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HUBERTO ROHDEN

UNIVERSALISMO UNIVERSALISMO

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Índice

Índice

Advertência Orientando

Pode-se provar a existência de Deus? Que é Deus?

Por que esse anonimato? Nos rastros do eterno

Estrelas matutinas Tão poderoso és tu

Na extrema periferia do ser O grande paradoxo

Transcendente – imanente Minha luminosa escuridão Superpersonal

Tua justiça – e a justiça do universo Por que dizem ignorar-te

O teu reino não é deste mundo Quero viver-te, Senhor

O teu arco-íris sobre meu dilúvio Conscientemente bom

Minha querida ex-deusa natura Como te revelas, Senhor Amplitude das tuas revelações

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Meu crudelíssimo amor

Do ego periférico para o eu central Bandeirante do infinito

Meu grande centro dinâmico Minha vacuidade – e tua plenitude Sempre fiel a mim mesmo

Porque eu odiava a humanidade Creio na grande harmonia Por que, Senhor?

Minha inefável poesia

À luz das tuas estrelas, Senhor Amém

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Advertência

Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se

aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.

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Orientando...

Orientando...

Os leitores que conhecem outros livros meus, dos últimos tempos, possivelmente estranharão o tom angustioso e reticente deste volume, repleto

de perguntas sem resposta, de brados sem eco...

A esses tais devo dizer, antes de tudo, que estas páginas foram escritas anos atrás, numa fase de transição e agonias íntimas – digamos, numa longa noite de parturição espiritual...

Disse-me alguém que este livro Deus lhe faz lembrar o estilo ardente e paradoxal de Nietzsche. Entretanto, não me consta que o autor de Zaratustra

tenha, alguma vez, lançando âncora nas águas tranquilas de uma bonança espiritual e de uma certeza interior sobre o mundo de Deus.

Não julguei necessário modificar fundamentalmente, nesta nova edição, o que vivi e escrevi naquele tempo – e os que conhecem o grande Anônimo de mil nomes, não apenas de “ouvir -dizer”, sabem por quê. Deus não deixa nunca de ser o “Deus desconhecido”, a “luminosa escuridão”, o “delicioso tormento”, o “mistério máximo” da vida humana.

Desconfio do cristianismo e da experiência religiosa de certas pessoas para as quais Deus é uma simples equação matemática meridianamente clara, como 2 x 2 = 4; ou então um silogismo cristalino de cujas premissas, maior e menor, a conclusão decorra com uma precisão cronométrica. Confesso que não estou disposto a adorar esse Deus excessivamente claro...

O homem que teve o seu encontro pessoal com o grande Anônimo de mil nomes não deixa de o procurar incessantemente, em ínvias florestas e vastos desertos e, quanto mais o possui, tanto mais o procura, clamando angustiosamente pelo grande amor de sua alma, sempre presente e sempre ausente, não menos imanente que transcendente, tão deliciosamente propínquo e tão dolorosamente longínquo. É que a distância que medeia entre a finitude do homem e a infinitude de Deus é sempre infinita – e dentro do silencioso deserto desse infinito ecoam, sem cessar, os clamores do humano viajor...

Se o próprio Cristo teve os seus eclipses, embora momentâneos, nesse mundo da consciência divina, ao ponto de gemer por entre as sombras noturnas do Getsêmane “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice!” e de bradar por entre os ardores do Gólgota “Meu Deus, meu Deus, por que me

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desamparaste?” – que admira que um discípulo do Cristo se veja cercado de trevas e rasgado de angústias?...

Cuidado com aqueles que não sofrem o problema “Deus”!... É possível que tenham ultrapassado as extremas fronteiras da evolução espiritual e atingido o zênite da montanha sagrada – mas é possível também que ainda se achem no nadir da profanidade e nem tenham dado ainda o primeiro passo nessa árdua jornada ascensional...

Lê, pois, ignoto companheiro de viagem, os capítulos deste livro que te derem luz e força, por serem os ecos explícitos da implícita interrogação da tua própria alma – e omite os que não te falarem a linguagem das tuas

experiências pessoais.

Dia virá, para as almas sinceras, em que o grande Anônimo terá um nome. Em que a esfinge sairá do seu grande mistério.

Em que as dolorosas perguntas de teu coração terão resposta cabal. Em que os teus brados encontrarão eco.

Por ora, é verdade, “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus preparou àqueles que o amam” –

mas o amor sabe que, um dia, verá face a face, com meridiana clareza, o que ontem ignorava como que envolto em trevas noturnas, e o que hoje apenas crê por entre a semi luz crepuscular de espelhos e enigmas...

E esta certeza que o amor garante enche de indefectível coragem e exaltante alegria os bandeirantes de Deus...

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Pode-se provar a existência de Deus?

Pode-se provar a existência de Deus?

Tomás de Aquino, considerado o maior teólogo da cristandade, elaborou, científico-filosoficamente, cinco argumentos para provar a existência de Deus, e até hoje estes argumentos são ruminados pelos estudantes de teologia católica, nos seminários.

No fim da vida, porém, Tomás, depois de uma revelação transcendental, nunca mais escreveu nada, e perguntado pela razão do seu silêncio, respondeu: “Tudo o que escrevi é palha”.

Quem julga ter provado Deus é ateu, e quem adora esse Deus demonstrado é idólatra.

Nunca nenhum mártir morreu sorridente por um Deus cientificamente provado. A inteligência pode dar certa luz, mas não pode dar força.

Portanto a certeza sobre Deus não consiste numa fabricação positiva da inteligência, mas na abertura negativa dela, para que a cosmo-consciência possa funcionar.

Viver Deus dá certeza – sofrer Deus dá angústias.

A vivência de Deus é perfeitamente compatível com a sofrência de Deus. Todo o homem que toma a sério a vivência de Deus não pode deixar de sofrer Deus. Os grandes ateus da história – Voltaire, Guerra Junqueiro, Nietzsche e tantos outros – eram os maiores teístas, tidos como ateístas por aqueles que nunca viveram Deus, mas só repetiam teologias balofas sobre Deus. Os grandes ateístas da história são os grandes teístas, os místicos.

Quem toma a sério as teologias balofas prova que não viveu Deus. Os grandes místicos que viveram Deus são, geralmente, excomungados pelos teólogos que apenas crêem em Deus; antigamente, os grandes místicos acabavam nas fogueiras da Inquisição, acesas por aqueles que não tinham vivido Deus. Hoje não há mais fogueiras físicas, mas os teólogos mandam os teístas, os místicos, para a fogueira metafísica do inferno, sobre a qual os teólogos julgam ter poder.

Deus não está espetado na ponta de um silogismo impecavelmente construído – Deus está no fim e no meio duma vida corretamente vivida.

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Então, não podemos ter certeza da existência de Deus?

Podemos ter absoluta certeza, não por provas analítico-intelectuais, mas sim pela intuição racional (espiritual).

E esta intuição, quando funciona? Quando o homem dá abertura para a invasão cósmica, para essa alma do Universo, então tem ele plena certeza de Deus.

Mas esta abertura, ou esse abrimento, é que é o grande problema, e a dolorosa problemática do homem.

Quem quer luz solar na sua sala, deve abrir uma janela rumo ao Sol.

Quem quer ser invadido por Deus deve tornar-se invadível, deve remover o obstáculo que impede essa invasão da luz solar da Divindade.

Que obstáculo é esse?

A ilusão de que o ego humano seja a Realidade do homem; enquanto persistir a identificação ilusória do seu ego periférico com seu Eu central, não há nenhuma possibilidade para a invasão da verdade libertadora.

Ninguém pode achar Deus – mas Deus pode achar o homem que se torne achável.

Ninguém pode descobrir Deus – mas Deus pode descobrir o homem, se este o permitir.

Mas esse “permitir” é que é a dolorosa problemática do homem; dificilmente o homem-ego permite ser invadido por Deus, porque essa invasão derriba dos seus pedestais todos os ídolos do panteon humano.

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Que é Deus?

Que é Deus?

Deus não é uma pessoa, algum super-indivíduo, residente em alguma longínqua galáxia do Universo. Pessoa, indivíduo, é necessariamente algo finito, limitado.

Deus pode ser chamado a Vida do Universo, da qual vêm todos os vivos, as creaturas finitas. A Vida como tal é transcendente a todos os vivos, mas é também imanente em todos eles; os vivos são vivos porque neles está a Vida. A essência de todos os vivos é a Vida; as existências vivas não são Deus por sua existência, que é sempre limitada. Identificar a existência viva com a essência da Vida seria ilógico panteísmo.

Mas identificar a essência dos vivos com a Vida Universal, isto é a grande verdade do monismo.

Quando o homem ultrapassa o âmbito dos sentidos e da mente, que só percebem existências finitas, então atinge ele a zona da essência, a alma invisível de todas as existências visíveis.

Há uma essência absoluta, que se manifesta em todas as existências relativas. É esta a experiência de todos os místicos, que também se chama êxtase, samadhi, satori.

Nenhuma análise intelectual dá certeza de Deus – mas a intuição racional (espiritual) dá plena certeza de Deus.

Deus pode também ser chamado a consciência cósmica, que está, embora imperfeitamente, em todos os conscientes individuais.

A consciência cósmica de Deus é:

– oniconsciente em si, em sua absoluta transcendência,

– inconsciente nos minerais, não por causa do recebido, mas por causa do recipiente,

– subconsciente nos vegetais, pela mesma razão, – semi consciente nos animais, pela mesma razão,

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– ego-consciente no homem atual, que está demandando à cosmo-consciência da logosfera.

Segundo o eterno princípio da lógica, o Infinito só pode manifestar a sua absoluta infinitude segundo a medida do recipiente relativo das finitudes, em que se manifesta parcial e imperfeitamente.

Neste sentido, diz a sabedoria milenar da Bhagavad Gita: “ A teia da aranha revela a aranha, mas também a vela”. Quer dizer, todo o finito só pode revelar finitamente o Infinito, porque necessariamente também o vela e o encobre. É este o modo como a oniconsciência se manifesta parcialmente em toda a natureza em que está imanente.

Para o homem que atingiu a cosmo-consciência, todas as coisas do mundo são como santuários da Divindade, onde ele pode cultuar Deus. Mas, como Deus é a consciência universal, e o homem é apenas uma consciência individual, é natural que Deus, apesar de certo, seja sempre um mistério, um enigma, uma dolorosa interrogação.

Quanto mais o homem acha Deus, tanto mais ele o procura. Este homem está na linha reta da certeza de Deus, e por isto mesmo ele o procura sempre mais e sofre a sua própria limitação e finitude, porquanto, diz a matemática: todo o finito em demanda do Infinito está sempre a uma distância infinita. Desta dolorosa angústia sofria o próprio Jesus. Dessas dolorosas interrogações estão repletas as páginas deste livro.

Quem nunca viveu e sofreu Deus, dificilmente compreenderá a alma deste livro.

A certeza de Deus é compatível com a procura de Deus. Deus, o eterno anônimo de mil nomes.

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Por que esse

Por que esse anonimato?..

anonimato?....

Não existe no universo Ser algum que tantos nomes tenha como tu, meu grande Anônimo, meu Ser inominável...

E é natural que assim aconteça, porque nenhum desses nomes diz o que tu és na realidade. Todas essas denominações são simples tentativas do impossível, vãos tentames de frágeis pigmeus de escalar a torre altíssima da tua intangibilidade.

Todos os nomes que os homens te dão dizem de ti algo que tu és realmente, mas nenhum diz o que és plenamente. Nenhum nome exaure a plenitude do teu Ser, nenhum atinge a essência íntima da tua natureza. São como microscópicas gotinhas de orvalho que refletem uma fração infinitesimal do sol, mas nenhuma dessas gotas abrange o grande astro em sua estupenda realidade cósmica.

Dizem os homens que tu és Deus, Divus, Zeus, isto é, um ser luminoso, brilhante – e têm razão, porque não há nada mais fulgurante do que tu.

Dizem que és God, Gott, Gut, isto é, um ser bom, bondoso, benévolo – e também eles têm razão, porque tu és a essência de toda a bondade.

Dizem que és o grande El, Alá, Ilu, quer dizer, o Senhor, o Chefe – e proferem uma grande verdade, porque tu és o Rei dos reis, Senhor dos senhores.

Dizem os homens que tu és o grande Ptá, o “pai”; que és o Chang-ti o “senhor do céu”; que és o Brahman, o “ser ilimitado” – e todos eles proclamam grandes verdades.

Chegaram os homens ao ponto de chamar-te Yahveh, Tao, isto é, o “Ser ” – e quem teria mais direito ao nome de “Ser ” do que tu, que és o único Ser que realmente “É”, ao lado de outros seres que apenas “existem”? Com esta designação atingiram os homens o mais alto cume da realidade, o mais profundo abismo da verdade. Nós, em face de ti, quase que inexistimos, pseudo-existimos – tu é que ÉS plenamente. Nós somos uma feliz exceção do nada – tu és a infinita afirmação do TUDO.

Entretanto, nem mesmo essa feliz denominação de Yahveh, Tao, exaure a tua grande realidade, nem designa adequadamente a tua natureza, meu eterno

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Anônimo. Ficará sempre, entre o nome e o nominado, uma distância infinita, um vácuo sem limites, uma noite sem alvorada...

E, uma vez que és para nós o Anônimo por excelência, tanto mais o homem se aproxima de ti quanto mais anônimo se torna para si mesmo e para o mundo. O homem, “nominado” pela individualização, tem de se “desnominar ” pela divinização, pela integração no mar imenso do teu divino cosmos. Essa aparente extinção do Eu personal é, de fato, a mais intensa realização do nosso indivíduo, porque é o regresso para a sua primeira fonte e srcem. Ninguém é tão “homem” como quem se des-homifica para se divinizar, porque só assim é que se super-homifica, ou melhor, só assim de pseudo ou semi-homem se torna pleni-semi-homem genuíno.

Por isto, Senhor, nos momentos mais divinos da minha vida, eu me sinto como um não-ego, como um ser desegoficado, cosmificado, deificado...

E quando a minha prece atinge o mais alto zênite da intensidade, expira em completo silêncio, num mutismo anônimo, numa quietude universal...

Como é bom falar contigo – sem dizer nada!... Adorar-te – em completo anonimato!...

Amar-te – no vastíssimo deserto do silêncio...

Como é bom ser um pequeno anônimo diante de ti – o grande Anônimo!... Ser uma gotinha finita – no teu oceano infinito!...

Ser um nada – totalizado pelo teu Tudo!... Meu grande Anônimo – de mil nomes!...

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Nos rastros do eterno

Nos rastros do eterno

“Deus é eterno” – disse-me alguém. Desde então ecoam estas palavras pela vasta solidão de minh’alma, como um trovão que sempre renasce do seu próprio eco.

E, neste quase século de minha existência terrestre, não diminuiu ainda, por um átomo sequer, o veemente e interminável estampido deste pensamento, “Deus é eterno”.

E quanto mais escuto este bramido metafísico da tua eternidade, ó Ser Infinito, tanto mais ele se avoluma e intensifica, abafando completamente as vozes da Natureza em derredor...

Pouco me empolga a idéia de um ser eterno “para o futuro” – o que me enche de estupefação e assombro é o conceito dum ser eterno “para o passado”. Compreendo mais ou menos que um ser que hoje existe possa existir amanhã e depois, porque tudo o que tem existência real e consciente pede existência sem fim, todo ser que uma vez chegou à consciência do Eu traz dentro do seio o germe da imortalidade. Não voltará jamais à noite do não-existir o que foi iluminado pelo dia do ser eterno. É, pois, perfeitamente crível que exista para sempre o que hoje possui realidade.

Entretanto, o que leva ao ápice a minha estupefação é que possa haver um ser tão intensamente real que nunca tenha sido irreal, por mais que recuemos o termo do seu início; que exista um ser tão pleno e potente que nada tenha de não-ser, nem no passado nem no futuro; que seja um “sim” absoluto e integral e desconheça a mais ligeira sombra do “não”... Isto é que é espantoso!

Um ser sem princípio é um ser sem causa, um pleni-ser, um proto-ser, um auto-ser.

Posso imaginar um existir eterno que desde toda a eternidade deva sua existência a outro ser; um ser creado ab aeterno, um ser eternamente alo-existente – mas um ser auto-alo-existente, absolutamente autônomo e independente de qualquer fator alheio – este pensamento paralisa todas as minhas faculdades intelectivas e imaginativas, esta idéia me leva à extrema periferia da possibilidade...

Vejo, meu Deus, que a tua eternidade não é senão um corolário da tua auto-existência.

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Dentre todos os seres alo-existentes és tu o único ser auto-existente.

Nós semi-existimos, e tão precária é esta nossa semi-existência que não faltou quem a apelidasse de pseudo-existência – tu, porém, pleni-existes, porque és. O teu passado e o teu futuro são presentes. Tu não eras nem serás, tu és simplesmente, ontem, hoje, amanhã, desde sempre e para sempre.

Tu, propriamente, nem existes – tu simplesmente ÉS.

Tu não foste produzido nem te produziste, pois seria absurdo admitir que o nada pudesse agir antes de existir – a tua eterna essência a tal ponto coincide com a tua existência que as duas se identificam plena e cabalmente em uma única, indivisa e indivisível, auto-realidade.

O meu ser poderia não existir. A minha existência, hoje real, era ontem irreal e meramente possível. Passei da zona noturna da simples potencialidade para a zona diurna da positiva atualidade.

Entre o meu “possível” e o meu “real” medeia um abismo, que bem pudera ser eterno, e para milhares de seres é, de fato, eterno esse abismo do não-existir, em cuja profundezas inexistem seres eternamente possíveis e potenciais, mas não atuais.

O meu “possível” foi transformado em “real” – por quem? Naturalmente por alguém que era real, quando eu ainda era irreal.

Só um ser real pode realizar o irreal. E esse ser real deve possuir em si e por si mesmo toda a plenitude da realidade – deve ser pleni-real, auto-real.

Eu sou algo de irreal realizado – tu, porém, meu Deus, és o único ser real que nunca foi realizado, porque nunca foi irreal. Tu és pleni e auto-real.

Nenhum ser realizado pode realizar o irreal – nenhum ser simplesmente realizado pode crear, produzir algo do nada, transferi-lo do não-existir para o existir.

Só um ser real, pleni e auto-real, é que pode ser realizador. Só um ser auto-real pode ser creador.

Nós, os seres apenas realizados, só podemos criar, transformar as coisas, mudar-lhes a forma, o lugar, o modo de ser – mas não podemos crear coisa alguma.

E, como não podemos realizar o irreal, assim também não podemos irrealizar o real. Não podemos nem crear nem aniquilar coisa alguma.

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Há uma semelhança entre nós, meu Deus: ambos somos reais – mas há entre nós também uma dessemelhança, e certamente bem maior que a semelhança, porque tu és auto-real, e eu sou alo-real.

Tu possuis por ti mesmo a infinita realidade – eu recebi de outrem a minha realidade finita.

Tu auto-és em virtude de tua essência – eu alo-existo graças à tua creação. A semelhança que tenho contigo me dá proximidade, confiança, amor – a

dessemelhança que há entre nós me mantém a distância, me enche de reverência, de temor.

Eu sou parecido contigo, meu Pai – eu sou diferente de ti, meu Creador. A paridade me atrai a ti – a disparidade me repele de ti.

E entre essa força centrífuga da repulsão dos dessemelhantes e aquela força centrípeta da atração dos semelhantes gira o meu pequenino planeta, traça este satélite do meu Eu a sua estranha trajetória em torno do teu grande sol, meu misterioso Tu, sempre próximo e sempre distante...

Tão propinquamente imanente – e tão longinquamente transcendente...

E a polaridade dinâmica que resulta desses dois extremos, sempre em vias de harmonização, sempre semi-harmonizados e nunca pleni-harmonizados, essa polaridade é que é o grande enigma da minha vida terrestre...

A minha inefável delícia – o meu indefinível tormento... O meu dia de sorrisos – a minha noite de lágrimas...

A minha primavera transbordante de flores – o meu outono sangrando em folhas enfermas e agonizantes.

É ele o meu calor tropical – ele a minha frialdade polar...

O meu berço enflorado de alvas esperanças – o meu ataúde a negrejar entre crepes mortuários de decepções.

Assim és tu, meu Deus eterno – assim sou eu, homem efêmero...

Tu és o Tudo que a seu lado não tolera um átomo sequer do nada – eu sou apenas algo, uma feliz execução do nada, uma microscópica ilha de existir que a custo emergiu do vasto oceano do não-existir. Destas águas profundas me tiraste, Senhor, e nesse abismo recairia eu no mesmo instante em que a tua potência deixasse de me suspender sobre as águas sinistras do nada.

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Tudo o que existe, existe porque tu és – nada existiria se tu não fosses.

Disse alguém que tu és o “primeiro” de todos os seres – se bem pensou, mal exprimiu o seu pensamento.

Não, tu não és o “primeiro” dos seres, assim como um elo é o primeiro numa grande corrente. Se fosses o “primeiro”, poderiam haver um “segundo” e “terceiro” no plano do teu ser.

Tu és o único no teu plano, o primeiro e o último – o alfa e o ômega.

Tu és como um ponto fixo e independente fora de todos os elos e de todas as vastas correntes dos fenômenos temporários e transitórios.

O alicerce da tua suprema e eterna Realidade está fora de todos os seres realizados, ontem e anteontem, e realizáveis, hoje e amanhã.

Tu és o centro em torno do qual tudo gira.

Tu és a fonte da qual manam todas as águas da realidade. Tu és o sol do qual irradiam todas as claridades do universo. Tu és a causa da qual procedem todos os efeitos.

Tu és o doador que sempre dá e nunca recebe.

Tu és a voz à qual respondem todos os ecos do cosmos. Teu centro está em toda a parte.

Tua periferia não está em parte alguma.

* * * Meu Deus eterno e auto-real!

Quanto mais penso em ti mais me esqueço de mim. Quanto mais me aproximo da imensa plenitude de teu ser necessário e autônomo, tanto mais me divorcio de mim, desta frágil e mesquinha vacuidade que tem o meu nome... E, por fim, não vejo mais nada de mim... Perco de vista, nas brumas do horizonte, o microscópico pontinho do Eu – e diante de mim se ergue a gigantesca e única realidade – Deus.

Emigrei de mim e imigrei para dentro de ti, ó ser Infinito...

Tornei-me uma espécie de não-Eu a fim de me diluir em teu grande Tu... E sinto-me convalescer, aos poucos, de todas as grandes e pequenas enfermidades do Eu, de todas as moléstias crônicas e agudas que me

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atormentavam quando girava em torno do meu próprio eixo, como se este eu fosse o meu centro...

Compreendi que girar em torno de mim, em derredor das minhas pequenas e grandes mágoas e satisfações, me torna doente, mesquinho, descontente comigo e com todos os homens...

Compreendi que é necessário mudar de ares, libertar-me da força centrípeta do egoísmo e deixar-me arrebatar pela força centrífuga do teotropisimo...

Compreendi que importa desegoficar-me a fim de me poder deificar. Dentre todas as coisas de difícil compreensão, compreendi isto, que é quase incompreensível... Tornar-me um des-ego, quase um anti-Eu...

Sim, eu quero que esta força tangencial das grandes idéias me arrebate e, qual ciclone raptor, me arremesse ao espaço, à vasta trajetória da eterna e infinita Divindade. Viver, trabalhar, lutar, sofrer, morrer ao bramir das tuas jubilosas tempestades, meu Deus, isto é belo e heróico – e eu quero viver assim.

* * *

Oh! estupenda descoberta que fiz depois da grande convalescença de mim mesmo! Descobri que, quanto mais me distancio de mim mesmo e vou em demanda de Deus, tanto mais me encontro a mim mesmo... Descobri que o meu pleni-Eu está situado na zona via-Deus...

Os extremos tocam-se...

Evadi-me do nadir da minha pequenina realidade e subi ao zênite da tua grande Realidade, meu Deus eterno e infinito – e que vejo?

Vejo que a mais profunda raiz do meu Eu humano está no teu Tu divino... Encontrei-me em ti, meu Deus...

Quanto mais longe eu me julgava de mim mesmo, tanto mais perto estava de mim – em ti...

Lancei a minha nau para o extremo ocidente, fugindo de mim – e eis que me descubro nos litorais do oriente, do teu oriente, meu grande Mistério Solar... Coincidiu o ocaso do meu eu com a alvorada do teu Tu – e à luz virgem dessa inesperada aurora descortino as praias matutinas do meu verdadeiro ser...

Procurando-me – perdi-me... Fugindo de mim – encontrei-me...

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Como é tão absurda a tua sabedoria, meu indefinível Anônimo!...

A ânsia de me possuir me fez doente – o desejo de me perder em ti me fez convalescer...

A desposse do eu e a posse de Deus deram plena saúde ao pobre lázaro de minh’alma chagada e agonizante...

Compreendo agora o que quis dizer o teu Messias com as palavras paradoxalmente sublimes:

“É necessário perder – para possuir... É necessário morrer – para viver...” Deus eterno, infinito, auto-real!

Não permitas que eu torne a afastar-me de ti – para que possa ficar comigo, em ti...

O meu existir finito só pode viver e prosperar no teu Ser infinito... Fora desse Tu não há salvação para o eu...

Sustenta-me, pois, ó grande Realidade! Robustece-me com tua força!

Ilumina-me com tua luz! Abrasa-me com teu ardor!

Enche-me com tua plenitude!

Abisma-me em tua ilimitada felicidade!... Ó Deus eterno!...

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Estrelas matutinas

Estrelas matutinas

“Deus creou tudo do nada” – estas palavras soaram muito tempo aos meus ouvidos como insuportável dissonância e como um desafio à lógica. Doíam-me na alma porque não harmonizavam com o resto que eu sabia de ti, meu Deus, ou julgava saber.

Duas incongruências haviam, para mim nesta frase protocolar: 1) se tu és o Tudo, como é que ainda havia um nada? 2) produzir “algo” do “nada” não era um absurdo? uma negação do princípio da causalidade?...

Tu és o Tudo e, por isto mesmo, não existe nem jamais existiu um nada fora de ti. Nem existe um vácuo, nem espaço algum, pequeno ou grande, onde não haja realidade, porque tu, ó Deus onipresente, és a imensa e infinita Realidade, que com sua universal e inexorável presença atinge, penetra e enche todos os espaços e todos os tempos.

Ora, uma vez que existe a tua onipresenteRealidade, já não há margem para o nada, para o vácuo, para o irreal.

Se, pois, creaste algo, creaste-o da tua infinita Realidade – e não da infinita vacuidade, que só poderia existir se, em alguma parte, tu não existisses.

Quando digo que creaste do nada todas as coisas, quero dizer que deste existência real às essências meramente possíveis; transferiste a simples possibilidade ideal dos seres ao plano da realidade atual. Encheste com o conteúdo dum fator positivo a nulidade do zero.

Manifestaste em “existires” múltiplos o teu único “Ser ”.

O teu divino “crear” não dá apenas forma, como o “criar humano”, senão também a matéria-prima – e isto é estupendo e assombroso...

Eu, quando produzo algo, não produzo a matéria do meu artefato, mas dou tal ou tal forma a um punhado de matéria preexistente, matéria que continua a existir depois que o meu artefato perdeu a forma específica que eu lhe dera.1

1. Precisando melhor este pensamento, avisamos ao leitor que, na creação divina, o “algo” da existência sai do “Tudo” da essência; o “fenômeno” sai do “Número”, e o “efeito” sai da “Causa” – ao passo que, nas criações humanas, não há transcrição da “essência” para a “existência”, mas apenas uma transformação de uma determinada “forma existencial” para outra “forma existencial”, de um “indivíduo” em outro “indivíduo”.

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Não está em meu poder crear um só átomo, como, por outro lado, também não sou capaz de aniquilar a mais insignificante parcela de matéria. A srcem e o fim de todas as coisas escapam à alçada do meu poder, subtraem-se inteiramente à minha potência e jurisdição. Não lhes dou existência nem inexistência. Todo o meu poder é um simples criar, uma transformação, uma incessante modificação da mesma argila plasmável, processo que não atinge nem o berço nem o túmulo das coisas. Nada posso crear.

Tu, porém, meu Deus, dás srcem ao nada e podes dar fim ao algo. Podes dar existência ao inexistente e aniquilar o existente. Podes tirar do nada e podes reduzir ao nada o que quiseres. A transferência do “0” para o “1” existencial exige um poder infinito, o mesmo poder infinito que requer a redução do “1” ao “0”. Do nada ao algo vai distância infinita. Por isto, só tu é que podes crear e aniquilar.

Creaste todas as coisas do nada da existência, tirando-as do Tudo da essência – e podes reduzi-las ao estado de seu nada existencial.

Tu, porém, causa eficiente desse algo, não és um nada, tu és o Tudo. Só mesmo o Tudo pode fazer do nada um algo. Se o nada produzisse o algo, se do “0” de ontem nascesse o “1” de hoje sem o concurso do “∞” (infinito), teríamos um efeito sem causa – uma flagrante contradição. Nunca pode um fator positivo estar contido num fato negativo, nem jamais pode o causado ser maior que o causador. O zero do nada é eternamente estéril. Nunca gerará o algo, por mais que se adicione e multiplique, aumente e intensifique – será sempre o vácuo absoluto, a impotência integral do zero.

Tu, porém, meu Deus és um fator positivo, infinitamente positivo, o zênite de toda a positividade. E por isto mesmo podes, do mais profundo nadir da negatividade, do vácuo existencial, tirar valores positivos, não porque esses valores estivessem contidos, em forma latente, no zero, mas sim porque a ofensiva do teu infinito poder é superior a toda defensiva das nulidades finitas e derrota todas as potências adversas, transpondo os abismos do nada e fazendo do inexistente o existente.

Desde que és Deus, és Deus-Creador, isto é, ab aeterno, desde sempre. Nunca foste um Deus inerte, inativo, não-operante. Foste sempre um actus purus, uma puríssima e veementíssima atividade, não só ad intra, senão também ad extra. Eterno é o teu ato creador, ainda que temporários sejam, na sua longa sucessão, muitos dos efeitos dessa tua eterna causalidade creadora.

* * *

Tu és o Deus da variedade, e não da monotonia. Amas a perfeição da unidade no poema duma imensa multiplicidade. Por isto não creaste no teu universo

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dois seres iguais, porém milhões e miríades de entes, cada um diferente do outro.

Cada um dos seres que creaste é obra srcinal, inédita, um mundo por si, que nunca existiu nem jamais existirá igual. Não te repetes em nenhuma das tuas obras, meu supremo Artífice. Não és amigo de seres em série, como os diretores das nossas fábricas. Perdoa-se à humana impotência a produção de mercadorias em série, mas não se perdoaria à tua divina onipotência. Se fosses obrigado a repetir uma só das tuas obras, deixarias de ser Deus, porque revelarias falta de sabedoria, não podendo conceber novo modelo inédito, ou darias sinal de fraqueza creadora, não podendo realizar, no plano concreto, o teu novo ideal inédito.

Tu, porém, és infinitamente sábio e de poder ilimitado. Tu és o supremo Artífice que, desde toda a eternidade, produz seres sempre novos, e para todo o sempre produzirá creaturas srcinais e inéditas.

Os teus mundos são duma infinita variedade. São como uma epopéia de círculos concêntricos que circundam o trono do teu eterno e único Ser. Quanto mais chegados ao centro da tua divina espiritualidade tanto mais espirituais e divinos são esses seres; quanto mais distantes e periféricos, tanto menos divinos e espirituais são eles.

Quase nada sabemos da tua atividade creadora. Dizem os teus videntes e o teu Messias que as primícias da tua potência creadora eram puros espíritos. Seres de tão intensa espiritualidade que só não são divindades porque não participam da tua independência e infinita autonomia. São seres dependentes de ti, subordinados ao teu supremo e único poder.

Tão grande é a perfeição dessas estrelas matutinas do teu universo espiritual, tão vasta a sua liberdade, tão luminosa a sua inteligência, que muitas delas creram mais na sua autonomia que na sua heteronomia. A tais alturas chegou o grau de individualização desses seres pleniconscientes de si mesmos, que a consciência cósmica que os vinculava ao grande centro divino empalideceu ao fulgor da consciência individual. E quando a cosmo-consciência sucumbiu à ofensiva da ego-consciência – veio a grande catástrofe...

Caíram, quais gigantescos meteoros, milhares de estrelas matutinas da creação...

De raios solares que eram, pretenderam ser sóis...

De ecos da voz divina, quiseram ser vozes independentes...

Separam-se, esses poderosos espíritos, do centro creador e conservador do seu ser...

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Não é o espírito que peca – menos ainda em se tratando de seres de tão vasto compreender comoeles – é a mente intelectual que se desvia da linha reta que corre paralela à vontade divina. Ora, toda a mente creada que desvia da sua direção paralela à vontade increada colide com esta vontade suprema, cortando-a, por assim dizer, em determinado ângulo, procurando implicitamente destruir o que é indestrutível.

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Tão poderoso és tu...

Tão poderoso és tu...

Disseram-me, Senhor, que tu eras um Ser onipotente, sapientíssimo e bom – e eu me convenci desta verdade, porque só assim podias ser. Qualquer outro deus seria um não-deus.

Disseram-me também que tu, apesar da tua potência, sabedoria e bondade, te havias revelado através dos séculos e milênios incompetente e vingativo – e eu estranhei tacitamente o que de ti ouvira, tão incompatível com o que de ti sabia. Disseram-me que havias creado milhares e miríades de seres incorpóreos dotados de grande poder, inteligência e beleza, destinados a serem felizes em tua companhia, mas que muitos desses seres se haviam revoltado contra ti. Cheio de pasmo e estupor ouvi deste primeiro fracasso do teu poder, da tua sabedoria e bondade – e fiquei desnorteado...

Disseram-me que, depois deste malogro parcial sofrido com o mundo dos puros espíritos, havias feito segunda tentativa, desta vez com seres semimateriais, na esperança, talvez, de que a ignorância desses seres fosse mais obediente às tuas ordens do que a orgulhosa inteligência dos anjos. Entretanto, maior que o primeiro foi o teu segundo fracasso. Não só uma parte desses seres se revoltou contra ti, mas todos eles, embora fossem apenas um par.

E tu te viste obrigado a lançar tremenda maldição sobre os rebeldes.

Foi esta a segunda derrota do teu poder e da tua sabedoria, como me contaram.

* * *

Depois, através dos séculos e milênios, tentaste com mil e mil sofrimentos revocar a humanidade ao caminho da tua vontade – mas não tiveste mais sorte que antes, porque a tal abismo de perdição chegou a nossa raça que resolveste exterminá-la da face da terra, excetuando apenas oito pessoas, únicas dentre muitos milhares que não haviam frustrado os teus planos.

Mais tarde, aniquilaste com fogo e enxofre uma série de florescentes cidades, “porque toda a carne corrompera o seu caminho”.

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Mas também isto foi inútil. A humanidade andou de mal a pior.

Resolveste então escolher um povo que fosse portador do teu espírito através dos séculos. Suscitaste no meio deste povo os teus arautos e videntes que lhe transmitissem a tua divina vontade, e prometeste enviar ao mundo, do seio desse mesmo povo, o teu próprio filho unigênito, a fim de salvar o mundo. Mas os teus mensageiros foram perseguidos e mortos, e quando veio o teu grande Messias, foi rejeitadopelos homens, crucificado, morto e sepultado. E agora, quase dois mil anos após a vinda do teu Cristo, a imensa maioria da humanidade ignora ainda o grande acontecimento. Diminuta parcela da humanidade, talvez a quarta parte, ouviu a doutrina do teu Messias – mas quantos lhe adotaram o espírito? Quantos se guiam de fato pelo seu Evangelho redentor?

Tal é, Senhor, à luz da nossa filosofia e teologia, a história dos teus planos divinos, história triste e deplorável, o maior malogro que já sofreu um artífice, desde que o mundo existe...

* * *

Será possível, meu Senhor eterno e onipotente, que tu sejas tão fraco como pareces à luz da nossa sapiência?... Não será tudo isto senão um aspecto externo e unilateral da tua grande obra?... Não será deficiente, e até em grande parte falsa, a nossa perspectiva em face do gigantesco painel do teu universo? Não, meu Deus, assim não és tu na realidade – assim apenas te imaginam os homens. Tenho certeza de que tua obra, quer angélica, quer humana, é integralmente gloriosa, uma estupenda epopéia de poder sem fraqueza, um poema de amor sem ódio, uma ingente apoteose de sabedoria sem sombra de falência...

Lúcifer desempenha, no grande drama do teu universo, papel não menos importante e glorioso que os anjos e arcanjos que rodeiam o teu trono, que os querubins e serafins que cantam teus louvores...

Era necessário que os anjos e homens se revoltassem contra ti, que afirmassem até o extremo a liberdade que lhes deste, para que contasse historicamente que tu és um Deus de infinita perfeição... Que tu podes dar às tuas creaturas a mais ampla e completa faculdade de fugirem de ti, livre e espontaneamente, na certeza de que, livre e espontaneamente, voltarão a ti... Não admira que sóis e planetas tracem com absoluta fidelidade e precisão as órbitas que lhes prescreveste, uma vez que não podem desobedecer ao império da tua vontade; são máquinas e autômatos do teu irrestrito poder. O que admira, o que me enche de pasmo e assombro é que tu possas fazer com que seres racionais e livres cumpram os teus planos, quando eles têm plena

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potência e liberdade para não os cumprir... Que tu possas fazer com que estes seres te sirvam sem lhes ofender a liberdade... Que nenhum ser possa frustrar um átomo sequer dos teus planos eternos, embora não o impeças de se frustrar a si mesmo – isto, meu Deus, é a mais estupenda revelação do teu poder e da tua sabedoria...

A hostilidade luciferina existe, certamente, entre anjos e homens, mas existe dentro do vasto plano evolutivo que preside a todos os eventos do teu universo, ó supremo Artífice. O que nós, vaga-lumes humanos, enxergamos do teu plano é apenas um recorte infinitesimal, é uma pincelada escura no gigantesco quadro multicor do teu mundo, é um som isolado no meio da imensa sinfonia do teu cosmos. Percebemos apenas o movimento centrífugo de poderosos astros e pequeninos satélites do teu universo total, e não percebemos a força centrípeta que os prende à tua Divindade. O resultado dessas duas forças, aparentemente antagônicas, é a grandiosa harmonia da tua obra, harmonia que só podia resultar da síntese de antíteses, do equilíbrio do “sim” e do “não”, do consórcio da atração e da repulsão.

Como poderia acontecer algo que tu não previsses e quisesses?

Certo é que não podes querer o mal absoluto – que nem existe – podes, todavia, querer o mal relativo, que é fator integrante do teu plano eterno e obediente executor da tua vontade, como o próprio bem. Tu, conhecedor da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, plantaste essa árvore bem no meio do Éden – para quê? Para que o homem, conhecedor do bem, fosse também conhecedor do mal, e assim se igualasse a ti, como tu mesmo disseste: “Eis que o homem se tornou semelhante a nós, conhecedor do bem e do mal.” O mal relativo, fator integrante do teu plano eterno, é um anjo luciferino que cumpre a tua vontade parecendo hostilizá-la.

A realidade cósmica é infinitamente mais grandiosa do que a concepção filosófica ou teológica que dela formamos. E por isto teremos sempre de ti, ó Deus, e da tua obra, idéia deficiente, imperfeita, falsa.

Que universo seria o nosso se nunca saísse da primitiva nebulosa? se nunca os sóis se separassem uns dos outros? se nunca os planetas e satélites se revoltassem contra seus primitivos centros?

E que universo espiritual seria aquele cujas unidades não atingissem jamais a sua plena consciência individual e proclamassem a sua autonomia?... que nunca se separassem da consciência cósmica nem fizessem do seu semi-eu um pleni-Eu?...

Sem essa individualização, não atingiria o mundo o grau de evolução que, segundo os teus altos desígnios, devia atingir.

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Não há polaridade sem pólos opostos – e toda a evolução é filha de alguma polarização. Não hásíntese onde faltam antíteses.

Tu, Senhor, quiseste a revolução para que houvesse evolução.

Se tu fosses esse Deus fraco e incompetente engendrado pela humana inteligência, é certo que não devias permitir essa revolução, se não quisesses ver destruída parcialmente a tua obra. Tu, porém, não és esse Deus criado para nossos jardins de infância e escolas primárias. Tu és um Deus infinitamente mais divino do que os homens possam conceber. Tu és integralmente vitorioso em todas as tuas obras. Esta firme convicção enche-me de tamanha luz o espírito e de tão profunda tranquilidade o coração, que nenhuma infelicidade me pode tornar infeliz, nenhuma tempestade pode revolver as profundezas do meu ser.

De ti veio tudo – e a ti tudo voltará...

Tu és o princípio e o fim – o alfa e o ômega...

A ti servem o “sim” e o “não” – a ti cantam hosanas a luz e as trevas...

Em ti se unem o zênite e o nadir – a ti servem inteligências angélicas e luciferinas...

Tão poderoso és tu que não precisas exibir poder, que podes parecer fraco a ponto de permitir a rebeldia das estrelas matutinas do teu mundo espiritual... Tão ilimitada é a confiança que tens no teu poder que podes crear seres e abrir-lhes os caminhos do mais longínquo ateísmo – na certeza de que todas as inteligências e vontades são servidores da tua Divindade...

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Na extrema periferia do ser

Na extrema periferia do ser

Compreendo, Senhor, que tenhas creado espíritos – tu, que és espírito.

Mas não compreendo que tenhas creado matéria – tu, que não és matéria nem material.

Há entre ti e o reino dos espíritos certa afinidade – mas negreja entre ti e o mundo da matéria uma disparidade sem limites...

O reino dos espíritos é, por assim dizer, o primeiro círculo, próximo do trono da tua espiritualíssima divindade – mas onde fica o círculo da matéria? na extrema periferia dos círculos concêntricos? Mas onde localizar esse círculo extremo, se do espírito à matéria vai uma distância quase infinita?

É deveras estupendo, meu Deus, que tu possas aventurar-te a tão longínquos horizontes, tão longe do centro da tua espiritual divindade, sem deixares de ser Deus e Espírito... Outro ser qualquer que não fosse esse pleni-ser que tu és se afogaria no oceano da não-espiritualidade, no gigantesco pélago do plano material, se tão longe se distanciasse do centro da sua natureza específica. Tu, porém, meu grande Ignoto, és tão intensamente espiritual e divino, tão infinitamente tu mesmo, que nenhum não-tu é capaz de adulterar o teu tu, nem mesmo pôr em perigo a inabalável fidelidade que tens a esse infalsificável “tu” da tua divina natureza.

A matéria é, a meu ver, o mais radical não-tu, a mais veemente negação da tua espiritualidade, a mais longínqua periferia da grande central da tua divindade... E no entanto, meu eterno Mistério, tu cometeste a inaudita audácia, ia quase dizendo, a estupenda temeridade de demandares essa longínqua periferia do mundo material sem saíres de ti mesmo, sem adulterares de leve sequer o espiritualíssimo foco da tua pura e genuína divindade. É precisamente essa tua infinita polaridade, essa harmonia dos paradoxos, que me enche de pasmo e estupefação, meu grande Ignoto.

* * *

Mais ainda. Infundiste à matéria algo que não é matéria nem material. Que é esse algo? espírito? alma? inteligência? razão?... Não sei...

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Não sei como definir esse indefinível quê, esse misterioso algo que faz a matéria evolver, que a faz progredir, que procura subir de perfeição em perfeição, ela, que não possui propriamente espírito, nem alma, nem inteligência, nem razão...

Não, não é a matéria que faz isto – és tu, meu Deus, dentro da matéria, tu, que és onipresente, oni-imanente – e onde estás presente também és agente, és ativo, dinâmico, realizador.

Não quiseste um mundo em estado definitivo e estático – quiseste um mundo em estado evolutivo e dinâmico, meu grande Artista e adorável Esteta!

Se não fosse tão adulterada a palavra “poeta”, chamar-te-ia o “Poeta Supremo”, tu, que creaste esse poema imenso do cosmos em perene evolução... Poder, sabedoria, bondade, amor, poesia, beleza, felicidade – este o teu verdadeiro ser – e é também este o clima que reina por toda a parte onde te manifestas. Bem disseram os pensadores de Hélade que o teu mundo era um “cosmos”, isto é, um “ornato”, porque tudo quanto fazes é ornado de arte e harmonia, de poesia e estética...

É bem estranho que os homens te tenham ideado um dia como o “descanso eterno”, como algo inerte, imóvel, ou amigo de coisas inertes e imóveis – quando tu és a mais categórica negação da inércia e da estática, e a suprema afirmação da atividade e da dinâmica. Tu, que és actus purus, puríssima atividade, não podias evidentemente crear um mundo que não fosse o reflexo da tua dinâmica atividade, um mundo em incessante progresso, em contínua metamorfose, em perene evolução ascensional.

Se creasses um mundo em estado definitivo, admiraria eu a tua divina potência – mas agora, que creaste um mundo em estado evolutivo, admiro a tua potência e sabedoria, adoro o teu supremo poder através da tua imensa poesia, através do teu senso artístico, através da tua estupenda genialidade...

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O grande paradoxo

O grande paradoxo

Tu, meu Deus, que és espírito, creaste um mundo espiritual – e eu adoro a tua potência.

Tu, que não és matéria, creaste um mundo material – e eu admiro a tua audácia.

Que outros mundos podiam ainda brotar das tuas mãos creadoras? Seria possível que maiores maravilhas e mais arrojadas epopéias partissem de ti, ó eterna Divindade? Obras que ultrapassem a luminosa plenitude das inteligências angélicas e a tenebrosa vacuidade da inércia material?...

Entretanto, onde parecia terminar o teu poder creador, ali precisamente começou o mais estranho poema da tua potência e sabedoria. Resolveste dar existência a um mundo espiritual-material.

Fundiste numa incompreensível unidade a luz e as trevas... Amalgamaste o fogo e a água...

Harmonizaste o “sim” e o “não”... Casaste o zênite com o nadir...

Fizeste do espírito e da matéria uma unidade integral, que colocaste entre o céu e a terra. Pousam os pés desse ser sobre as baixadas telúricas, e aponta o seu vértice as alturas cósmicas – traço de união que não consegue unir tão grandes antíteses, ponte que não vale ligar os litorais do aquém com as praias do além – o homem.

Que admira que esse ser paradoxal viva em perpétua inquietude?... que oscile sempre entre as alturas e as profundezas... que seja anjo e semi-animal?... um satânico serafim e um seráfico satã?...

Quando foi que o fogo fez as pazes com a água?...

Quando se reconciliou a luz com as trevas?... Quando disse o espírito à matéria: somos irmãos?...

Não tem a pedra sossego senão no seu centro de gravitação – e como poderia o homem sossegar se está fora do seu centro?...

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Não descansa a agulha magnética quando desviada do seu norte – e onde está o norte do homem?... Onde está a sua verdadeira pátria? o centro do seu repouso?...

Na terra?

Protesta o espírito... No céu?

Protesta a matéria... Entre o céu e a terra?

Mas lá se erguem os braços sangrentos duma cruz... E dessa cruz pende um homem...

O eterno símbolo do homem...

Ecce homo... O homem-chaga... O homem-tormento... O homem-agonia... O homem-homem...

Crucificado, como todos os homens humanos...

... É este, Senhor, o maior dos paradoxos que já saiu das tuas mãos creadoras. É esta a mais dinâmica tensão que existe no teu universo.

... É esta a mais insatisfeita nostalgia que clama e soluça nos vastos desertos do teu cosmos...

O homem – esse paradoxo...

Dilacerado pelas harpias de Sodoma e pelos demônios de Babel...

Varado pelas correntes magnéticas do céu e do inferno... Atormentado pelas forças cósmicas da atração e da repulsão...

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O homem – esse paradoxo...

* * *

Qual o sentido real dessa estranha parábola, meu Deus? a parábola “homem”? Terá essa esfinge, um dia, uma solução?...

Haverá resposta para esse sinistro ponto de interrogação?...

Haverá um ocaso sabatino, ou até uma alvorada pascal, para esse eterno agonizante que cravaste na cruz do Calvário da humanidade?...

Que fazes sofrer entre o céu e a terra?... Por cima das cabeças da multidão ululante... Entre facínoras...

Rasgado de açoites... Coroado de espinhos... Ardendo em febre...

Consumido de sede...

Sempre vivo e sempre moribundo...

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Transcendente

Transcendente

imanente

imanente

Disseram-me que tu, Ser Transcendente, habitavas para além das nuvens do firmamento – do firmamento sideral e do firmamento pessoal.

Disseram-me que o teu céu é nas alturas – e o teu inferno nas profundezas. Disseram-me que o supremo destino do homem consiste na eterna visão da tua face, após a morte corporal.

Disseram-me que havias fundado aqui na terra um reino no qual entrava o homem por meio de certos ritos e fórmulas sacras.

Saturado destas idéias, andei longos anos e decênios em tua busca e em demanda do teu reino. Perguntei-te, como a samaritana, à luz solar de sorridentes campinas; interpelei-te, como Nicodemos, à luz estelar das noites silenciosas: “Onde se deve adorar a Deus?”...

Busquei-te em Garizim e em Jerusalém, por entre vetustas ruínas e entre esplendores litúrgicos...

Andei à tua procura em todas as excelsitudes cósmicas.

E encontrei-te, finalmente, onde não te buscara – dentro de mim mesmo...

Bem o dissera teu Messias: “O reino de Deus está dentro de vós... Os que adoram o Pai devem adorá-lo em espírito e em verdade...” Mas eu ignorava estas palavras brevíssimas e imensas, e quando cheguei a conhecê-las, interpretei-as à luz das minhas idéias errôneas, e não as compreendi.

Estudar-te, crer em ti, é certamente um passo preliminar para encontrar-te – mas não é ainda o encontro real contigo. Só se encontra realmente o que se vive e sofre – e é esta a única ciência que não se pode ensinar nem aprender em livros e com mestres. A mais profunda, sublime e trágica experiência da vida deve o homem fazê-la a sós. Nem pai, nem mãe, nem filho, nem filha, nem esposo, nem esposa, nem amigo, nem mestre – ninguém me pode acompanhar a essa imensa solidão, a esse cume altíssimo, a essa tenebrosa profundeza do encontro pessoal contigo, meu grande Anônimo...

Quem não te vive e sofre não te conhece, não tem idéia do que Jesus quis dizer com as palavras “reino de Deus”.

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A ciência te estuda – a consciência te revela...

Viver-te no mistério da consciência é sofrer-te na vida presente. Quem te vive sofre-te. Sofre por ti a sua própria insuficiência e fere a sua grande espiritualidade nas barreiras do finito...

Para encontrar-te dentro de mim foi necessário descobrir primeiro o meu verdadeiro Eu dentro do meu pseudo-eu. Tive de romper por essa gigantesca selva tropical do meu ruidoso ego periférico que circunda o silencioso Eu central. Quase sucumbi nessa luta titânica, porque o ego periférico, que o mundo chama minha “personalidade”, é uma camada duríssima, um rijo baluarte de erros e de hábitos, que me vedava o acesso ao centro divino de mim mesmo. Mas, uma vez transpostas todas as zonas periféricas do meu pseudo-eu, descobri o meu centro, o meu verdadeiro eu – e lá estavas tu, meu grande Anônimo...

“Eu te procurava lá fora – e eis que tu estavas dentro de mim!” (Santo Agostinho).

Tu, que és infinitamente transcendente, és também infinitamente imanente. E eu só cheguei a conhecer a tua transcendência depois de viver a tua imanência.

Agora sinto-me calmo e seguro diante de tudo e de todos, diante de ti – e até diante de mim mesmo. O sol da tua presença, quando apenas transcendente e não imanente, torna tão espessas as sombras do ego que quase não consigo subsistir diante de mim mesmo, em face de ti. Tenho a impressão de que algo infinitamente positivo provoca em mim algo infinitamente negativo... Em face do teu gigantesco “sim” divino reduz-se o meu “não” humano a tão extrema pequenez que o solo parece abrir-se sob os meus pés e afundar-me no abismo do vácuo e do nada.

E somente nesta vasta planície desegoficada e neutralizada do meu pseudo-eu periférico é que o meu verdadeiro Eu central pode nascer e proclamar a vitória do teu reino divino dentro do homem.

* * *

Depois de feita a inefável descoberta de que o teu reino está dentro de mim, sucederam-se outras descobertas, cada qual mais feliz. Desde esse dia encontrei o teu reino em toda a parte, mesmo lá onde ninguém lhe suspeitaria a existência.

Encontrei o teu reino em homens poluídos e almas profanas, em publicanos e pecadores – se lá não estivesse ao menos um germe divino, como poderiam nascer tão viçosas plantas de espiritualidade?

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Encontrei o teu reino até no mundo irracional, em pedras e metais, na flora e na fauna, no zumbir do inseto e no rugir das feras...

Outrora, não podia eu compreender como é que uma planta ou um vil animalejo, seres sem intelecto, pudessem agir tão inteligentemente como agem, escolher com infalível acerto os meios mais adequados para a consecução de certos fins por eles mesmos ignorados. Arquitetei teorias, elaborei hipóteses, repeti o que outros me haviam dito – mas todos os meus tentames de solução esbarravam sempre num “ponto morto”, onde o maior descrente das minhas teorias era eu mesmo. E dessa noite absoluta da inteligência não havia saída para parte alguma. Uma vez que tu habitavas para além das nuvens, como é que podias estar dentro de um cristal? nas células duma planta? no corpo primitivo dum protozoário? Não era isto indigno da tua grandeza e majestade?...

Para salvar do iminente naufrágio o meu querido teísmo, repetia eu o que tinha ouvido dizer: que tuas leis estavam dentro dos seres, dirigindo-os para certos fins. Não podia eu, nesse tempo, crer que tu mesmo estivesses dentro de tudo que o que é real, que eras o Uno Infinito e todo o verso finito do universo; que todas as coisas, desde as mais simples até as mais perfeitas, estão dentro de ti porque tu estás dentro delas, e as penetras inteiramente com a tua onipresente Divindade.

Quando me convenci da tua absoluta onipresença e oni-imanência, comecei a compreender o mundo e a mim mesmo. O meu monoteísmo culminou em monismo.

Cheguei a compreender também que o teu céu não é algum lugar longínquo para onde deva a alma viajar após a sua separação do corpo – mas que o teu céu é um estado espiritual dessa mesma alma liberta, uma atmosfera divina creada dentro da alma na vida presente e revelada na vida futura.

Ninguém pode estar dentro do reino de Deus se esse reino não estiver dentro dele. Tudo o que é grande, bom, verdadeiro, sincero, belo, justo, puro, tudo isto é o teu reino, não só no mundo futuro, senão também na vida presente.

Não é a morte que me introduz no teu reino, e sim a vida. Também, como poderia a não-vida fazer de mim o que a vida não fez?...

Tu, o mais transcendente de quantos seres existem, és de todos os seres o mais imanente – o único ser plena, profunda e integralmente imanente...

A descoberta – não científica, mas vital – da tua profunda e universal imanência, a serena convicção da tua perene in-habitação dentro do sacrário do meu Eu central, enche-me de inefável tranquilidade, duma paz tão grande e duma felicidade tão plena e segura, que nenhuma tempestade periférica,

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nenhum inferno de infortúnio ou decepção é capaz de perturbar este meu paraíso, onde sorriem os teus querubins e cantam os teus serafins...

Hosana – ó Deus transcendente!... Aleluia – ó Deus imanente!...

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Minha luminosa escuridão

Minha luminosa escuridão

Exultei de júbilo ao descobrir esta grande realidade. A luz é tão bela, tão ardente, tão pura... A luz é fonte de vida e alegria – e tu, meu Deus, eras para mim a claridade imensa que iluminava as noites da minha existência.

De tão encantado da tua luz, cantei a apoteose da tua grandeza, ó excelsa Divindade...

Hoje... és para mim a grande escuridão...

A escuridão?... Não, não és a escuridão – és a síntese e quintessência de todas as trevas do universo e de todas as noites de minha vida...

A escuridão duma noite terrestre é luz em comparação com o profundo negror da tua natureza, minha gigantesca Noite Metafísica...2

2.Não se esqueça o leitor, em face dessa estranha afirmação, de que a jornada ascensional da alma rumo à luz definitiva vai através de luzes e trevas intermitentes. Lembre-se da “noite tenebrosa da alma” de São João da Cruz, e de todos místicos.

A noite do nosso planeta acaba sempre em crepúsculo, em aurora, em luz meridiana – a tua noite, porém, se estabilizou no nadir da sua mais profunda e imutável escuridão. O relógio da tua natureza marca sempre meia-noite. Toda vez que ergo os olhos, encontro-me com os teus ponteiros em rigorosa vertical, como o fiel duma balança em repouso, abraçando-se eternamente sobre o “doze” da meia-noite. O teu tempo é eternidade... A tua balança não oscila... Os teus ponteiros não se movem...

A princípio, pensava eu que essa treva metafísica fosse privilégio da tua divina essência; que só no centro do teu Eu divino é que reinava essa grande escuridão. Mais tarde, porém, verifiquei, com indizível assombro, quase com desespero, que tenebroso é tudo que te circunda e sai das tuas mãos. De todos os círculos concêntricos que rodeiam o teu sólio eterno irradiam trevas, até da extrema periferia do cosmos material e espiritual...

Treva é a tua natureza... Treva a tua providência... Treva a tua revelação... Treva a tua filosofia...

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Treva a tua justiça... Treva a tua sabedoria... Treva é o teu mundo todo...

Treva o reino que entre os homens fundaste...

Treva é até a mais intensa luz do teu amor para conosco...

... Naqueles tempos, quando a tua eterna divindade me parecia luz intensa, eras tu para mim delícia suprema. Pensar em ti me era doce... Proferir o teu nome era um encanto... Adorar-te era um paraíso...

Hoje, és para mim o maior de todos os tormentos.

Tu, meu Deus, és para minh’alma a mais acerba de todas as dores...

O mais amargo de todos os sofrimentos... O mais dilacerante de todos os ais...

A mais inquieta de todas as minhas inquietudes... O mais profundo de todos os abismos do meu ser...

A mais ardente de todas as flamas que abrasam a minha vida... O mais enigmático de quantos enigmas angustiam o meu espírito...

A mais vasta solidão de todos os desertos que se alargam em derredor e dentro de mim...

Isto és para mim, ó Deus, depois de tantos decênios que ando à tua procura, leal e sinceramente...

Entretanto, minha grande Escuridão e minha Dor imensa, não te escandalizes com esta rude fraqueza de minh’alma, que parece uma blasfêmia nos meus lábios, mas é um grande ato de amor no meu coração...

Mais do que nunca eu te quero, amo, adoro... E no dia em que me fores ainda mil vezes mais obscuro e doloroso, mil vezes mais te hei de querer, amar, adorar...

Desconfio dum “deus” que não seja assim como tu és... um “deus” não misterioso nem doloroso me encheria de desconfiança de ser um pseudo-deus, um não-deus...

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Na vida presente, quero-te noturno, doloroso, enigmático – um “deus desconhecido”...

Quero-te assim como és, infinitamente amargo. Esse amargor – não sei por que estranhas leis de contraste ou polaridade – tem para mim maior doçura que todas as doçuras do universo...

Amo essa tua escuridão, meu Deus, não por ser escuridão – mas por ser “tua” escuridão.

Tempo houve em que eu era muito mais “sábio” do que hoje – e até mais “religioso”, como dizem os homens. Naquele tempo sabia eu provar com impecáveis silogismos a tua existência e os teus atributos. Quase uma dúzia de “argumentos”, todos eles infalíveis, estavam nitidamente exarados nos meus alentados cadernos apologéticos. Naquele tempo sabia eu expor aos meus semelhantes todos os secretos desígnios da tua providência. Arvorava-me afoitamente em advogado e defensor do teu governo e julgava de meu dever justificar cada uma das tuas obras. Provava, com precisão quase eletrônica, que tudo quanto acontecia tinha de acontecer justamente assim, sem um milímetro de diferença para a direita nem para a esquerda – e que era tolo quem isto não compreendesse...

Como vês, meu Deus, eu era nesse tempo ótimo advogado da tua providência e funcionário ideal do teu reino.

Hoje, creio mais na minha ignorância do que na minha sapiência...

Hoje, convencem-me mais os teus mistérios e paradoxos do que as tuas claridades meridianas...

Sei que existes – mas sei também que o teu existir não é assim como eu penso e creio. A idéia que faço do teu existir e do teu agir é, a bem dizer, a minha própria existência e atividade projetadas ao infinito. Conheço-te, não assim como és – mas assim como eu sou. Vejo-te através dos óculos coloridos da minha individualidade e do meu caráter pessoal. Tu és assim como eu compreendo que possas ser, ou como desejaria que fosses.

És inteligente – para minha sede intelectual... És amoroso – para meu coração faminto de amor... És poderoso – para minha vida tão frágil...

És belo – para meu sentimento estético a buscar o seu ideal... És eterno – para meus anseios de imortalidade...

Tudo isto penso eu de ti, e tudo isto és tu na verdade – mas não o és assim como eu penso e imagino. O conceito que de ti formo não é idéia adequada,

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senão apenas análoga. Concebo-te como o melhor e mais perfeito dos seres do mundo, elevo-te à potência infinita – e digo que isto és tu.

O teu modo de ser é completamente diverso do nosso, mesmo quando superpotencializado e multiplicado por todos os infinitos...

Desde que compreendi o oceano da minha ignorância e a gotinha do meu saber; desde que compreendi que nem esta gotinha é um saber certo e garantido, ocultei-me na sombra duma grande humildade, porque humildade é verdade. E é por isto mesmo que a “ver dade nos liberta”, porque nos emancipa da escravidão do orgulho, que é ilusão.

Desde então me tornei mais prudente e cauteloso nas minhas afirmações e nas minhas negações. Trato com caridade e indulgência os que pensam de modo diferente.

Abri mão do monopólio da verdade que eu julgava possuir, no tempo da minha extrema ignorância – quando essa ignorância andava de mãos dadas com a minha arrogância...

A escuridão que me cerca obriga-me a andar devagar, passo a passo, tateando ao longo das paredes desse túnel do teu mundo caliginoso... Pensam os homens que me falta a coragem para fazer desassombrada profissão de fé; vêem nesta hesitação um sinal de covardia da minha parte... Mas como se pode correr vertiginosamente no meio das trevas enum caminho pontilhado de obstáculos?...

Sei, minha luminosa Escuridão, que, assim mesmo, chegarei aonde estás, porque tu, que não apagas a mecha fumegante nem quebras a cana fendida, me levarás nas palmas das tuas mãos...

Sei que tu julgas o homem, não pelo que ele faz e de fato realiza – mas sim pelo que quer e sinceramente desejaria realizar.

Tu sabes que o homem não é o que ele é historicamente – mas sim o que ele é no mundo longínquo dos seus ideais...

O mundo da minha realidade histórica não depende de mim, em grande parte, não obedece ao meu querer ou não-querer, é filho da fortuna ou do infortúnio, resultado da boa sorte ou do mau azar; eu não sou mais que uma série de fatores que me colhem em suas malhas prepotentes, fatores alheios ao meu verdadeiro e íntimo Eu...

Eu sou o que sou livre e espontaneamente e o que desejo ser, ainda que de fato não o consiga ser – isto sou eu na verdade. Sei que entre o meu “querer ” e o meu “poder” medeia distância quase infinita, mas não é essa distância a bitola do meu verdadeiro ser; o que vale e decide é o meu sincero querer, e

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não o meu impotente poder. Sei que os meus ideais são montanhas longínquas, cumes excelsos imersos em luz divinal – e sei também que as minhas realidades são prosaicas e cinzentas planícies, areais monótonos, que talvez nunca atinjam sequer o sopé dos meus longínquos Tabores...

Mas tu sabes, meu Deus, que eu não sou este esfarrapado e exausto viajor que se arrasta pela prosaica planície da sua humana fraqueza – eu sou aquele saudoso peregrino do Infinito que, em pleno areal desta terra finita, crava os olhos famintos nosluminosos cumes dos seus grandes ideais...

E é por isto mesmo que não desmaio na longa jornada... O único que tenho de meu é meu sincero querer – e é por este querer que tu me julgas, e não pelo poder ou não-poder, como os homens insensatos.

Por isto, minha luminosa Escuridão, eu me julgo mais perto de ti no meio das minhas trevas de hoje do que na minha claridade de ontem...

O sofrimento por ti me aproximou de ti, distanciando-me de mim... Distanciando-me de mim?...

Assim pensava eu, por muito tempo. Tinha a impressão de que o sofrimento me afastava do Eu, à medida que me aproximava de Deus; deslocava-me do centro humano em direção à periferia divina...

Vejo hoje que não é bem assim... De fato, o sofrimento por ti me aproxima de ti e, em certo sentido, me distancia de mim, do meu ego estreito – mas não me distancia do meu verdadeiro e autêntico Eu, desse Eu largo e livre, desse Eu eterno que está oculto sob a grossa camada com que o meu ego efêmero e profano encobriu aquele verdadeiro e eterno Eu.

Fiz esta grande descoberta: que o único caminho certo para o verdadeiro Eu é via Deus. Quem não vai via Deus encontra sempre um pseudo-eu, e ficará eternamente alheio ao verdadeiro Eu do seu ser...

Foi necessário desegoficar-me, divinizando-me em ti, a fim de me encontrar integralmente em mim...

É esta a estranha matemática, filosofia e astronomia do teu reino, ó minha luminosa Escuridão...

E é por isto que eu quero, amo e adoro essa tua luminosa Escuridão, ó Deus eterno...

Referências

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