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4 PESQUISAR COM CRIANÇAS: SUJEITOS, ESPAÇOS-TEMPOS E O JOGO RPG

4.7 A infância: um convidado impertinente

Nossa presença passou a ser dividida entre dois momentos: a criança na sala de aula e a criança no intervalo. Nesse ponto gostaríamos de tecer duas considerações, pois apesar de falarmos das mesmas crianças atentamos para existência de dois tempos, um onde a infância é convida a sair, e outro, onde é convida a existir, e depois deve ir embora, como se ela pudesse realmente ser interrompida, desligada e acionada. Com base em uma convivência quase diária, fomos deixando de ser as outras professoras, podendo, assim, olhar nos olhos, saindo um pouco do rótulo de professora estrangeira, para tia curiosa26, segundo a obstinada percepção de Cassimiro, que ao ouvir sobre pesquisadoras, nosso papel na escola, deu um novo significado a essa nomenclatura.

Essa convivência, sob o prisma da tia curiosa, nos relevou que tínhamos um tempo cronológico, disciplinar, decorrido na sala de aula, e tínhamos uma variante, traduzida como recreio, um tempo de experiência e alteridade. Tal constatação nos remete aos estudos de Walter Kohan, sobre a cronologia imposta à infância, onde, geralmente, costuma-se fazer medições,

26 30/08/2016 - aluno se vira alguns minutos antes do recreio e faz uma importante observação sobre nossa presença. “Já sei quem a senhora é, a tia curiosa, veio para pesquisar a gente?”. Não pude deixar de concordar, pois, de fato, tia curiosa pode realmente ser associado a uma atividade de pesquisa na escola.

declarando seu começo, meio e fim, dando margem para as fases de desenvolvimento, conforme descreve Kohan (2007, p. 85), analisando o fragmento 52 de Heráclito:

O intrigante fragmento 52 de Heráclito conecta esta palavra temporal ao poder e à infância. Ele diz que "aión é uma criança que brinca (literalmente, "criançando"), seu reino é o de uma criança". Há uma dupla relação afirmada: tempo- infância (aión - paîs) e poder-infância (basileíe - paîs). Este fragmento parece indicar, entre outras coisas, que o tempo da vida não é apenas questão de movimento numerado e que esse outro modo de ser de temporal parece com o que uma criança faz. Se uma lógica temporal segue os números, outra brinca com os número.

De acordo com Kohan (2007), lidamos com um tempo numérico, enquanto a criança abre uma fenda, ampliando nossa compreensão para um tempo de experiência, um aión, que também tem espaço na escola. Identificamos esse momento de forma mais intensa no intervalo. Na medida em que tornava-se mais próximo, a inquietação das crianças cresce, sua ansiedade aumenta, conforme apresentamos nesses dizeres:

Ewerton (8 anos), demostrava esta inquieto em seu lugar, e sempre se esticava para olhar para frente, ou tentava observa os lados, até que resolveu falar “Tia me bote na frente que a cabeça de Daniel não está me deixando ver nada hoje. Na outra fila Jacson (9 anos), lança a professora uma pergunta “Já tá perto do recreio?. Alguns poucos minutos depois, surge a queixa de “Ewerton”: O meu dedo tá doendo tia, é muita tarefa. Logo é acompanhado por Yasmin (9 anos), que reforça sua fala dizendo “Acaba mais essa tarefa não é?” (Diário de campo- 24.08.2016).

Algumas perguntas são respondidas, outras se renovam com olhares, mas o interessante é que elas não cessam, mesmo que a professora tome a mesma atitude em dias diferentes, o que acontece é uma mudança de perguntas, que continuam, se renovam, simplesmente eclodem, não há um controle bem sucedido, pois coabita neste espaço a resistência, uma recorrência do aión. O passar das horas resume em expectativa, alegria, negociações de brincadeiras, escolha de times, observo um deslocamento para uma outra realidade, apesar de ainda estarmos sentadas no mesmo lugar. A sala de aula com bancas, quadro, um adulto professor e guardado, abre-se à caixa de pandora27, cuidadosamente travada pela professora, repleta de “males”, como “falar fora de hora”, “passear na sala”, “desenhar” e “brincar”; convida-se à infância. O clima de descontração, de maior suavidade, já pode ser notado na hora do lanche; pudemos registrar as trocas de alimentos, as conversas.

27 Caixa de Pandora é um artefato da mitologia grega, tirada do mito da criação de Pandora, que foi a primeira mulher criada por Zeus. A "caixa" era na verdade um grande jarro dado à Pandora, que continha todos os males do mundo. Pandora abre o jarro, deixando escapar todos os males do mundo, menos a "esperança" (BULFINCH, 2002).

Diante das observações, pudemos registrar a importância desse momento de “impertinência”. Esse lugar que parecia uma feira em miniatura é cativante, acolhedor, seja criança, seja adulto, não importa, pois o momento é de todos. Não tínhamos uma lancheira, não levamos alimento, era hora de comer e não estávamos comendo, não demorou muito para receber algumas ofertas por parte do grupo. Tal percepção das crianças são descritas em alguns relatos mitológicos da antiguidade greco-romana, como, por exemplo, o mito “Latona e os Camponeses”, de origem latina, relatando a passagem desta deusa por uma lagoa, onde solicitou dos camponeses permissão para saciar sua sede. No instante de sua súplica, admirou-se por ver crianças estendendo os braços para ela, enquanto os aldeões consideraram sua rivalidade com o deus Juno, conforme aborda Bulfinch (2002, p. 48-49):

Por que me recusais a água? — ela perguntou. — A água pertence a todos. A natureza não permite que ninguém reclame direitos de posse sobre a luz do sol, o ar ou a água. Venho compartilhar do meu direito a um bem comum. Peço-vos, no entanto, como um favor. Não pretendo lavar nelas meus membros, por mais extenuada que esteja, mas apenas matar minha sede. Tenho a boca tão seca, que mal consigo falar. Um gole de água será o néctar para mim; há de reviver-me, e ser-vos-ei grata. Possam estas crianças, que estendem os bracinhos, como que pedindo por mim, mover-vos à piedade! Realmente, as crianças, enquanto ela falava, estendiam os bracinhos. Quem não se comoveria com estas ternas palavras da deusa? Mas aqueles rústicos persistiram em sua rudeza; chegaram a acrescentar insultos e ameaças de violência se ela não abandonasse o local.

Percebemos que nossa presença foi se desmesurando, do que seria o professor, que lancha separado, que supervisiona, para aquele adulto que está lá, não é tratado como criança, mas não é afastado por ser adulto; estávamos parcialmente em contato. Trata-se de um acolhimento sem perguntas, que nos recorda Derrida (2003), quando põe em evidência a questão da hospitalidade, do estrangeiro que solicita o acolhimento, sem perguntas, sem exigências, sendo acolhido entre o grupo, por sua condição existencial, antes de qualquer interesse prévio. Acerca desta acolhida, deixamos aqui algumas palavras:

Maria Clarice (9 anos): A senhora esqueceu o lanche?

Janice: Sim, mais amanhã eu vou trazer, ai podemos dividir, fica bom assim?

Maria Clarice (9 anos): Oxe tia, precisa não, olha quanto a senhora ganhou ai..se todo der um biscoito, pouquinho de pipoca, suco, salgadinho a senhora vai comer muito.

Lucas (8 anos): Não pode comer muito, senão perde o almoço. Eles riram, espontaneidade preservada, em cada olhar, em cada sorriso (Diário de campo - 22.08.2016).

Nesse tempo de 20 minutos observamos a organização das crianças, suas divisões em brincadeiras e negociações, agora não há mais o “shiu” e barulho não está mais proibido; iniciam-se as brincadeiras de corrida, os grupos se formam, todos parecem encontrar seu lugar e ao mesmo tempo brincam juntos. Nossa presença no pátio foi nos primeiros dias solitária, apenas acompanhando as brincadeiras, porém, aos poucos, alguma criança nos mini-intervalos criados por elas, sentava-se ao nosso lado, então formulava algumas perguntas;

Joseildo (9 anos) – “O tia, vai olhar a gente?” Breno (10 anos) - “vai ter brincadeira?”

Lucas Nicácio (8 anos) - “A senhora vem todo dia para olhar a gente é?”

Rafael Henrique (10 anos) - “Tia tá brincando de espia” (Diário de campo- 22.08.2016).

Diante dessas perguntas que se repetiam por diversas vozes e curiosidades, em vários momentos de nossas observações, aproveitamos para falar do RPG, que tínhamos o interesse de criar uma brincadeira com eles, um jogo, mas que seria diferente daqueles que são feitos na escola, e que todos poderiam participar, incluindo nós. Assim, Breno pergunta novamente: “A senhora vai jogar nesse jogo?”. Quando respondemos que sim, mais inquietações surgiram. Lucas: “Oxe, no jogo que tia faz só joga a gente, ela fica olhando”. Sendo assim, falamos do RPG, como um jogo de crianças e de adultos, também poderia ser de idosos, pois o mesmo não respondia a um tempo cronológico.

Nossa colocação sobre um tempo de brincadeira também para adultos os colocou em suspenso, percebemos pelo repentino silêncio, pelos olhares trocados. Diante desta suposta incredulidade, recordamos do capítulo dois da obra Infância e história: destruição da experiência e origem da história, escrita por Giorgio Agamben, que nos remonta ao país dos brinquedos. Desta forma, inicia com a parábola do romance de Carlo Collodi, aclamado mundialmente por crianças e adultos; trata-se de Pinóquio, um relato sobre o país da fantasia, onde tudo é possível.

Uma terra onde as palavras, os ritos, tudo que nela acontece não obedece a um sentido, não tem obrigação de transmitir uma razão, um conhecimento técnico, mas, ao contrário, lança um convite ao desprendimento, onde supostamente apenas as crianças em idades menores podem acessar, mas o fragmento exposto por Agamben (2005) indica uma guinada no tempo, misturando as idades dos garotos, descentralizando a própria regra, o mesmo se passa com o personagem Peter Pan, no filme “Hook a volta do capitão gancho”, baseado no clássico de James Matthew Barrie.

Com essa perspectiva dialogamos com as crianças sobre a presença de adultos nas brincadeiras, nos jogos, recordando uma frase de Agamben (2005) quando fala dessa característica dos adultos, ao dizer que “Os homens continuam na verdade, a inventar jogos” (p. 85). A fantasia não pode viver fora do mundo adulto, ela sempre se manifesta, no desejo da ficção, da literatura, em outros canais de propagação, incluindo também os jogos, tais como RPG, a ligação com um brinquedo especial; todos esses indícios nos auxiliaram a dialogar com as crianças, sobre um adulto que guarda sua infância.

Porquanto, apresentaremos na seção seguinte nossas cenas do RPG, que carregam traços do que discutimos até esse momento, dando continuidade a esse pensar, que envereda pela presença do adulto na ficção, nas brincadeiras, não como mediador, aquele que guia os passos de um jogo ou conta uma história, mas como alguém que encontra sua infância, reencontrando fragmentos, como nos fala Cirino (2016, p. 42): “não sabe onde vai chegar, as paisagens e nuances do caminho vão se revelando a cada curva, a cada movimento em que o ser da experiência resiste, atravessa, faz trilha e determina, a partir dos fragmentos que encontra (...)”, esse não saber que alimenta uma trama de RPG, que se funde às fantasias de crianças e adultos no mesmo emaranhado de experiências.

5 TECENDO CENAS NA AMBIENTAÇÃO DO RPG: O JOGO, UMA