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O teu arco-íris sobre meu dilúvioO teu arco-íris sobre meu dilúvio

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 60-64)

O teu arco-íris sobre meu dilúvio

Encontrei, no gigantesco livro do teu mundo, Senhor, um capítulo estranho – escrito com as trevas de todas as noites do universo, com as lágrimas de todos os homens do mundo...

Por que, Senhor, escreveste no teu livro tão belo um capítulo tão feio?... Por que creaste a dor, tu, que és a mais veemente afirmação do gozo?... Por que fizeste essa treva imensa da alma, tu, que és luz infinita?...

Por que abriste na face do homem duas fontes para as lágrimas e apenas uma para o sorriso...

Não “podias” impedir que a dor avassalasse o gênero humano, tu, que és onipotente?

Não “querias” impedir que sofrimentos atrozes dilacerassem a nossa vida, tu, que és amor e beatitude?

Se não o podias – que é do teu poder?... Se não o querias – que é do teu amor?...

Se te falta poder ou amor – que é da tua Divindade?...

Entre as ominosas farpas deste dilema oscilou minha vida muitos anos, rasgada de angústias...

... Encontrei, um dia, uma criança a contemplar atentamente uma poça d’água em que um veículo deixara cair umas gotas de óleo, que se difundiram pela superfície, formando lindas cores. “Olha um pedaço de arco-íris que caiu na água!” exclamava a pequena, cheia de alegria infantil pelo achado, remexendo com os dedinhos na água para ver mudar as cores e do seu “pedaço de arco- íris”. Era tão interessante ver de perto um fragmento do misterioso arco que a criança só vira de longe, nas alturas celestes...

Eu, porém, Senhor, não quero ver partido o arco-íris da minha vida a boiar sobre as águas sujas dos meus caminhos terrestres. Quero vê-lo, inteiro e puro, nas alturas do teu céu. Quero ver o arco-íris da minha fé a arquear uma

ponte de luz, de um a outro horizonte, desde as praias do aquém até aos litorais do além... E sobre esta ponte quero mandar passear todas as coisas boas e belas da minha vida, para salvá-las do grande naufrágio... Quero que tu, Senhor, estendas sobre o vasto dilúvio das minhas lágrimas este “sinal da tua aliança” com minha alma...

Bem sei que poderia crer teoricamente num Deus a quem não amasse; bem sei que poderia emitir profissão de fé dogmática e afirmar com os lábios e a inteligência a tua existência e os teus atributos – mas que seria esta fé teórica e dogmática senão um arco-íris em pedaços, tombado do céu, a boiar sobre águas estagnadas, à semelhança daquela tênue camada de gasolina numa poça do caminho?

Não! eu só posso crer sinceramente num Deus que possa também amar ardentemente.

Nunca direi com a inteligência e os lábios o que não possa dizer com o coração, com toda a alma do meu ser. Antes de tudo, tenho de ser sincero comigo mesmo, fiel ao íntimo quê do meu ser.

O teu mundo, Senhor, é um imenso hospital de sofredores. E os que mais sofrem são os que não parecem sofrer, os sofredores anônimos... Por um triz, esse sofrimento universal arrancou do céu o meu querido arco-íris e o jogou em fragmentos sobre a terra – por um triz... A meu lado vi muitos arco-íris a tombar das alturas, qual fantástica chuva de meteoros a rasgar a escuridão noturna e apagar-se no espaço...

Insensato de mim, nesse tempo!

Queria eu resolver problemas espirituais com argumentos intelectuais!

Por demais robusta e temerária era, nesse tempo, a confiança que eu tinha nas asas da minha filosofia intelectual, como se ela, qual água celeste, pudesse levar-me até o trono da tua Divindade...

Nascido sob o signo intelectualista do Capricórnio, educado num ambiente de erudição e ciência, saturado duma fé imensa no poder luciferino do intelecto – cuidava eu iluminar todas as trevas, solver todos os enigmas, abrir todas as portas secretas com a chave mágica da inteligência. Matriculei-me na escola do rei dos intelectualistas, que ensinou nossos protoparentes a comer “do fruto da árvore do conhecimento”, prometendo-lhes com isto a “semelhança de Deus”.

Não sabia eu, nesse tempo, que toda ciência nos leva invariavelmente a um “ponto morto”, onde ter minam todos os caminhos do intelecto, onde começa o grande silêncio a todas as nossas interrogações, onde se eclipsam todos os astros do firmamento e se apagam todos os faróis das praias...

Ignorava eu, nesse tempo, que, para além dos mais longínquos horizontes da ciência existe algo que não tem nome nos vocabulários humanos, mas que é tão real, tão poderoso e tão suave que de grande paz e sossego enche a alma que o bebe em momentos de intuição espiritual.

E, para beber esta grande realidade espiritual, é necessário que o homem tenha sede, uma grande sede metafísica e mística, uma vasta, profunda e sincera saudade dos mundos de Deus e do espírito...

É necessário que o homem abra dentro de si um grande vácuo... Que seja “pobre pelo espírito” e “puro de coração”...

Que estenda no espaço todas as antenas do espírito... Que escute com atenção as vozes do infinito...

Que sintonize as vibrações do pequeno Eu pelas ondas do grande Tu...

Que imponha silêncio aos ruídos profanos do ego periférico, a fim de perceber as melodias sacras do Eu central...

E, depois disto, saberá porque existe o sofrimento e o que ele faz do homem iniciado nos seus mistérios...

* * *

Depois daquele grande dilúvio, fui jogado pelas tuas tormentas, Senhor, a uma praia solitária e tranquila, onde amanheceu a luz da compreensão, não um meio-dia de luz integral – reservado a outros mundos – mas ao menos um tolerável crepúsculo matutino de serenidade interior e de conciliação contigo e com o teu mundo tão enigmático e paradoxal...

Fiz a grande e dolorosa viagem do meu ego periférico para o meu Eu central – e encontrei-te nesse centro, onde sempre estavas, mas onde eu não estava ainda. É este, aliás, o único ponto certo onde o homem te pode encontrar, uma vez que “o reino de Deus está dentro do homem”. Fácil seria uma viagem daqui ao Himalaia, ao Pólo Norte ou Sul, ou à estratosfera – difícil, porém, imensamente difícil, é esta viagem da periferia ao centro do nosso ser; porque tudo o que chamamos nosso ego pessoal e histórico – sentidos, afeições e inteligência – nos obriga a andar na superfície das coisas e nos impede de descobrir o nosso verdadeiro Eu central. Esse Eu central é como o ponto matemático de um eixo, fulcro que tudo move, mas que é imóvel em si mesmo – um movente imóvel – quase como tu mesmo, Senhor, o eterno movente

imóvel de todos os fenômenos transitórios.

E esse pouco foi o suficiente para me dar algum sossego diante de ti – e diante de mim mesmo... Impediu que caísse das alturas o arco-íris da minha fé e morresse, fragmentado, numa poça de água suja... Consegui crer num Deus amável... Fiz do amor a alma da minha fé e, como o amor é imortal, deu ele imortalidade à minha fé, enquanto essa mesma fé não se transforme em amor, fundindo-se com ele numa suprema e eterna unidade...

Enquanto a fé não for integralmente absorvida pelo amor, enquanto a luz meridiana da visão não suplantar a semiluz crepuscular da fé, é inevitável o sofrimento...

Tudo o que oscila entre o zero e o infinito tem de sofrer.

Entre o nadir do Nada absoluto e o zênite do Tudo integral estende-se o reino da dor, porque é o reino da evolução universal.

Continua o grande dilúvio das nossas lágrimas – à luz do teu excelso arco-íris, meu Deus...

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 60-64)