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Ao retomarmos, brevemente, à produção científica (produção de verdade), a respeito da travestilidade, pode-se constatar que muitas pesquisas já serviram para classificar, categorizar ou buscar explicação para a sua existência. De fato, há uma tendência dos discursos da psiquiatria e da psicanálise clássica de serem patologizantes, essencialistas, moralistas e biologizantes (BENEDETTI, 2005; FOUCAULT, 2011b; HOFFMAN, 1969). Denunciando essa propensão do meio acadêmico em buscar domesticar os sujeitos, a partir da delineação do que seria travesti, Patrícia Leitão (2008, p.74) afirma que:

[...] diferenciações categóricas procuram estabelecer uma lógica para o sistema sexo-gênero, a partir da utilização de um discurso fundamentado em oposições binárias que pouco ou quase nada traduzem a multiplicidade das identificações sexuais e de gênero pelas quais as travestis transitam.

Dito de outra maneira, Leitão (2008) coloca a propensão da academia em encerrar o que seria travesti dentro do enquadramento binário sexo-gênero, deixando de fora toda uma variedade de formas de viver e outras transitações.

Em consonância com as autoras, consideramos as armadilhas da linguagem na qual estamos sujeitas, ao reafirmar a existência de um sujeito travesti. Destarte, buscaremos desconstruir esta certeza consensual relativa às identidades sexuais, nos aproximando de Butler (2004), na intenção de esgarçar e alargar os conceitos até não poderem mais denominar aquilo a que se propuseram. Neste sentido, estaremos atentas às contribuições de Gaston Bachelard (2005, p.21) sobre o exercício de desconfiar das identidades:

um pensamento inquieto desconfia das identidades mais ou menos aparentes e exige sem cessar mais precisão e, por conseguinte, mais ocasiões de distinguir. Precisar, retificar e diversificar são tipos de pensamento dinâmicos que fogem da certeza e da unidade... desejam saber, mas para, imediatamente, melhor questionar.

Mesmo sem nos ocupar inicialmente em definir o que seria travesti ou travestilidade, não pudemos nos furtar de reconhecer que somente o emprego da nomenclatura poderia engessar e estereotipar o existir. Pois, “[...] possuir uma identidade é se submeter a um lugar que já está dado” (BLANCA; GROSSI, 2010, p.6). Ademais, o conceito de travesti está calcado numa identidade sexual fixa, sob o parâmetro de práticas sexuais reprodutivas (FOUCAULT, 2011b).

Compreendemos que a travesti cria “encrencas de gênero”29 nas identidades estabilizadas de homem e mulher, mas esse desconfiar da própria definição do que seria travesti pode gerar algum incômodo, afinal implica desconfiar da própria identidade, como um marcador da nossa existência.

As identidades sempre ocorrem na tensão entre grupo e indivíduo: “uma individualidade multifacetada descobre-se totalmente determinada por um único elemento: a identidade religiosa, étnica, racial ou de gênero” (SCOTT, 2005, p.18). Um dos perigos da identidade está em delimitar e fixar o sujeito em um único modo de ser. Elas comumente parecem dizer de uma característica partilhada entre um coletivo, colocando o sujeito dentro de um ideal de individualidade, de singularidade e de uma separação ontológica entre indivíduo e mundo.

Numa perspectiva pós-estruturalista, a identidade é articulada aos jogos de poder: “Supõe que as relações de poder encontram-se no cerne dos processos de significação que constituem e marcam as diferentes identidades” (FURLANI, 2005, p.17). Assim, o termo identidade não é imbuído de fixidez, mas visto como uma ficção socialmente construída, sempre parcial e incompleta (SILVA, 2012). Donna Haraway (2009, p.47) nos alerta sobre o contraditório ato de nomear, que opera exclusões e não pode ser tomado como essência. A saída encontrada pela autora é descaracterizar a identidade de uma constância, realocando-a para o âmbito sócio-histórico:

A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato de nomeação é aguda. As identidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas. Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a

29 Sandra Azeredo (2010) prefere traduzir o termo gender trouble, por encrencas de gênero. Esta expressão é usada por Judith Butler na obra Gender Trouble (2008b), que problematiza o conceito de gênero.

classe são social e historicamente constituídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade essencial.

Nessa mesma linha, estão os estudos culturais que por meio da observação das migrações, das influências mútuas, das fronteiras de nações que se desmancham na pós- modernidade, vêem as identidades como em transição e como movimentos de resistência (HALL, 2006).

Reforçando esse argumento, Butler (2004) chega a afirmar que não seria possível construir um movimento político-democrático sem que seja imprescindível a abertura da rearticulação das identidades que o constituem. E tão importante quanto à articulação política em torno de identidade são os processos de “desidentificação” que existem em uma rearticulação mais democrática (BUTLER, 2002b). Ora, a existência de uma multiplicidade de identidades, reivindicando direitos, reconhecimento ou simplesmente se colocando, fratura a própria noção de identidade única, estável e a formação de identidades ideais (FURLANI, 2005; PRECIADO, 2011).

Esta contradição entre a identidade como um aspecto positivo e negativo é colocada por Butler (2002b) como sempre problemática e tensionada para os movimentos sociais. Assim sendo, as políticas de identidade dentro do movimento feminista são revisadas por Butler (2008b) em Problemas de gênero – livro canônico da teoria queer –, quanto ao uso da identidade como algo que reafirma, naturaliza uma diferença calcada em uma desigualdade social (a existência do homem e da mulher como categorias biologicamente dadas, a-históricas e imutáveis).

Dessa maneira, Butler (1992) enfatiza a necessidade de a identidade ser constantemente tensionada, pois as categorias identitárias são meramente descritivas e, ao deixar de fora outros modos de viver, são sempre normativas e excludentes.

Quanto às políticas de identidade, Liz Bondi (1999) e Chantal Mouffe (1999) ressaltam os riscos de cristalizações e reforço de estereótipos.30 Além do mais, Mouffe (1999, p.269) destaca que a identidade é conformada por antagonismos:

toda identidade se estabelece por relação e que a condição de existência de toda identidade é a afirmação de uma diferença, a determinação de algum outro e que este outro funciona como se exterior, é possível compreender o surgimento do antagonismo.

30 Para Larrosa (1994, p. 2011), estereótipo “São lugares comuns do discurso, o que todo mundo diz, o que todo mundo sabe. Algo é um estereótipo, quando convoca mecanicamente o assentimento, quando é imediatamente compreendido, quando quase não há o que se dizer.” Eles restringem e simplificam condutas a alguns elementos socialmente compartilhados.

Esse antagonismo pode facilmente criar a leitura amigo/inimigo, de modo que, ainda segundo Mouffe, toda a identidade demarca diferenças e transforma nossa maneira de conceber o político, pois codifica e hierarquiza o mundo, ao mesmo tempo em que é codificada e atravessada.

Nessa seara, sob o viés do feminismo, Avtar Brah (2006) propõe o uso estratégico da identidade pelos movimentos sociais, como um elemento que comunica uma característica, contudo não permanece rígido, amarrado. Por um lado, a autora realiza uma crítica radical da identidade como instância que pode ser aprisionante; por outro, assume a necessidade de usos pontuais.

Por sua vez, Preciado (2011, p.16) defende a positivação de identidades degeneradas, chamadas “os anormais” (pelos movimentos pós-coloniais, pós-feministas,

queer), como sujeitos que provocam rupturas, des/hiper/pós-identificações, que

transcendem as identidades a que estamos acostumadas/os:

a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher), nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”: são os drag kings, as gouinesgarous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientes, ciborgues... O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas.

Por uma outra via, Haraway (2009, p. 48) propõe uma política não identitária: “aquela que se dá por meio da coalizão – a afinidade em vez da identidade.” Em outras palavras, outro modo de aproximação que não passa pela percepção de uma igualdade dos sujeitos, mas pela aproximação por objetivos em comum, através de coalizões estratégicas.

Em suma, concordamos com Joshua Gamson (2006, p.354) em que “a identidade não pode ser tomada como um ponto de partida para a pesquisa social, e o pesquisador nunca pode fingir que esta é imóvel, como se estivesse pronta para um

close up.” Neste sentido, não devemos “colher”4 informações sobre as supostas

categorias identitárias como se fossem uma realidade incontestável ou um ponto de partida. Sendo assim, não buscaremos captar a verdade, a essência do que seria ser travesti, muito pelo contrário, colocaremos em cheque esse conceito como universal e atemporal.