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6 CIRANDA DE VOZES: CENAS DE EXPERIÊNCIAS E ENCONTROS COM OS DIZERES E ALTERIDADES DA INFÂNCIA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA

6.11 Árvore das infâncias: tudo que nos acontece

Como dito, essas experiências de alteridade distanciam-se das explicações, não terão suas palavras registradas em livros e estudos. Desta forma, como poderíamos nos aproximar?

Sem o interesse de conhecer, retirar, ou modificar nada, mas apenas ouvir, necessitávamos de algo que pudesse realizar esse contato, então, tivemos a ideia de colocar na ambientação uma árvore localizada no pátio desta escola Arco-íris, sozinha, repleta de folhas que mais parecem desenhos, e na verdade são registros infantis, bastante variados, deixados lá pelas crianças da cidade, com intuito de que esta árvore guarde valiosas experiências, pensamentos que partem da infância.

Quando começamos a falar do pátio com árvore no centro, ouvimos as palavras de Luiz: “que aposta que essa árvore gigante fala?”. Não tínhamos atentado para essa possibilidade, mas reorganizamos essa cena neste momento, com a intenção de corresponder a essa expectativa. O que propomos com a existência desta cena é abordar por meio dos acontecimentos que perpassam a experiência, pois como nos traz Larrosa (2006, p. 192), “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Seja na escola ou em outros lugares, são momentos que alojam alteridades e pensamentos.

Em virtude disso, acreditamos que toda escola deixa marcas, não é só conhecimento, são outras, tão importante quanto as aprendizagens, posto que não são apenas as explicações que habitam a escola, existem sentidos que só podemos encontrar na voz infantil, em seus gestos, em suas experiências, sentidos que dificilmente serão normalizados. Portanto, nossa árvore é uma tentativa de proximidade com essas experiências outras. Assim, iniciamos a fala assumindo a caracterização deste NPC:

_Árvore falante (Janice): Bem vindos! Sou arvore das infâncias (boceja), mas estou tão cansada, velha, esquecida aqui, nunca mais vi nem um menino ou menina para guardar suas coisas comigo.

Cassimiro é o primeiro a fazer uma pergunta, ele desejava saber o que a árvore guardava, que elementos eram esses: “Que coisas? De brincar?” Então, respondemos: “Coisas que vocês gostam, coisas de criança que não querem perder, pode ser um desenho, um brinquedo, um amigo, uma história legal”. Deixamos em aberto para que as crianças, por meio de suas vozes, ou qualquer outra maneira de comunicar, pudessem citar o que deveria ser guardado. Luiz assinala um sentido: “as coisas que a gente mais gosta, que vai lembrar quando ficar grande”. A partir de sua fala, entendemos que são as coisas guardadas, levadas consigo, diferente dos conhecimentos pontuais e formais, posto que essas experiências não precisaram ser testadas, explicadas, submetidas à lógica do real; elas podem permanecer intocadas por esses elementos, talvez apenas elas em si mesmas já representam algo. Ainda na fala de Luiz, nos aproximamos

mais do que essas coisas que seriam deixadas poderiam pontuar sobre a infância, nos pomos à escuta de um acontecimento entre ele e seu pai, sobre o compartilhar de um brinquedo:

“Meu pai tem um boneco dele até hoje é um ..deixa eu lembrar.. já sei! Comando em ação! Era feito o lego, tinha um monte para comprar, mas ele era pobre ai minha avó deu só um para ele. Oxe, ele guarda! Uma vez eu peguei, ele tomo de mim parecia menino com raiva”.

Outras crianças se identificam com seu acontecimento. Eduarda revela que sua mãe também possui uma dessas relíquias, de valor inestimável: “Minha mãe tem uma boneca velha. Ela deixava eu brincar, mas quando eu disse que era minha, ela disse que era dela, vixe, tive que devolver”. Percebemos nas falas de Luiz e Eduarda o encontro com fragmentos de outras infâncias, presentes nos adultos, onde a própria condição de adulto passa a ser desafiada por esses fragmentos descontínuos, que representam muito mais do que velhos brinquedos, ou antigas lembranças, rememorando um fato incomum, pontuando que as crianças conseguem encontrar esses achados, momentos, coisas, acontecimentos que dizem para os adultos que eles também guardam suas infâncias, não de uma forma cristalizada como uma lembrança do passado, mas mantêm com elas uma relação mais próxima do que imaginam.

São fragmentos que passam despercebidos, na convivência de muitos adultos e crianças, como algo natural, e sem explicação, fica envolto com o rótulo de passado, boas memórias, mas vendo de um ângulo diferente, tal como pontuam as crianças, há muito mais interesses agregados a esta preservação. Dessa forma também pontuamos um outro acontecimento que está ligado a essa experiência, mesmo sob os alertas de seus pais, revelando o cuidado com esses brinquedos, o desejo de mantê-los para si, para que não se percam, as crianças desejam conhecer mais sobre essa parte misteriosa de seus pais, não se trata de compreender ou atribuir juízos de valores, mas de aproximar-se. Quando se trata de experiências elas vão acontecer, sem tempo ou permissão, pois são expressões de um devir, como nos convidam a pensar Simonneti (2010, p. 7), sobre a insistência desta crianceria, que habita os adultos:

Crianceria é devir [...]. Não é unicamente produto de uma idade, de uma inscrição cronológica (mas cujo modo mais adequado ainda é o infantil- pequeno do humano) [...] Pensar-viver a criança por suas relações constitutivas de devir, pois a criança insiste no adulto (1996, p. 94). Em crianceria, a criança permanece, não é devir-adulto, não se viabiliza na cronologia, na idade, não se desmancha no tempo. Atenta, penso com Katz: crianceria é devir-criança, é criança devindo, é fluxo, ruptura, multiplicidade, que não desaparecem pela metamorfose adulta. Adverte ainda que crianceria resiste aos agenciamentos, é busca sem captura.

Um devir que não se desmancha, que parte inclusive de onde não se espera encontrar. Não se trata apenas de brinquedos, como expõe Alisson: “Meu irmão, casado e ainda fica brigando comigo para assistir Dragon Ball”. Por isso, quando se afirma a diferença entre adultos e crianças, como dois grupos separados, onde um já não tem mais contato com a infância, enquanto o outro parece estar no momento certo, pode parecer confuso, até mesmo uma contradição, como diz Larrosa (2006, p. 197): “Uma imagem do outro é uma contradição. Mas talvez nos reste uma imagem do encontro com o outro. Nesse sentido, não seria uma imagem da infância, mas uma imagem a partir do encontro com a infância”. Nada mais impactante, desbravador que uma criança, posto que para ela inexistem negações, vergonhas, defesa de crenças, por isso, a criança percebe no adulto o que ele não consegue se dar conta, posto que a preocupação em manter sua condição como totalmente alheio dificulta, porém, o poder de uma experiência sob a força do devir, não caem no abismo das metáforas cognitivistas ou etapistas (PROA, 2004). Tal força move-se, e em algum momento, afirma-se, substituindo imagens por encontros, que acontecem sem pedir permissão, ou demarcar um lugar.

Assim, cada um acrescentou às folhas das memórias em nossas árvores o que eles acreditam ser este tipo de experiência, alguns desses encontros com suas infâncias, como pontua Yasmin: “Eu vou deixar na folha a minha boneca, que ganhem da minha avó”. Paulo: “Pode ficar o dia que foi no Veneza!”. Rafael: “O passeio que a gente fez para os bonecos de barro, que Amanda se perdeu”. Brinquedos, filmes, acontecimentos, tudo se mistura dentro desse emaranhado de vivências, que são parte de existências, acontecendo também na escola, relevando que lugar da infância não é fragmentado, preso em imagens do infantil, do adulto, mas é movente, não parte apenas da criança, faz parte de experiências que cada um guarda consigo, sem obedecer aos limites sociais ou culturais.

Além de guardarem nas folhas dizeres sobre algumas percepções que possuem sobre esse outro adulto, principalmente em relação a suas infâncias, ainda expõem acontecimentos vivenciados na escola com os amigos, conforme assinala Rafael, acerca do passeio no Alto do Moura, também acrescentando à folha uma vivência que teve com seus amigos, aqueles que encontrou na escola, que também é o espaço dos encontros com o outros, de arte de criar amizades. Sobre isso ainda nos fala Proa (2004, p. 16): “Trata-se de uma arte, arte de nada por a serviço da nossa vontade. Arte de reconhecer que o próximo é um desconhecido, de reconhecer em nos mesmos aquilo que nos permite continuar sendo outros”. Essa arte, descrita por Proa (2004), também tem lugar na escola, nas experiências infantis, importantes o suficiente para permanecerem na árvore das infâncias.