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3 POLÍTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NAS ESCOLAS

3.4 Saúde e Prevenção nas Escolas

3.4.3 Diversidade Sexual

No material intitulado Diversidades Sexuais, logo na subseção “Para início de conversa” (nome do subtítulo de apresentação em que se insere o extrato abaixo), a comunidade LGBT é associada a um grupo de risco:

Algumas atividades práticas são propostas sempre com a intenção de se estabelecer uma reflexão crítica e problematizadora a qual permita, inclusive, identificar a vulnerabilidade específica em relação ao HIV/Aids a que estão expostos(as) adolescentes e jovens da comunidade LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – comumente excluídos e discriminados no espaço público (BRASIL, 2010, p.11, grifo nosso).

Historicamente, a associação entre homossexuais e a Aids ocorreu de tal forma que passaram a ser vistos como pessoas com desejo de morte, portanto, passíveis de punição (BUTLER, 2008). Todavia, ao longo dos textos, repetidamente, é negada a possibilidade de uma cura para a homossexualidade e o exercício da sexualidade é colocado em termos de liberdade individual.

A concepção apresentada de orientação sexual é bastante confusa. Em dado momento, limita-se à tendência homossexual, bissexual ou heterossexual de uma pessoa:

A orientação sexual, aqui entendida como a seta ou direção para onde aponta o desejo erótico de cada pessoa, pode ser homossexual, quando se deseja alguém do mesmo sexo, bissexual, quando se deseja ambos os sexos, ou heterossexual, quando o objeto do desejo é do outro sexo (BRASIL, 2010, p.17).

O texto citado simplifica absurdamente as possibilidades sexuais humanas, encerrando em três possibilidades e de mais a mais permanecem alinhadas a uma problemática tendência de olhar para as identidades sexuais como dadas, como nos alerta Nicholson (2000).

A cartilha Sexualidades e Saúde Reprodutiva toma como referência a Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, ocorrida em Brasília no ano 2007: “orientação sexual significa para onde o desejo de uma pessoa é direcionado, ou seja, com quem ela ou ele tem prazer: por uma pessoa do mesmo sexo, por uma do sexo diferente do seu ou se pelos dois sexos” (BRASIL, 2010e, p.14). Discurso que pressupõe o binarismo sexual e no qual mais uma vez a orientação sexual remete a ser lésbica, homossexual ou bissexual. Deixando de fora outros endereços do desejo sexual, como, por exemplo, demais animais ou objetos.

Mais adiante, em Diversidades Sexuais, a orientação sexual é concebida como uma “atração espontânea e não influenciável que só pode ser conhecida plenamente pelo indivíduo que a vivencia” (BRASIL, 2010, p.17, grifo nosso). Surge como singular, espontânea e poderíamos até mesmo concluir que seria fluida. Ficamos pensando de que modo seria não influenciável? Perguntamos onde estariam os fatores históricos e culturais que influenciam nossos comportamentos? Parece que numa tentativa de evitar abrir espaço para teorias e técnicas voltadas para a “conversão” heterossexual, a orientação seria, portanto, inata ou inerente?

A saída encontrada foi jogar a resposta para a vivência de cada indivíduo. Um posicionamento que consideramos interessante, se radicalizado, por negar as definições, inclusive as subdivisões de identidade sexuais como caixinhas (hetero/homo/bi), conforme anteriormente apresentadas. O texto se atrapalha ao afirmar a orientação sexual como resultado de fatores psicológicos, sociais e genéticos. Ora, não era “não influenciável?” Por fim, apela para os direitos humanos, os direitos sexuais, como modo de garantir a liberdade dos sujeitos.

No que concerne à diversidade sexual, encontramos um conceito mais aberto, pois “seria uma infinita variação de comportamentos, de atitudes, de possibilidades de atração afetiva e sexual” (BRASIL, 2010b, p.21). Tal definição parece diluir as identidades sexuais (homo, bi, hetero), mas o afeto se atravessa e é interligado ao sexo. Ora, não seria possível haver somente atração sexual? Ou somente afeto? No subitem É justo descriminar alguém por amar uma pessoa?, o ideal de amor romântico é capturado

para legitimar uma prática não muito aceita, um desvio, mas acaba por encerrar a sexualidade ao amor.

No enunciado “A questão da diversidade sexual atinge diretamente a todos (as)”, a diversidade surge em um vocabulário tal qual uma morbidade, que nos atinge invariavelmente, mas ao mesmo tempo precisamos aceitar as sexualidades dissidentes, pois seria uma fatalidade, não há como escapar, afinal estão em todo o lugar:

Muitas pessoas do nosso convívio direto são gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, mas em boa parte das vezes sequer imaginamos isso. Um(a) colega de classe, um(a) professor (a), um(a) vizinho(a), um(a) primo(a), um irmão ou irmã, tio ou tia, amigo(a)... (BRASIL, 2010, p.18). Ou seja, a diversidade está em todos os lugares, mas não em mim, diverso é o outro (tio/tia, colega), o outro que é o distinto, travesti, gay e demais categorias desviantes, que estão em todos os lugares e inevitavelmente ao nosso redor.

Nesse sentido, Furlani (2005) afirma que a diferença tende a ser colocada enquanto outro, a partir de uma visão normativa, hegemônica do que seria nós. Nesta visão, os outros é que são os estranhos, os que destoam. A diferença, portanto, seria marcada por espécies de monstros que nos assustam e fazem temer ultrapassar regras de conduta, não havendo espaço para problematizar as inquietações de se ver nesse lugar.

Por outro lado, esse texto desconstrói o mito de que seria possível “passar” “pegar” homossexualidade (tal qual uma doença), através do contato direto e contínuo: “Também precisamos derrubar o mito de que alguém pode “virar” gay ou lésbica por se relacionar com essas pessoas (BRASIL, 2010, p.18).

Dentre os exercícios sugeridos para serem trabalhados em formato de oficina, o primeiro deles versa sobre os preconceitos por raça e por deficiência física e em relação à Aids. Tanto o preconceito com pessoas com deficiência, quanto com Aids, porém, não foram questões apresentadas anteriormente. De modo que eles surgem desconexos, como aspectos a serem discutidos.

Estranhamente, nesse exercício desaparecem os temas da orientação sexual e de gênero. Parece haver uma analogia implícita entre o diferente com deficiência, com HIV/Aids e o homossexual, bi, lésbicas, todos no mesmo pacote de coisas diferentes que precisamos aceitar.

Mais uma vez é negada a possibilidade de uma cura para a homossexualidade e o exercício da sexualidade é colocado em termos de liberdade individual. Trabalha-se a

singularidade de cada um, discute-se o peso dos rótulos na vida das pessoas (bonita, índio, travesti, negra, feio, lésbica...), relacionando ao papel de instituições, como a família, a escola e a igreja, da mídia e também dos amigos nesse processo.

Ao final, apresenta um verbete definindo homofobia e racismo; um texto sobre a diversidade como essencial elemento humano e faz menção ao Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante à HIV/Aids. Apesar de ser informações bem diversas colocadas em um canto só, elas parecem dialogar de algum modo com os demais materiais produzidos, pois evocam o tema da diversidade humana que perpassa o caderno temático, bem como a temática dos direitos da criança e do adolescente.

Apesar da violência que pessoas fora da norma sofrem, estranhamente a cartilha não disponibiliza telefones de contato para denúncias, ONGs, fóruns ou legislações que possam contribuir para a construção de uma rede de proteção (diferentemente da cartilha Gêneros, quanto à violência contra a mulher).

No tocante à importância de discussão do tema da diversidade nas escolas, compreendemos a relação entre educação e diversidade, tal qual a elaboração de Débora Diniz e Tatiana Lionço (2009, p.9):

A educação é uma ferramenta política emancipatória, que deve superar processos discriminatórios socialmente instaurados, a fim de transformar a realidade pela reafirmação da ética democrática. Neste sentido, a escola é um espaço de socialização para a diversidade.

Ou seja, a necessidade de uma educação comprometida com a problematização da diferença. Todavia, Pelúcio menciona o uso do termo diversidade como uma categoria que tende a atenuar a diferença como signo de desigualdade, ao buscar positivá-la.

Nessa mesma linha, portanto, tal como Quartiero e Nardi (2011), discordamos da proposta de “aprender a lidar com as diferenças” e o uso recorrente de “diversidade”, no sentido de uma tolerância, sem com isso refletir quanto ao que torna algo diferente ou diverso.

Afinal, a noção de humano é atravessada pelo discurso da pluralidade, relativizando o que seria certo e errado, situando a diferença enquanto resultante de um processo valorativo:

a humanidade é formada por seres plurais e diversos quanto à maneira de ser, sentir, raciocinar, agir e perceber a vida. Essas pluralidades e diversidades também se aplicam à forma como nos relacionamos afetivamente e/ou

sexualmente com outras pessoas. Isso significa que não existe um modo único de relação, que supostamente seja “natural”, “certo” ou “normal”, mas, ao contrário, as possibilidades são inúmeras. Contudo e infelizmente, as pessoas que têm comportamento sexual diferenciado sofrem preconceito e acabam sendo tratadas com desrespeito e desprezo (BRASIL, 2010, p.13). A discriminação pode ocorrer por uma condição física, por etnia, por identidade de gênero, por estilo de vida, dentre outros. Ora, sabemos que a igualdade elege historicamente o que é e o que não é uma diferença relevante.

Como Joan Scott (1999b; 2005) demonstra, portanto, é importante o debruçar sobre os processos que operam as diferenciações e que as fixa como imutáveis. Enquanto Nicholson (2000) propõe um feminismo da diferença, que opera na denúncia e compreensão da produção da diferença.

A oficina É ou não é? (cartilha Diversidade Sexual) inicia um interessante debate do que seria normalidade, como se estabelecem esses parâmetros. Concepção essa que segue na direção dos estudos queer (LOURO, 2004; PRECIADO, 2011) ou da abordagem queer definida por Furlani (2011), como centrada na compreensão do processo diferenciação dos corpos, positivando identidades marginais, refletindo sobre os parâmetros de normalidade. Além disso, essa linha costuma criticar as categorias de referências de cidadania, masculino/feminino, educação, sexo e a produção de verdades.

Nesse ponto, Furlani (2005b) compreende na perspectiva pós-estruturalista e

queer a tendência em pensar políticas de diferença, ao invés de políticas de identidade,

por serem múltiplas e desestabilizantes. Seria consequentemente fundamental repensar os parâmetros atuais de normalidade, conformando uma proposta de ES muito mais problematizadora do que disposta a definições e verbetes.

Logo após esse breve momento reflexivo, porém, a cartilha oferece uma espécie de glossário de anormais, intitulado Conclusões, com definições precisas e fechadas, de homossexualidade, travesti, crossdressers, drag king, dragqueen, reforçando a tendência à categorização normatizadora de modos de ser não heteronormativos.

Mais gravemente, o termo Conclusões é explicado como uma das etapas da oficina, referindo-se ao momento em que “as ideias principais que devem ser transmitidas aos (às) participantes” (BRASIL, 2010, p.12), ou seja, considera que o mais importante a ser passado aos jovens são as definições.

Não fica clara a ligação entre o tema normalidade e o dicionário de transgressões de gênero e sexualidade, colocado enquanto conclusões... seriam esses os anormais? Ao final desse módulo, apresenta o desconexo depoimento de uma jovem lésbica com Aids.

Dentro dessa lógica, de anormalidades, desenvolveu-se a abordagem terapêutica, que busca causas para as vivências sexuais anormais e desenvolve técnicas de cura, de normatização, em que podem ser visualizadas algumas leituras restritas e ortodoxas da psicanálise, do discurso médico e biológico (FURLANI, 2011).

Na mesma direção que César (2009), apontamos como imprescindível o reencontro com os movimentos feministas, gays e lésbicos, para uma renovação de perspectivas. Pois, para a autora (2009), a homossexualidade ou demais desvios de conduta não cabem nem podem ser encarados como um erro no destino da procriação humana, acarretando “o afastamento desses corpos indesejáveis, isto é, a expulsão, que hoje se constitui em um elemento importante da evasão escolar” (CÉSAR, 2009, p.47).