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Bandeirante do infinitoBandeirante do infinito

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 97-100)

Bandeirante do infinito

Relanceando um olhar sobre a estrada percorrida nesses decênios, verifico, Senhor, que eu, no início da minha vida teotrópica, era mais dogmático do que hoje. Hoje sou mais cético que dogmático, não porque menos creia em ti e no teu reino, mas porque mais consciente se me tornou a minha fé.

Cético, no verdadeiro sentido da palavra, não é aquele que de tudo duvida, que acha tudo incerto, vacilante, mal-seguro. Cético vem de skepsis, isto é investigação, pesquisa, exame. Cético é, pois, aquele que investiga, pesquisa, examina, procura – é o bandeirante do teu reino, meu Deus.

O dogmático afirma, abraça, encampa simplesmente a verdade, ou o que ele julga ser a verdade.

O cético, de início, não afirma nem nega; mantém-se em equilíbrio hábil entre dois extremos; pensa, estuda, compara, analisa, pondera os prós e os contras; procura descobrir uma solução objetiva, real, para aquilo que o dogmático aceita como já solucionado.

O cético, de tão apaixonado das coisas divinas e eternas, quer todas as garantias para a existência e solidez do seu querido edifício metafísico. Cava bem fundo. Lança alicerces enormes, com medo de que alguma tempestade ou algum terremoto violento lhe venham, um dia, destruir o querido santuário da sua espiritualidade, sem a qual não pode nem quer viver.

O cético é, por isto mesmo, um eterno bandeirante da verdade, porque sabe que o finito não esgota jamais o Infinito; sabe que, por mais que ande e corra, nunca lhe faltarão horizontes ilimitados, nunca eliminará a distância que vai entre o seu ideal e a realidade palpável. Não pára em ponto algum. Nunca diz “cheguei ao fim”, porque se sabe eterno itinerante. Não levanta casa maciça à beira da estrada, ergue apenas ligeira tenda de nômade, que lhe dê guarida para uma noite, para um dia chuvoso e nevoento – e logo prossegue no seu itinerário de todos os dias, de todos os meses, de todos os anos e decênios, por ínvias florestas e desertos inóspitos, rumo a mundos ignotos...

Sempre com os olhos no horizonte... Sempre em busca de algo que nunca viu...

O dogmático não procura propriamente a verdade, porque julga possuí-la definitivamente. Vai apenas em busca de provas que apóiem o seu dogma e o justifiquem perante a própria consciência ou em face de inteligência alheia.

O dogmático é antes estático que dinâmico – ao passo que o cético é mais dinâmico que estático.

Pode o dogmático viver em paz e tranquilidade, gozando a suposta certeza da sua fé – enquanto o cético, confessor e mártir do infinito, vive sempre na atmosfera duma dolente e insatisfeita espiritualidade – até que a vivência intuitiva da Realidade lhe dê sossego.

O cético não se acha no ponto inicial da viagem, como o agnóstico; nem no pretenso ponto final, como o dogmático – mas entre o princípio e o fim, entre o “não” daquele e o “sim” deste, em qualquer ponto da jornada. Diz com Paulo de Tarso: “Não tenho a pretensão de ter já atingido o alvo, mas vou-lhe à conquista, a ver se o atinjo.”

Assim, Senhor, era eu naquele tempo bandeirante das tuas selvas imensas, dos teus vastos desertos, dos teus horizontes sem fim...

Dava-me satisfação saber que na direção em que ia estavas tu e estava o teu reino – e enchia-me de dor a distância que medeava entre o termo da jornada e o ponto onde estava...

E assim será sempre, enquanto o meu finito não se integrar no teu Infinito, enquanto este pequenino arroio não desaguar na vastidão do teu oceano. Nem admira que assim seja. Como poderia o finito permanecer tranquilo em face do Infinito?... Como poderia a pedra ficar suspensa no ar quando o seu centro de atração está no âmago da terra?... Como poderia a planta deixar de estender no espaço os sensíveis tentáculos da sua grande nostalgia heliotrópica, quando tão longe está da querida claridade do sol que a chama a si com silenciosa veemência?...

Não me dou por infeliz, Senhor, por ser hoje mais cético que dogmático, mais dinâmico que estático. Creio hoje mais firmemente do que nunca na tua palavra, mas esse crer não é um inerte repousar nem um indolente estacionar. O lago plácido do meuantigo dogmatismo converteu-se em impetuosa torrente de bandeirismo, e essa torrente vai em demanda dos teus mares divinos. Podia eu tomar o meu lago de ontem por um mar – mas nunca a minha torrente de hoje me parecerá o teu oceano, meu Deus. Naquele tempo cria eu em ti e em mim – hoje creio em ti e descreio de mim – isto é, no meu ego físico-mental. Creio no meu Eu divino, que és tu.

Dou-te graças, Senhor, por esta dolorosa inquietude do meu espírito. Não é a inquietude do desespero – é a inquietude duma grande esperança...

Uma coisa apenas te rogo, Senhor: não permitas que eu venha a cair vítima de um ceticismo narcisista; que não me enamore das águas do próprio ego, da venustidade do meu semblante mental. Preserva-me deste perverso masoquismo de eu me deliciar nos martírios íntimos da minha intelectualidade itinerante. Não permitas que eu me intoxique com a entorpecente cocaína da minha nostalgia metafísica, apaixonando-me pela viagem e esquecendo-me do termo da mesma. Sei que esse funesto narcisismo acabaria por me embalar num sono mortífero e sustaria a minha marcha rumo aos teus horizontes eternos...

Sou um bandeirante finito rumo ao Infinito...

O que nos revelaste é Infinito – o que compreendemos é finito. Em face do teu Ser Infinito compete ao homem ser dogmático – mas em face do meu conhecer finito só me compete ser cético...

Vivemos ainda no mundo do “espelho e enigma” – e não no mundo da realidade direta.

Vivemos na atmosfera do símbolo, que é relativo e humano – um dia viveremos na atmosfera do simbolizado, que é absoluto e divino...

E a inquietude do meu bandeirismo dinâmico terminará na quietude de eu me saber na direção certa, embora a infinita distância da meta.

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 97-100)