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Concepções de travesti: entre o lugar comum e o não lugar

Conforme Bachelard (2005) pontuou, é preciso questionar a ciência em sua constante tendência a generalizações e explicações totalizantes, perpassadas pela ideia insistente de que nomear as coisas é conhecê-las a fundo e dominá-las, como também, pelo uso insistente, ampliado e generalizado do termo para explicar diferentes situações. Por sua vez, Canguilhem (1982, p.95) realiza uma crítica à tradição filosófica realista, pelo equívoco de tomar “toda generalidade como indício de uma essência, toda perfeição, a realização de uma essência e, portanto, uma generalidade observável de fato adquire o valor da perfeição realizada, um caráter comum adquire um valor de tipo ideal.” Dizendo de outro modo, a observação de um padrão ganha ares de perfeição, verdade, tida como uma regra, valorada como ideal e melhor.

Nessa mesma direção, Deleuze (1988, p.25) apresenta uma crítica à generalidade como algo que “só representa e supõe uma repetição hipotética.” Além do mais, a generalidade seria sempre da ordem das leis, aproximando-se da concepção de universalidade normativa de Butler (1998), que como o próprio nome indica supõe que toda universalidade repousa na reafirmação de padrões, sendo, portanto, excludente.

Nesse horizonte, noção de travesti, enquanto categoria nosográfica, seria nebulosa e problemática, pois estaria atravessada e produzida pelos efeitos dos mecanismos de saber-poder. Analisando as modificações históricas desse conceito, a hermafrodita e o andrógino (figuras míticas do período greco-romano) são os primórdios da matriz conceitual “trans” – travestis, intergêneros, transexuais – que ainda reverberam no atual discurso científico e no senso comum.

A construção histórica de discursos de verdade sobre a travestilidade perpassa uma cadeia de significados que atravessa os mitos, o senso comum e a ciência, através dos conceitos de travesti, de hermafrodita e de andrógino, que suscitaram mudanças nos sentidos e nos significados dos termos (LEITE JÚNIOR, 2011). Pois, como nos chama atenção Jacques Derrida (1968, p.7, trad.nossa), os conceitos estão sempre em cadeia e referidos a outros:

o conceito do significado não está nunca presente em si mesmo, em uma presença suficiente que não se conduziria mais além que a si mesma. Todo conceito está por certo e essencialmente inscrito em uma cadeia ou em um sistema no interior do qual remete a outro, aos outros conceitos.

Para Mouffe (1999, p.267), “toda objetividade social é política e deve levar a marca dos atos de exclusão que governam sua constituição.” É imperioso, portanto, analisarmos como se constitui esse conceito. Embora a palavra e o conceito travesti sejam termos pretensamente universais/normativos, advindos do discurso médico e à primeira vista importados, ao serem colonizados, sua tradução e sua apropriação, conforme Spivak (2010), podem ser subversivas.

Haja vista as particularidades nacionais, na Índia, no Paquistão, por exemplo, nas quais figuras semelhantes às travestis adquirem sentidos diferentes, ou seja, não são consideradas nem homens, nem mulheres, ocupam o lugar de terceiro sexo. As denominadas Hijras são concebidas como criaturas mágicas, louvadas e associadas ao Deus Khrisna, que para satisfazer o último pedido de um bravo soldado transformou- se, durante uma noite, em uma mulher, e se deitou com o guerreiro.

Atualmente, por influência do pensamento ocidental, elas vêm sofrendo preconceito e exclusão social. Não possuem castas e seu único modo de sustentação é viverem organizadas em grupo que pede dinheiro nos casamentos e nos nascimentos, em troca de rituais de bênção. Durante o julgo do império britânico, as Hijras foram criminalizadas e presas. Assim, para se proteger, criaram uma linguagem própria de comunicação, uma espécie de dialeto, que adquire contornos específicos na Índia e no Paquistão (MUKHERJI, 2013).

Em Samoa (Polinésia), essa construção se dá diferentemente. Resumidamente, famílias chegam a escolher e destinar uma de suas crianças para se tornar Fa’fafine. Ter alguém assim, na família, é um bom sinal cósmico, de prosperidade (SAMOA FAAFINE ASSOCIATION INCORPORED, 2013). Desta forma, criam, intencionalmente, o que consideram ser um menino como uma menina. A maioria das

Fa’fafine tem relações sexuais com homens, mas não são consideradas homossexuais.

Particularmente no Brasil, as travestis costumam fazer uso do Bajubá, espécie de dialeto no qual misturam gírias locais, com palavras estrangeiras (principalmente de origem italiana e norte-americana) e termos do candomblé (de origem africana), como um modo de se comunicarem em código e de se protegerem (BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005). Trata-se de uma manifestação brasileira singular, que em cada localidade ganha elementos e contornos próprios, constantemente reinventados.

Mas, enfim, o que seria travesti ou travestilidade? Pergunta recorrente realizada por interessados, ao expor esse objeto de estudo: travesti na escola. Então, nos interrogamos sobre a necessidade de delimitar uma curiosidade latente em saber, afinal,

do que se trata (qual a verdade?), de tal criatura. Ora, Foucault discorre sobre o longo processo histórico que culminou com construção, segundo a qual a verdade do sujeito estaria atrelada à verdade sobre o seu sexo (FOUCAULT, 2011b).

Interessante observar que ao recorrer à definição básica de travesti presente no dicionário de língua portuguesa, encontramos a resposta de um disfarce, “disfarce sob o traje de outro sexo” (MICHAELIS, 2000). Ora, denominar travesti como o sujeito que se porta, se veste como uma pessoa distinta de seu sexo biológico, pressupõe um sexo originário, com base no binarismo macho/fêmea. Além de tomar a indumenta e comportamentos circunstanciais típicos enquanto atributos, essencialmente masculino/feminino, de modo atemporal e universal.

Pois bem, algumas inquietações nos parecem revelar a fragilidade de tal definição: Um homem vestir-se de mulher, por alguns segundos, em uma peça de teatro, é ser travesti? Ora, não há problemas para um palhaço de circo em pintar a boca de vermelho ou para o ator se vestir de mulher, mas em outros cenários estes comportamentos podem ter severas consequências e punições. E as incoerências não param por aí. Ser travesti implica, necessariamente, desejar ser mulher? E quanto à travesti que não o deseja, e sente desejo sexual por mulheres? Ela seria heterossexual ou homossexual?

A essa altura, os conceitos parecem se desfazer entre os dedos, se embaralhar. Essas indagações revelam o quanto as fronteiras de gênero são porosas, melhor dizendo, o quanto a ilusão de fronteira é frágil. Talvez, por isso, tanto cuidado para não despedaçá-las.

Outro aspecto importante para essa discussão é o atravessamento de classe no Brasil: a nomenclatura travesti tem sido negada por pessoas de classe econômica elevada, que preferem se denominar cross-dressers,31 descolando-se do imaginário social que atrela, necessariamente, travestis, prostituição, malandragem e confusão. Não poderíamos nos furtar de destacar que as nossas participantes estão inseridas na categoria de baixa renda.

Nara: “Assim, quando se trata de nível social, as coisas ficam bem mais fáceis, se você tem nível social, você é respeitado, não importa se você seja homossexual, se você seja travesti, se você seja transexual... se você não tem... você só vale o que você tem!

31 Termo importado dos EUA e Europa para o Brasil, em 1997, para se referir a pessoas que gostam de usar roupas consideradas do sexo oposto, independentemente das opções sexuais (BRAZILIAN CROSSDRESSER CLUB, 2013).

Bárbara: “O dinheiro é o poder.”

Os marcadores de gênero e de sexualidade aparecem atrelados à classe econômico-social. O recorte de classe foi sublinhado durante o Encontro Estadual de Travestis e Transexuais de Pernambuco, onde tivemos uma dimensão significativa de sua marca, pois das poucas travestis presentes que tinham uma melhor condição financeira, raras conseguiam frequentar faculdades particulares sem maiores constrangimentos.

Retomando o discurso científico sobre a travesti atual, para entendermos como vem sendo construída essa unidade discursiva, encontramos uma associação com a arte (literatura, teatro, cinema), ligada a uma performance artística e ao campo das ciências da saúde com a preocupação em torno da prevenção de DST/Aids e da formulação de diagnósticos nos estudos psiquiátricos/psicanalíticos.

Notamos, ainda, forte presença na área de humanas, com estudos nos campos da antropologia, das ciências sociais, da psicologia, da linguística, do feminismo, dos estudos queer, preocupando-se, prevalentemente, com a construção de identidade e de modificações corporais, com subverções linguísticas, colocando as travestis como figuras que produzem, necessariamente, inquietações, readequações normativas e mudanças discursivas. Neste caso, nos interrogamos, até que ponto a imagem de uma necessária transgressão trans não estaria contribuindo para sua mitificação como criaturas sobrenaturais e fantásticas, escamoteando determinados aspectos que reafirmam as normas?

Na tese de doutorado, Luma de Andrade32 (2012) confirma os seguintes problemas identificados ao longo de nosso levantamento da literatura científica: a escassez de trabalhos, versando especificamente sobre travesti e escola; a concentração de estudos etnográficos que naturalizam o binômio travesti-prostituição; pesquisas que giram em torno da descrição da construção corporal e de identidades travestis; e, finalmente, a associação da travestilidade à prevenção de DST/Aids. Em relação a este último aspecto, as pesquisadoras Débora Diniz e Tatiana Lionço (2009) alertam sobre o processo de “sidalização”, ou seja, a construção de uma cidadania imbricada aos perigos da Aids, que reconhece e visibiliza esses sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, reforça a visão de travestis como um grupo de risco.

Olhando para o depoimento de Janaína, travesti e liderança do movimento LGBTTT, homenageada no documento nacional do Programa Brasil Sem Homofobia, podemos conhecer um pouco da difícil jornada das travestis, perpassada por violência na família, na escola, agravada no contexto nordestino (pelos arraigados valores machistas), tornando suas vidas predestinadas à violência e à prostituição:

Geralmente, quando ainda estão cursando o ensino fundamental, por volta dos 13 ou 14 anos, as jovens travestis começam os processos de hormonização, depois vêm a siliconização e o preconceito. A família, principalmente no Nordeste, não aceita e o garoto é expulso de casa. O único meio de vida é a prostituição. Costumo comparar a travesti a uma ilha, só que ao invés de estar cercada de água por todos os lados, está cercada pela violência (BRASIL, 2004, p.2).

A prostituição oferece uma alternativa, uma possível solução para a exclusão, dando condições econômicas, acesso a objetos e experiências tidas como inalcançáveis por outras vias: “[...] é possível possuir objetos e viver situações impossíveis de serem experimentadas de outra forma” (RUSSO, 2007, p.508).

Quanto ao cotidiano da prostituição de travestis, Larissa Pelúcio (2005), em sua etnografia, elencou como problemático o enfrentamento das travestis em face de situações de violência com os clientes, entre elas mesmas, com a polícia e com a comunidade local. Tais conflitos estão, mais especificamente, relacionados ao uso de drogas, ao pagamento de pedágio (taxa pela circulação em ponto comercial do mercado do sexo) e de dívidas.

Em consonância com tal contexto, um estudo qualitativo com travestis participantes de movimento social LGBTTT de Pernambuco, na cidade do Recife (LEITÃO, 2008) também verificou que as travestis encontravam dificuldades de inserção no mercado de trabalho, ficando restritas às atividades laborais consideradas femininas. As que não se prostituíam precisavam de apoio de familiares ou de amigos para se sustentar. Tal como no relato de Xuxa, que problematiza essas restrições de a travesti exercer apenas atividades ocupacionais consideradas eminentemente femininas:

Porque, assim, o pessoal fala de travesti, travesti é marginalizado, é, mas não tem outra escolha, quais são as outras profissões que o travesti tem? Ou é profissional do sexo, ou é cabeleireiro, ou é revendedor de Avon, da Natura, que são os caminhos que consegue. Ou vai fazer faxina.

Paradoxalmente, as ruas e a noite na batalha, ao mesmo tempo em que são lugares de exposição à violência, parecem possibilitar o estabelecimento de laços de solidariedade, privilegiar o acesso a recursos financeiros, que viabilizam mais estratégias de modificação corporal e a obtenção de reconhecimento social, através da via do glamour, espécie de admiração por meio do luxo e da estética (BENEDETTI, 2005; FERREIRA, 2009; PELÚCIO, 2005; TEIXEIRA, 2008).

Diferentemente da ênfase dada pelas travestis, nos estudos etnográficos, em relação à construção do corpo, das técnicas de “bombação,”33 da ingestão de hormônios, de gestos e vestes extravagantes e marcadamente femininos (BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005; SILVA, 2007), ao longo desta pesquisa, foi comum travestis usando, “correntemente”, peito de espuma ou sem peito nenhum, “de cara lavada” (sem usar maquiagem), de calça jeans e camisa de malha, com “o chuchu por fazer”34 mesmo nas ruas, à noite, na batalha.35 Havia lugar para o glamour, com brilhos, pernas de fora e maquiagem, mas definitivamente isso não era uma regra. O uso de hormônios ou a “bombação” não era administrado pela maioria delas, por considerarem práticas que prejudicam a saúde. O que nos leva a questionar se a montagem, nos referidos estudos, não seria uma espécie de pré-requisito para ser travesti, sem falar, obviamente, das referências regionais e econômicas.

Sobre a configuração familiar, a dissertação de Marina Mesquita (2013) nos oferece um olhar para a construção de novos laços, tanto entre pares, como no “amadrinhamento”, relação hierárquica de guia, cuidado, sendo comum o uso do termo “mãe”, “madrinha” das dragqueens, mas que pode ser um modo de mascarar relação de exploração financeira (cafetinagem) ou de uma relação bastante vertical e autoritária.

Outro aspecto a ser pensado sobre o amadrinhamento, presente na dissertação de Marília Amaral (2012), intitulada “Essa boneca tem manual: práticas de si, discurso e legitimidade na experiência de travestis iniciantes,” é que para além de uma relação dúbia de cuidado/exploração, essa relação torna evidente a identidade travesti, como um processo de transformação, um artefato cultural. Processo que exige um aprendizado, passado da mãe/madrinha para a travesti iniciante, assim como todas as outras

33 Modificação corporal, através de injeção de silicone industrial, prática considerada recorrente entre travesti, por ser um modo mais barato, porém com sérios riscos de complicações e falecimento (BENEDETTI, 2005).

34 De acordo com informações do campo, seria expressão do Bajubá para aparecimento de pelos da barba. 35 Gíria utilizada para se referir à prostituição.

identidades, com a particularidade de este aprendizado se dar muitas vezes fora das escolas, da mídia e das instituições familiares.

Para além dos achados nas pesquisas etnográficas de travestis que transgridem os limites de gênero, através da linguagem e da construção de seus corpos, nos dispomos a olhar para outras dimensões. A metodologia de trabalho em grupo e a discussão de leis e políticas públicas parecem ter favorecido as enxergarmos como pessoas extremamente sagazes, um grupo com grande capacidade reflexiva, criativa e de articulação política.

Chegamos à conclusão de que não é possível falar de uma travesti, enquanto uma unidade sólida, um modo de ser único e fechado. Assim como a categoria universal mulher foi contestada pelo movimento de negras, de lésbicas (HARAWAY, 2004; NICHOLSON, 2000; PISCITELLI, 2002), não seria possível afirmarmos uma universalidade travesti. Mas de travesti enquanto uma experiência em construção, que se encontra em constante disputa, deslocamento e é atravessada por discursos e seus efeitos. Um deles é a exclusão social. No trecho apresentado por Xuxa, vemos o quanto a experiência de ser travesti pode ser carregada de sofrimento:

Eu sempre digo, sabe, que ninguém brinca de ser de travesti. Ninguém opta pelo lado mais difícil da vida. Porque se fosse optar pelo lado mais difícil da vida, eu acho que nenhuma daqui de nós iria querer ser travesti, iria querer ter nascido ou mulher mesmo ou homem, porque a discriminação é muito grande.

Para Xuxa, ser travesti não seria uma escolha racional, diante de todas as adversidades existentes. Parece que essa forma de viver não é fácil, uma vez que sai da obviedade mulher ou homem paga-se um alto preço social na forma de discriminação e de preconceito desferidos contra seus corpos.

Podemos concluir que assim como no movimento feminista no qual a categoria mulher foi rasgada pela reivindicação de diferentes mulheres (lésbicas, negras, latinas, indígenas...), o termo travesti não poderia ser diferentemente complicado, por se referir a pessoas de diversas nacionalidades, culturas, classe socioeconômica, raça/etnias (HARAWAY, 2004; NICHOLSON, 2000; PISCITELLI, 2002).

As perguntas e constatações aqui realizadas versam sobre os sutis limites culturais que demarcam os sentidos de ser travesti. Para compreender criticamente a formação do que seria travesti, seria preciso, porém, desconfiarmos de algumas certezas fundacionais sobre a natureza, o gênero, o sexo e o corpo, conforme trataremos no subcapítulo a seguir.