eu quero ter outro”. Ana,17 anos, engravidou uma única vez, seu

filho foi abrigado diretamente da Maternidade.

Rita, 23 anos, estava morando na Casa da Gestante quando a entrevistei. A guarda da primeira filha está com a família materna, que impossibilita suas visitas de modo que Rita quase não a vê. Está gestante de um menino.

“Eu planejei muito este filho, mas quando eu parei de planejar aconteceu. Eu passei nervoso e usei bastante (SPA), não dormia, ficava uns 4 dias (em uso de SPA) e não me controlava (chora bastante neste momento). Ainda bem que tem esta casa (Casa da Gestante), senão eu ainda estaria na rua. Eu não quero perder outro filho” (fala entre soluços).

Em uma sociedade que finge não ver as(os) adolescentes em situação de rua, julgar e criticar uma adolescente grávida em situação de rua com a justificativa de que a criança gestada deve ser protegida é praticamente um non sense, por que o bebê que está no ventre materno importa mais do que a adolescente que o gesta?

“Quem analisa os fenômenos violentos descobre que eles se referem a conflitos de autoridade, a luta pelo poder e a vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro ou de seus bens (...) Mutante, a violência designa, pois – de acordo com épocas, locais e circunstâncias – realidades muito diferentes”

O que vemos no caso dessas adolescentes são essas realidades diferentes que Minayo (156) explicita: as adolescentes grávidas devem ser condenadas e seus bebês “indefesos” devem ser protegidos. Para a sociedade, as adolescentes em situação de rua, muitas vezes usuárias de SPA, não são consideradas detentoras de direitos humanos e que precisam ser protegidas. Assume-se que elas “Não têm mais jeito” ou que, causaram “tantos problemas”, que a rede que deveria protegê-las, afirma categoricamente que já se cansou delas. Como pode, uma adolescente que “Deu errado na vida”, ousar engravidar? Essa frase é ouvida frequentemente pela equipe do Consultório na Rua quando acompanhamos uma adolescente a serviços especializados de saúde, categorizando mais uma violência no cotidiano dessas meninas.

Quando observamos a tabela 5 (página 80), apenas uma mãe (Rosa, 21 anos) estava com a guarda da filha. No momento da entrevista, ela estava gestante do terceiro filho, abrigada na Casa da Gestante juntamente com a sua segunda filha (o primeiro estava com a avó materna e quase não tinha contato com o menino). Rosa tinha muito medo de perder a filha e o bebê que estava gestando porque lembrava-se de quando perdeu a guarda do seu primeiro filho:

“ Eu morei com o Jorge até os 9 meses, eu não dava certo com o pai dele. Quando eu saí de casa não consegui pegar o Jorge. Minha mãe pegou e

tomou ele de mim...( ) Não é que eu não ame ele mas eu já desconstruí.”

A todas as 11 adolescentes/jovens que tiveram a experiência de gestar e parir uma criança, foi-lhes tirado o direito de exercer a maternidade e todas referem a angústia e a tristeza que sentem ao lembrar do bebê “perdido”. O Estado, que já falhou em não assegurar os direitos previsto no ECA para essas adolescentes, falha novamente violentando-as ao extirpar seus bebês sem garantir qualquer política pública que auxilie essas adolescentes a concretizar a maternidade.

A lei n◦ 13257/2016 (87) pode ser entendida como um complemento ao ECA uma vez que prevê a proteção da primeira infância. Tal lei reforça o papel do Estado na execução de políticas públicas equânimes para assegurar a proteção de

crianças e adolescentes garantindo serviços e programas de proteção e apoio em casos de vulnerabilidade:

“Art. 14

§ 2o As famílias identificadas nas redes de saúde, educação e assistência social e nos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente que se encontrem em situação de vulnerabilidade e de risco ou com direitos violados para exercer seu papel protetivo de cuidado e educação da criança na primeira infância, bem como as que têm crianças com indicadores de risco ou deficiência, terão prioridade nas políticas sociais públicas.”

No caso de Yolanda, o Estado foi incapaz de assegurar um espaço onde mãe e filha pudessem ficar juntas. Após o nascimento da filha, Yolanda, que estava em circulação de rua desde o início da adolescência, havia encontrado um espaço onde poderia cuidar de si e da filha:

-“Fiquei muito tempo sem usar, tive outro prazer por ser mãe. Voltei a usar quando tiraram a minha filha.”

Apesar de ter apenas 19 anos, Yolanda consegue verbalizar que a maternidade proporcionou uma mudança em sua vida.

Os períodos da gestação e puerpério, mobilizam essas adolescentes para mudanças no estilo de vida, além da importância da interação mãe-bebê que promove segurança às crianças(157). Por este motivo, a criação de espaços específicos para que as adolescentes possam experienciar a maternidade, aprendendo sobre a amamentação e o cuidado com o bebê, podendo trocar com outras adolescentes que, certamente viveram experiências semelhantes pode ser um caminho na quebra deste ciclo de destituição do poder familiar, gravidez e violência.

A separação de Yolanda de sua filha, violando seus direitos, levou-a a um comportamento autodestrutivo e a descrença nos equipamentos do Estado que deveriam protegê-la, impelindo-a a parir sua segunda filha em outro município com medo de também perdê-la.

Esse comportamento autodestrutivo e um uso abusivo de SPA após a destituição judicial de suas crianças foi constatado também em outras falas.

Cecília, 24 anos, afirma que iniciou o uso de crack aos 19 anos porque queria morrer. Seus três primeiros filhos estão sob a guarda da avó materna. Em sua última gestação (gemelar) foi estuprada com cerca de 34 semanas e seu parto foi uma cesárea de urgência. Os gêmeos foram abrigados diretamente da Maternidade, enquanto Cecília se recuperava da cirurgia e do trauma do estupro:

-“ Não tenho mais ninguém, decidi usar crack porque queria morrer. O crack é meu amigo, tiraram meu tudo, meus filhos. Eu quero esquecer os

gêmeos...() É Deus no céu, o crack e meus filhos na terra”.

O que vemos em relação a essas adolescentes/jovens é a violência estrutural, que permeia as suas trajetórias já marcadas por outros tipos de violência, perpetuando o ciclo transgeracional que vimos na história de Carolina e sua mãe, de Teresinha e sua mãe e de tantas outras meninas que se encontram em situação de rua e que continuarão tentando engravidar em uma tentativa de suprir a ausência da criança que lhe foi destituída.

“A falta de elaboração adequada da entrega de um filho pode, a nosso ver, talvez explicar os casos nos quais o ciclo abandono-adoção tende a se repetir. Não raro, após a entrega de um filho decorrem sucessivas gravidezes que parecem grosso modo, objetivar preencher o vazio de um luto não elaborado, talvez até aplacar a culpa decorrente de tal ato”.(158)

A companheira de Yolanda trouxe diversas vezes, durante os atendimentos com a equipe do CnaR, a preocupação de que ela acordava no meio da noite gritando pelo nome da filha que lhe foi desumanamente destituída.

Ao invés de promover políticas que diminuam a iniquidade, o Estado viola o direito dessas adolescentes, com o discurso da proteção ao nascituro, olvidando que ambos estão contemplados na mesma linha do ECA e que as adolescentes em situação de rua, usuárias ou não de SPA necessitam de espaços de acolhimento e tratamento adequados para elas.

Em Campinas, em um grupo de trabalho sobre a Maternidade, chegou-se a discutir um fluxo no qual o Centro de Saúde deveria avisar o Conselho Tutelar caso recebesse uma mulher para o Pré-Natal que fosse usuária de SPA, considerando-a automaticamente inapta para a Maternidade. Foram necessárias extensas reuniões com as equipes do CAPS ad, CnaR e da Defensoria Pública para reverter este fluxo. Há dois abrigos que acolhem gestantes, em Campinas, apenas a Casa da Gestante acolhe a mãe com outros filhos (20 vagas para mães e filhos). Não há nenhum abrigo específico para mães adolescentes e tampouco um abrigo que acolha famílias. A gestante deve ser separada do companheiro contrariando o previsto na Lei 13.257/2016(87) que preconiza a reintegração familiar. Separada do companheiro, além da sensação de desamparo por estar sozinha, a mulher preocupa-se com o companheiro que continua em situação de rua:

“É bom estar aqui, mas eu fico preocupada se ele está comendo, onde ele está dormindo.” Rosa, 23 anos, estava na Casa da Gestante

Quando a ineficiência das políticas públicas acarreta na separação de mães e filhos, através da destituição do poder familiar, essas crianças, tal qual ocorreu com suas mães, são enviadas para abrigos.

Há na literatura diversos estudos evidenciando que crescer em abrigos é também um fator de risco para as crianças, levando a um aumento da delinquência, uso precoce de substâncias psicoativas, transtornos mentais, comportamento sexual de risco (127,128,159–163). Nesta pesquisa, 39 (76,5%) adolescentes/jovens já viveram em abrigos, destas(destes) 38 afirmam que já fizeram uso de SPA (97%) e nove (18%) iniciaram o uso antes dos 10 anos de idade. Das(dos) 39 adolescentes/jovens que cresceram em abrigos, 26 (67%) já tiveram passagem pela polícia.

Estudos apontam que as instituições que deveriam proteger as já fragilizadas crianças falham, gerando ainda mais traumas para estas, que frequentemente vão para as ruas. (129)

Dados da revista “Em discussão”, do Senado brasileiro, evidenciam que, das 44 mil crianças e adolescentes abrigadas(os) no Brasil, apenas 5500 estão em condições de serem adotadas(os) (uma em cada oito crianças) (28),

Visando minimizar os impactos no desenvolvimento e na psique das crianças abrigadas, no Brasil, desde 2006, o Acolhimento Familiar foi instituído como serviço alternativo ao acolhimento institucional, através do qual, uma família (família acolhedora) voluntaria-se para receber crianças e/ou adolescentes de até 17 anos e 11 meses pelo tempo necessário a fim favorecer novos vínculos afetivos, assegurando os cuidados básicos, convivência familiar e comunitária (164).

Como trata-se de uma prática relativamente recente no Brasil, até o momento há poucos estudos nacionais sobre o assunto, porém os estudos qualitativos encontrados evidenciam que as crianças que passaram pela experiência de estar em uma família acolhedora conseguem reorganizar sua realidade, estabelecendo novas relações com figuras de referência que as auxiliam a ressignificar seu sofrimento. (165,166)

Estudo realizado na França (país onde a prática de famílias acolhedoras existe desde a década de 60) entrevistou 45 jovens de 23 anos (cinco anos após a maioridade legal no país) que viveram em famílias acolhedoras por um período de, no

mínimo, cinco anos. Para esse grupo, a inserção em uma família acolhedora (independentemente dos anos prévios vividos em abrigos) possibilitou maior integração social e profissional e melhor qualidade na saúde física e mental, evidenciando a recuperação dos traumas vividos anteriormente. (167)

As famílias acolhedoras deveriam ser a melhor alternativa ao abrigamento institucional quando são esgotadas todas as possibilidades de que a criança possa crescer no seu núcleo familiar.

“Art. 19.

§ 3o A manutenção ou a reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em que será esta incluída em serviços e programas de proteção, apoio e promoção...” Lei 13.257/2016(87)

No entanto, atualmente, deparamo-nos com uma realidade marcada pela violência estrutural na qual, apesar do preconizado pela Constituição, pelo ECA e pelo Conanda, os próprios órgãos responsáveis pela proteção e garantia de direitos dessas adolescentes/jovens em situação de rua classificam-nas como mulheres inescrupulosas por desejarem e ousarem ser mães.

Para essas meninas, cuja convivência familiar deu-se através da violência, faz-se necessário uma atenção interdisciplinar para garantir o direito à maternidade e à criança o direito a uma família que não seja vinculada pela violência.

Aos serviços de saúde (principalmente a Atenção Primária), à assistência social, à educação, à arte e cultura, cabe-nos realizar um trabalho junto a essas famílias para que aprendam que há outras formas de relacionar-se, outras maneiras de cuidar, de modo que, seus filhos e filhas não sejam retirados brutalmente perpetuando o ciclo da violência.