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Em busca do teu reinoEm busca do teu reino

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 82-89)

Em busca do teu reino

Quando me convenci de que as vacuidades do mundo não valiam encher o vácuo do Eu, voltei as costas às coisas profanas e fiz-me bandeirante dos teus mundos ignotos, meu Deus invisível.

Percorri tudo quanto o humano espírito pode percorrer sobre as ágeis e possantes asas duma saudade imensa.

Abri os olhos e olhei em derredor... Agucei os ouvidos e escutei...

Ergui ao espaço todas as antenas da alma, à espera duma onda de mundos longínquos...

E descobri por toda a parte rastros estranhos que me diziam: por aqui passou Ele... Ele, o Poderoso, o Sábio, o Bom, o Formoso...

Os fulgores da luz e o matiz das flores, as jubilosas melodias diurnas do bosque e a tácita sinfonia noturna das estrelas – tudo isto me falava de ti, meu Deus, de ti e do grande reino que brotoudo teu amor onipotente...

A princípio, contentava-me eu com o simples e quase inconsciente gozar da tua sedutora Natureza, e tão querida se me tornou essa tua mensageira vestida de lindas roupagens que dela me enamorei ao ponto de quase me esquecer de ti, Fonte de todos os esplendores do Universo...

Era tão doce repousar sob as frondes dormentes das grandes árvores...

Era tão bom escutar a liturgia que o cristal das fontes cantava por entre pedras ninféias...

Era tão inebriante o incenso que os cálices multicores derramavam pela vasta catedral das tuas selvas tropicais...

Era tão delicioso ser uma parte integrante do grande cosmos, sem saber da sua própria vida...

Tive ímpetos de submergir nesse eterno sonambulismo da flora e da fauna... Abismar a minha pequena consciência no seio da grande cosmo-consciência.

Diluir o meu ser individual e despersonalizar-me no vasto e profundo oceano impessoal da Natureza...

Adivinhava eu, na completa extinção do meu Eu consciente, o benéfico nirvana duma inefável beatitude...

Por que ainda procurar o Deus das obras se as obras de Deus eram tão belas e sedutoras?...

... Entretanto, não quis a Natureza impessoal descristalizar o cristal do meu Ser consciente... Não atendeu aos meus amores panteísticos...

E assim tive de ficar onde estava, cravado na cruz da minha consciência, em pleno Gólgota da vida humana...

Fizeste bem, mãe Natureza, em não deixares o filhinho incauto brincar com tão perigoso brinquedo... Quem nasceu para o mundo consciente não pode desnascer para o mundo inconsciente... Deve renascer para um mundo superconsciente...

* * *

Mais tarde, distanciei-me dos caminhos crepusculares do sentimento cósmico e enveredei pela estrada luminosa da inteligência – a ver se ela me conduzia às fronteiras do teu reino, ó Deus invisível. Construí na linha vertical e na linha horizontal, pelo pensamento e pela experiência. Trabalhei com afinco e perseverança na arquitetura da minha torre de Babel. Dispus com jeito e perícia as pedras. Saíram da terra os alicerces, solidamente construídos. Muralhas ciclópicas se projetaram às nuvens. Gigantescos pilares se ergueram no céu. Tinha eu a certeza de que a minha soberba torre intelectual ia, um dia, atingir o teu trono, ó Ser eterno.

Correram os meus dias e os meus anos entre o estudo e a experiência.

Bateu o bandeirante do meu espírito ínvias florestas, galgou montanhas, transpôs precipícios – sempre em busca do teu reino invisível... Aprendi a orientar-me com segurança no meio do fluxo e refluxo dos fenômenos transitórios. Dispus e sistematizei os meus pensamentos em certa ordem, coordenando-os, subordinando-os – assim como o viandante lança uma série de pedras no leito de impetuosa torrente e sobre elas procura atingir a margem oposta.

Era bem feita a ponte silogística que minha inteligência lançara no largo caudal dos fenômenos do meu mundo externo e interno. E eu saltava lentamente de pedra em pedra, de causa em efeito, dos meios para os fins, do “porquê” ao

“para quê”, do “donde” ao “para onde”, a fim de colher-te, meu inefável Mistério, no litor al d’além, nas sólidas malhas da minha lógica e cautelosa filosofia... Encontrei-te realmente, ó Causa prima e imutável de todos os efeitos variáveis, Razão eterna da película tecnicolor do nosso mundo efêmero...

Encontrei-te como o primeiro Movente de todas as coisas movidas; como o Sol central de todos os planetas e todos os raios solares do mundo periférico; como Fonte suprema de vida de todos os seres viventes...

Encontrei-te como a Voz potente que nas profundezas do ser racional ecoa como inextinguível voz da consciência; como Bem supremo que de ardentes anseios de beatitude enche os seres que pensam e amam...

Encontrei-te como Verdade eterna, como Justiça imutável, como Santidade infinita no imperativo categórico do dever, na universal convicção do gênero humano que crê na vida imortal e no definitivo restabelecimento da ordem moral.

Por algum tempo estava a minha inteligência satisfeita com o seu hábil trabalho de engenharia filosófica, e cuidava poder repousar sobre os louros colhidos. Mas... não há repouso nem querência para o espírito bandeirante enquanto restar uma floresta a devassar, uma montanha a escalar, um precipício a transpor – e quando poderia alguém atingir o extremo litoral dos teus mares, ó vasta e longínqua Divindade?... Quando poderia o espírito lançar âncora no porto do teu ocidente, tu, que és sempre oriente, por mais que lancemos a nossa nau rumo ao ocaso?... tu, cujos arrebóis vespertinos se confundem sempre com auroras matinais?... tu, cujo ômega se transforma sempre em alfa?... tu, indecifrável esfinge cujos olhos hirtos fitam o infinito e cujo semblante parece sorrir enigmaticamente de todos os nossos esforços?... tu, cujo centro está em toda parte e cuja periferia não está em parte alguma?... Verifiquei que a luz que minha inteligência derramava em torno de si era uma luz fria, um fantástico luar sobre vastos campos de neve... Contraiu-se o meu íntimo ser à frialdade da minha ciência, e o coração tiritava ao contato com a atmosfera polar que minha filosofia criara em derredor...

Quase que morri congelado por entre os esplêndidos glaciares da minha inteligência...

Abandonei o clima glacial do meu estreito intelectualismo, ergui os olhos – e fui em demanda das regiões tropicais do coração. Levantei a minha tenda em pleno equador, e derreteu-se aos ardores do solo meu grande bloco de gelo. Ao degelo primaveril brotou-me na alma uma grande floração de fé e amor...

Cessou a ruidosa ofensiva do meu lúcifer mental... Respirei, aliviado...

Tive algum sossego de mim mesmo...

... Mas ai de mim, inquieto bandeirante!...

Nem as regiões tropicais da fé valeram dar-me quietação definitiva...

Por algum tempo pensei em voltar ao clima polar do meu intelectualismo filosófico, mas tive medo dum congelamento total, depois de habituar o meu organismo aos ardores tropicais do coração...

Pensei em estabelecer-me em zonas temperadas, entre os trópicos e os glaciares. Comecei a intelectualizar a minha fé, a cristianizar a minha ciência – mas verifiquei em breve que essa tentativa não passava duma formosa miragem no deserto. Intelectualizar a fé, cristianizar a ciência – palavras magníficas, não há dúvida – para faquires, e hipnotizadores da vida... Seria o mesmo que tentar aguar o fogo ou incendiar a água... Sei que existe uma literatura imensa sobre o intelectualismo da fé e sobre a ciência cristã – entretanto, a fé, por mais razoável que ela seja, não é intelectualizável; e a ciência, por mais espiritual, nunca aceitará as águas lustrais do batismo cristão. São dois hemisférios do mesmo globo, sim, mas que nunca se fundirão em uma só realidade, nunca se unirão num amplexo íntimo de perfeita fraternidade. Inclusivismo recíproco, talvez o haja nas regiões “periféricas” da ciência e da fé – mas na zona “central” reinará sempre um grande exclusivismo...

O que a fé nos diz dos mundos intangíveis nunca será desvendado pela ciência da vida presente. À entrada da universidade da fé jaz a ciência, analfabeta, e, por mais que peça, rogue e suplique, não conseguirá nunca matricular-se nessa excelsa academia das supremas realidades do universo. Por outro lado, por que ia a fé sentar-se nos bancos toscos do jardim d’infância da nossa filosofia intelectualista? Por que aprender os sinais macabros com que a nossa enfatuada inteligência soletra e balbucia aquilo que julga saber?...

Que valor teriam para o peregrino do Absoluto e o viajor de mundos espirituais os precipitados ou licores que o químico ou o alquimista encontram no fundo dos seus cadinhos ou nos tubos dos seus alambiques?...

Desenganado do mundo da ciência e insatisfeito com as visões na fé, peregrinei longo tempo pelo deserto do nada da inteligência e do coração... Areal imenso...

Horizontes sem fim... Silêncio angustiante... Fome e sede...

Nenhum oásis à vista...

E meu espírito a andar, a andar, a andar... E meu coração a sofrer, a sofrer, a sofrer... E minh’alma a clamar, a clamar, a clamar... * * * Onde estás tu, meu Deus?

Que é do teu reino...

Se não estás nas alturas nem nas profundezas, nem nos horizontes da direita nem da esquerda, nem dos mundos do conhecer nem do crer – onde estás? Que é do teu reino?... Não algum reflexo lunar ou solar do teu reino, mas esse mesmo reino em toda a sua deslumbrante realidade e transbordante plenitude – ou mesmo em toda a sua indevassável escuridão e dolorosa sanguinolência, contanto que seja o teu reino real e verdadeiro, genuíno e integral?... onde está ele?...

Circundado do vasto e taciturno Saara da minha solidão interior e exterior, percebi dentro de mim uma voz que dizia:

“O reino de Deus não vem com aparato exterior; nem se pode dizer: ei-lo aqui! ei-lo acolá! – o reino de Deus está dentro de ti!”...

Dentro de mim?... Como pode o reino de Deus estar dentro de mim, se cá dentro reina o vácuo do deserto?... se cá dentro jazem esparsas as tristes ruínas da ciência e da fé?...

Não, não quero “inteligir ” nem “crer ” no reino de Deus – eu quero viver esse reino. Eu quero ser esse reino – perdoa-me, Senhor, se é orgulho esta expressão; tu sabes o que eu quero dizer; é a sincera humildade de minh’alma que me conduz a este “orgulho”. Sim, eu quero “viver ” e “ser ” o teu reino. Quero identificá-lo comigo.

Quero diluir-me nele...

Quero absorvê-lo dentro de mim mesmo...

Adormeceu então a “sapiência” da minha insipiência... Morreu a “sabedoria” da minha ignorância...

Sentado sobre os escombros de todas as minhas Babilônias, adivinhei que, no mundo por mim atingido, não se pode possuir o reino de Deus assim como eu desejava...

O teu reino, meu Deus, embora habite dentro do homem, é, por ora, um reino ignoto...

O teu “reino não é deste mundo”... É uma doce amargura...

É uma paz sem sossego... É uma luminosa escuridão... É um lindo deserto...

O único modo de possuir o teu reino é procurá-lo sempre de novo... Clamar por ele, com humildade, com amor, em grande silêncio... Ser pobre pelo espírito e puro de coração...

Ter fome e sede da justiça...

Ser eterno bandeirante de horizontes sempre longínquos. Fazer-se, em tudo e por tudo, servo dos servos de Deus...

Renunciar ao desejo de definir o indefinível, de tanger o intangível... Possuir não possuindo nem possuído...

Levar através da vida um grande amor insatisfeito...

Ser Vestal do fogo sagrado numa inefável angústia interior... Habitar num céu infernal...

Até que amanheça o dia que solva todos os problemas... Que concilie todos os paradoxos...

Que numa grande harmonia sintetize todas as antíteses da vida presente... Compreendi, Senhor, que eu não posso achar-te, possuir-te – mas que tu podes achar-me e possuir-me, se eu me tornar achável e possuível...

Compreendi esta suprema sapiência para além de todas as minhas ignorâncias...

E deixei-me afogar nos teus oceanos – e abrasar nos teus incêndios. Aleluia...

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 82-89)