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A chegada ao Cabo e as oficinas não aconteceram de modo absolutamente controlado e dentro do planejado. A entrada no campo se deu através da parceria do Centro de Mulheres do Cabo que nos conferiu credibilidade e nos separou de um papel investigativo, policialesco (desconfiança pertinente ao âmbito da prostituição). Após a

troca de e-mails, de telefonemas, de algumas reuniões canceladas, nos colocaram em contato direto com uma das travestis da região.

No primeiro contato, em um ponto22 em frente a um hospital com nome de santo, numa rua mal-iluminada e bastante movimentada, nos apresentamos a uma travesti considerada liderança local. Ela se mostrou extremamente atenciosa e disponível (mesmo em seu horário de trabalho) ao explicamos rapidamente do que se tratava o projeto Diálogos, o Chá de Damas, a pesquisa.

Posteriormente, uma reunião oficial ocorreu no Centro de Mulheres do Cabo, instituição parceira do Diálogos e de articulação com a comunidade. Foram quatro pessoas interessadas em conhecer a pesquisa. A intenção era esclarecer dúvidas, falar da metodologia, dos procedimentos técnicos e burocráticos (Termos de Livre Esclarecimento (TCLE), gravação audiovisual), deixando abertura para sugestões, obedecendo à importância dada por Freire (1984) de a pesquisa ser pactuada com os sujeitos.

Nesse primeiro momento, resolvemos abandonar as formalidades da gravação, dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (ver anexo 1), da aplicação do questionário. Afinal, o intuito era de sedução (no sentido de uma primeira paquera, se teriam ou não o interesse de continuar conosco), de buscar criar vínculos. Apesar dessa escolha, explicamos sobre essa etapa da pesquisa e os elementos necessários para o desenvolvimento do trabalho.

Foram devidamente informadas de que, tanto os seus nomes sociais, quanto os civis seriam preservados na escrita da dissertação e na publicação de artigos científicos, através da utilização de nomes fictícios (SPINK, 2000). Ao longo de todo o trabalho, no trato com as travestis, buscamos respeitar o uso do nome social (o nome que escolheram ser chamadas). Os nomes civis constaram somente no Termo Livre e Esclarecido, por se tratar de documento formal que requer tais informações oficiais.

Durante a pesquisa, foram realizadas quatro oficinas, com duração (entre uma hora e meia e de duas horas cada) e número de participantes variável (entre quatro e sete pessoas). Os trabalhos em grupo foram filmados23 para facilitar a transcrição, devido à

22 Local de apresentação de prostitutas para o trabalho sexual.

23 No apoio das oficinas participaram voluntariamente: Cristiano Cavalcante Ferreira, estudante de pedagogia e bolsista do Chá de Damas (segunda oficina); o mestrando Bruno Robson, cujo tema de pesquisa foi travesti na mídia (terceira oficina); Rocio Bravo mestranda que se inseriu no Diálogos a partir do tema de direitos sexuais e juventude (quarta oficina).

interposição de falas, e também para evitar a perda de informações não verbais importantes para a compreensão do que foi dito.

Fazendo uma clara referência ao subprojeto Chá de Damas, durante os encontros ofertamos um lanche simples com chá, café, bolo e bolacha, o que tornava os encontros menos formais, um bate-papo. Devido à condição econômica precária das interlocutoras, além desse lanche foi disponibilizada ajuda de custo para locomoção.

Os dois primeiros encontros aconteceram no Centro de Mulheres do Cabo (com quatro e cinco participantes). Posteriormente, houve uma oficina na Assembleia Legislativa do Cabo (com sete integrantes) e as duas últimas ocorreram na Secretaria de Educação do Município (com quatro pessoas). As mudanças de localização se deram, levando em consideração a conveniência do grupo quanto aos horários disponíveis pelas instituições e a facilidade de deslocamento geográfico das participantes.

A alternância de lugares das oficinas não havia sido planejada, mas produziu efeitos de visibilidade nesses diferentes cenários. No Centro de Mulheres do Cabo, representantes da ONG perceberam quão importante era a articulação com as travestis, e que a vulnerabilidade delas se relacionava à discussão de gênero.

Além disso, a partir de oficina realizada na Assembleia Legislativa no município – com o objetivo de informar e discutir as legislações referentes às travestis –, as participantes agendaram reunião com vereador e presidente da Assembleia. Na ocasião, lançaram mão de material organizado e distribuído em oficina, como documento base na discussão, juntamente com a legislação do Recife 16.7080/2002 (que institui punições para atos de preconceito por orientação ou identidade sexual), disponibilizada pelas pesquisadoras às participantes.

Como desdobramento dessa reunião, ocorreu uma audiência pública, na qual reivindicaram a necessidade de leis que instituem sanções a ações de cunho preconceituoso quanto à orientação sexual ou identidade de gênero. Nesse evento, cobraram providências das autoridades locais quanto aos violentos homicídios de homossexuais no município, defenderam mais empenho na investigação desses crimes, além de mais reforço nas ações de segurança e de prevenção à violência.

Consideramos que este efeito disparador é desejável e esperado em uma pesquisa participante, pois ela “se torna formadora de pessoas mais aptas a uma integração mais consequente e corresponsável na vida social” (BRANDÃO, 2006, p. 47).

As oficinas que ocorreram na Secretaria de Educação possibilitaram ainda a apresentação da pesquisadora e proposta da sua pesquisa ao secretário de Educação do Cabo. Esta aproximação resultou no convite para apresentação dos resultados junto aos servidores e população locais, criando uma excelente oportunidade para devolução e a discussão da pesquisa junto à comunidade, etapa que faz parte da produção de um saber comprometido com transformações locais (BRANDÃO, 2006; CAMMAROTA; FINE, 2008; GERGEN; GERGEN, 2006).

No que tange à relação pesquisadora e sujeitos, ela parece ter sido visivelmente afetada pelo discurso das participantes. Uma ilustração seria o seguinte diálogo:

Pesquisadora: “A gente já tá terminando o babado...” Xuxa: “O babado? (risos) Já tá aprendendo, né?”

Pesquisadora: “Tô... tô aprendendo, como é, eu sou o que mesmo?

Amapoa?”24

A respeito do uso de expressões típicas do universo das travestis por profissionais que trabalhavam com esse grupo, Rodrigo Borba (2010) considera uma positiva estratégia de aproximação e estabelecimento de vínculos. Mais do que uma estratégia, parece ocorrer uma mistura e mudanças no discurso da pesquisadora pelas colegas-colaboradoras.

Entretanto, trazemos a problemática de dar voz ao outro, às meditações de Gayatri Spivak (2010) em um dos livros cabais dos estudos pós-coloniais Pode o

subalterno falar? no qual coloca os limites de falar pelo outro, em nome do outro. Com

base nesse estudo, não pretendemos aqui representar o outro excluído em sua plenitude, não ousamos tentar falar pelo outro, pois acreditamos que ao trazer à tona a sua fala, sabemos que sempre haverá um recorte, o atravessamento dos/das pesquisadores/pesquisadoras.

Outro elemento da obra supracitada é a relevância de olhar para o modo como os subalternos vão se apropriar dos saberes e recursos, podendo produzir deslocamentos. Há, portanto, durante nossa pesquisa, o eminente perigo, tanto de cristalizar e reafirmar a exclusão ao delimitar quem são e como são os subalternos, como de romantizar o discurso dos excluídos (SPIVAK, 2010).

Posto isso, cuidamos para não cair na doce tentação de simplificar a análise, rotulando de coitadinhos, de vítimas, polarizando o debate, criando novos ou reafirmando antigos binarismos. Então, a intenção de favorecer o aparecimento dos discursos25 de sujeitos subalternos refere-se ao fato de entendermos que “[...] existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber” (FOUCAULT, 2005b, p.71), além do mais:

Ninguém é obrigado a achar que aquelas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam da essência do verdadeiro. Basta que elas existam para que tenham contra elas tudo o que se obstina a fazer calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o que elas querem dizer: Questão de moral? Talvez. Questão de realidade, certamente. Todas as ilusões da história de nada valem: é por existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma da evolução, mas justamente a da história (FOUCAULT, 2006, p.80). Desta feita, Foucault considera que a emergência dessas vozes silenciadas não teria em si um valor de verdade, mas poderia servir como uma maneira de quebrar a impressão de linearidade dos acontecimentos, contada através da história tradicional.

Consideramos a existência de saberes sujeitados, como todo o saber desqualificado, inferiorizado, tido como mal-elaborado ou ingênuo. Diferenciamos o saber pessoal do senso comum, pois teria a potencialidade crítica, por se tratar de “um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que a rodeiam” (FOUCAULT, 2005b). Este saber tensiona universalidades, mas também ao ser evidenciado, corre o risco de ser readequado e recolonizado.

Concluímos, por fim, que o reconhecimento dessas vozes excluídas não lança um status de verdade irrefutável ao discurso, mas as percebe como uma potência de mudança. Não procuramos, portanto, comprovar hipóteses, teorias embebidas de uma assepsia, de uma neutralidade (VEIGA-NETO, 2007), mas estamos comprometidas em construir saberes localizados e contingentes (FOUCAULT, 2005b).