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A comédia, o engano aos sentidos e o desvio

A dimensão da comédia, daquilo que é absurdo, do extraordinário e do inesperado, apareceu associada à figura da travesti “parece que quando chega uma

travesti... parece que chega uma palhaça!” Chama a atenção, causa cochichos, olhares,

risadas: “...o povo pensa que a travesti é como uma palhaça” (Bárbara). Na fala de Xuxa, “travesti nunca vai ser... travesti sempre vai ser a estrela de qualquer lugar, a

gente nunca vai ser... as pessoas são um rosto... é uma pessoa normal no meio da

multidão, a gente, quando chega, é o centro das atenções.”

Esse frisson provocado pela presença de uma travesti remete-nos à ideia de um ser que paradoxalmente assusta, encanta e seduz, como descrito por Bárbara “A gente

tenta levar a vida como uma pessoa normal, porque pra comunidade, a gente é uma

coisa do outro mundo, não se acostuma, não se habitua com a gente não,” bem como a

figura mitológica da hermafrodita, descrita por Leite Junior (2011).

Outra dimensão da comédia seria o uso do humor por elas como uma estratégia, um modo de viver mais leve. Ao longo das oficinas, aprendemos bastante com o grupo a buscar ser mais leve e mais alegre diante da vida. Apesar das inúmeras adversidades enfrentadas, o grupo se mostrava sempre bastante sagaz, irônico e divertido.

Xuxa nos contou uma história de uma amiga: “ela passou pelo ponto de ônibus.

Seu veado! Ela voltou. Aí ela disse assim: quem foi que disse que eu era veado? Aí um

homem disse assim: foi ele (bem baixinho). Acertou!” (risos) “E foi simbora! E se ela

fosse bater boca, Mona?” A sensação que nos dava era de que não valia a pena viver de

modo tão sério, tão pesado. Esse aprendizado era esperado como processo grupal. Ao compartilharem suas vidas, as pessoas vão se dando conta de que o sofrimento que as atinge não é o único, não é sempre o maior.

Curioso que a expectativa desse aprendizado se dá mais comumente na literatura científica aos participantes do grupo, não para facilitadora/pesquisadora, como se a pesquisadora fosse um sujeito à parte. O aprendizado com a troca, porém, ocorreu para as pesquisadoras também, que passaram a rever o modo como lidam com os problemas e a tentar rir mais de si, levar a vida de maneira mais leve.

Havia muitas brincadeiras, piadas, mesmo quando falávamos de situações extremamente difíceis. Então, poderíamos nos perguntar se não se trataria de uma defesa egóica, de uma negação. Diante dessa questão, responderíamos que se fosse uma defesa, parecia uma estratégia bastante eficaz para lidar com tamanhas dificuldades.

Estratégias que convocam Paiva (2008, p.67) a pensar na “artificialização da vida, humor, criação, paródia, como remédio aos afetos tristes.”

Ademais, nascida a partir dos guetos, das comunidades gays, de prostitutas, de excluídos, a proposta da teoria queer é usar o humor, a sátira e a paródia como estratégias de suspensão e reflexão do que se conhece como realidade. Uma maneira eficaz de realizar deslocamentos no discurso, por subverter seu sentido valorativo de negatividade e com isso se reinventar outros olhares.

O humor e a ironia, portanto, além de potencialmente produzirem deslocamentos, por subverterem bom/ruim, negativo/positivo, podem ser uma maneira de dizer algo difícil de ser dito: “É possível perceber potencial subversivo na ironia e no humor e esses, muitas vezes, podem constituir formas privilegiadas de dizer o que, de outro modo, não pode ser dito” (LOURO, 2009, p.138).

Por vezes, a indiferença parece ser uma forma de poupar energia, de evitar desgaste: “Eu sei que a gente incomoda Dani, e eu vou brigar com o povo? Vou nada!” (Xuxa) ou mais adiante: “Nem toda hora, Nara, você tem aquele tempo, você entendeu,

Dani? De tá batendo de frente, de estar discutindo. Você termina perdendo seu tempo,

você tem outras coisas para fazer.” Mas, essa leveza pode recair em certa indiferença.

Expressões como “nem ligo” e “eu até gosto” porque tiram algum benefício residual de determinada situação, falavam de uma tentativa de não se abalar tanto, diante da cotidiana violência. Todavia, trata-se de uma estratégia que se muito repetida pode ser por demais apaziguadora, pois se evitarem constantemente os conflitos, a tendência é a perpetuação desse status quo.

No discurso de Nara, as travestis são vistas como criaturas ardilosas que buscam enganar os sentidos, com a intenção de confundir e desestabilizar as pessoas:

“Parabéns! Você me enganou” – fala irônica de um senhor para com Nara, por ter

pensado que lidava com uma mulher “de verdade”.

Como se houvesse um sexo verdadeiro descoberto por detrás dos apetrechos e gestos considerados femininos e a travesti estivesse brincando com esses símbolos, ludibriando, fazendo-nos intencionalmente cair em um erro de julgamento, da razão, dentro de uma lógica de binarismo sexual e da heteronormatividade.

Como vimos anteriormente, a definição da palavra travesti surge no dicionário de língua portuguesa enquanto disfarce, vestir-se de acordo com um sexo que não se pertence (MICHAELIS, 2000). Como se quisesse enganar o outro, usando vestes opostas à prescrição social.

Retomando historicamente esses sentidos da dúvida, encontramos fortes valores morais associados à necessidade de saber de um sexo-verdade. Essa sede de verdade sobre o sexo adentrou no discurso científico sob diferentes formas: de doenças a serem tratadas, de um sexo verdadeiro a ser descoberto pela ciência, aliado ao imperativo de um único sexo a ser assumido pelo indivíduo (FOUCAULT, 2011b).

Além do mais, na lógica binária do sexo único do indivíduo, a figura do hermafrodita torna-se apenas mitologia longínqua, “não mais o incômodo de um ser intermediário, mas o impasse de um ser impossível. Não há mais lugar na ciência para alguém com os dois sexos/gêneros” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.59).

Para Deleuze (1988, p.65), todavia, todo binarismo estabelece uma zona de exclusão, aquilo que foge, que escapa do que seria o esperado, aquilo que destoa, usualmente denominamos de diferente: “O pensamento estabelece a diferença, mas a diferença é monstro.” A diferença é que há de fora, de anormal. Indo mais além sobre o processo de diferenciação, criando monstruosidades, Deleuze (1988, p.64) ironiza: “Uma receita barata para produzir um monstro é amontoar determinações heteróclitas ou sobredeterminar o animal.”

Nesse âmbito determinista, a associação entre um desvio do comportamento heteronormativo e a criminalidade permanece nos discursos sobre as travestis (a partir dos relatos no Cabo). São vistas como seres que passam uma mensagem de ameaça para a integridade física das pessoas, da sociedade, seres à margem, verdadeiros marginais: “O travesti na sociedade brasileira é de forma geral marginal... Travesti rouba, travesti

mata, travesti faz isso” (Nara). Ou no relato de Luana: “A gente é ladrão, marginal.

Pronto, se tiver um grupinho, se a gente tivesse ali fora, passassem: ali tá bom de separar. Ligam pro 190 mulher! Para um carro do lado: tá tendo reunião aí, é? Já

aconteceu comigo.” Semelhante visão, relacionada à marginalidade, confusão e

baderna, foi constatada por Rubens Ferreira (2009), em pesquisa realizada com a comunidade, ao redor de um notório ponto de prostituição de travestis, em Fortaleza/BR.

Parece-nos que a travesti comete, de antemão, um crime fundamental e inalienável – a transgressão das fronteiras de gênero – e isso as torna eternas fora-da-lei e criminosas para o imaginário coletivo enquadrado no discurso jurídico, da manutenção de norma, das regras.

Na obra Os anormais de Foucault (2010), as travestis podem ser consideradas como uma das monstruosidades de nosso tempo, figuras assustadoras, que fogem às

normas, mas que ao mesmo tempo, e por isso mesmo, as reificam. Além disso, tudo o que foge à racionalidade vigente é jogado para a dimensão da loucura, da aberração como modo de preservação da norma e da razão (FOUCAULT, 2010).

Percebe-se, a partir da análise de Foucault (2010), que as categorias hermafrodita e andrógino passaram ao discurso cristão com ares de periculosidade e de pecado. No cristianismo, a ambiguidade, o duvidoso e o pecaminoso eram representantes de uma sexualidade considerada exarcebada, uma criatura com características físicas dos sexos (seios e pênis) virou sinônimo do diabo e a certeza, enquanto a verdade era a manifestação de Deus em sua perfeição, arrodeado de anjos assexuados (LEITE JÚNIOR, 2011).

Com base nesse mesmo entendimento, Leite sugeriu repensar os limites da categoria humana com a relação que temos com os nossos monstros – que funciona como outra categoria de inteligibilidade, que alegoriza e aterroriza a saída da norma (LEITE JÚNIOR, 2012). Faz refletir na maneira de nos relacionarmos com os “outros” que criamos e mesmo na necessidade desse e de alimentarmos o medo infantil de criaturas tenebrosas, fora da norma, como mecanismo de controle de subjetividades enquadradas, encarceradas.

Diante de acusações de cunho moral e religioso, Carla costuma se defender da seguinte maneira: “digo logo: atire a primeira pedra quem não tiver pecado,” colocando-se como igualmente errada, pecadora. A tentativa de se afirmar pela via da igualdade, não obstante, recai no anúncio humanista de que somos iguais e necessariamente reifica a norma. A estreita relação entre norma e igualdade é problematizada por David Blacker (2011, p.159), na qual a afirmação da igualdade torna-se uma reafirmação da norma:

Quando a conformidade torna-se a norma reinante (talvez, inicialmente, uma mudança quase imperceptível no ideal da igualdade), começa um processo que leva ao alinhamento e a uma ordenação cada vez mais estreitos de acordo com aquela norma.

Esse tipo de crítica se aproxima da produzida pelos estudos queer, que propõem não a defesa de uma igualdade, mas a valoração das diferenças e compreensão dos aspectos históricos e relações de poder que a acomodam como tal (FURLANI, 2005), bem como na proposta de feministas com influências no pós-estruturalismo, como Brah (2006); Nogueira (2008); Scott (1999); Pelúcio (2009).