• Nenhum resultado encontrado

QUADRO 3 MAPA PRODUZIDO A PARTIR DAS VIVÊNCIAS DO JOGO.

5.9 A vila dos solitários: para onde foram as memórias de crianças?

Assim os adultos aceitam fazer-se larvas para que as larvas possam tornar-se mortos e os mortos, fazem-se crianças para que as crianças possam tornar-se homens.

(AGAMBEN, 2005, p. 47).

A vila foi criada com a intenção de abordar, dentro do RPG, o contato com uma situação de ausência de experiência, de ausência de alteridade. Trata-se de um lugar onde a experiência já não é possível, pois em seu lugar acontece o que Lima e Magalhães (2010) dialogando com Walter Benjamim caracterizam como erlebnis38, uma experiência inautêntica, que visa substituir a experiência autêntica, trazendo um sentimento de solidão, isolamento, incapaz de abrigar alteridade. Erlebnis é um conceito que expõe como a nossa sociedade atual vem desenvolvendo um tipo de pobreza, que não se caracteriza exclusivamente pelo acesso a bens de consumo ou tecnologias, mas relaciona-se com a substituição de experiências autênticas pelas imagens delas (BENJAMIN, 1987). Essas experiências são passageiras, não atribuem memórias, e trazem sensações momentâneas de pertencimento a um determinado grupo ou

38 Para Walter Benjamin, a pobreza da experiência na Modernidade consistiu na impossibilidade de erfahrung (experiência autêntica), ou seja, na impossibilidade da elaboração e comunicação da experiência coletiva, visceral, prenhe de um amplo ordenamento cognitivo do mundo: “a erfahrung (experiência autêntica) é uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra [...] o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo” (KONDER, 1988, p. 72). Em suma, a ausência de erfahrung (experiência autêntica) evidencia um modo de perceber e de sentir próprio da Modernidade. Segundo o autor, a experiência, nos tempos modernos, foi substituída pela erlebnis (experiência inautêntica) – a vivência do indivíduo isolado (LIMA; MAGALHÃES, 2010, p. 147).

contexto, mas que na verdade quando se vão deixam um lugar vazio, como se nunca tivessem acontecido.

Os habitantes da vila encontram-se imersos nessas tramas do erlebnis, assim, no rumo desta ausência, contamos com o grupo de crianças para desvendar esse mistério, também nos dizer quais as suas reações, pensamentos, como elas filosofam a falta de alteridade, de momentos de experiência. Tendo em vista que já iniciamos essa abordagem com a cena anterior, agora apresentamos o que seria a impossibilidade do erfahrung, considerando que o grupo partilha de uma condição completamente oposta a essa lacuna diagnosticada pelo filósofo, possui um porvir, que pode assinalar a reinvenção desta condição de pobreza.

A vila foi pensada como um lugar em dois acontecimentos, as casas são acolhedoras, o lugar possui praças e pontes, e aparentemente corresponde ao que foi dito pelas crianças sobre espaços que pudessem favorecer mais a experiência do encontro, porém, chamamos atenção para existência de muitas crianças nesta vila, o que não aconteceu durante toda passagem pelas outras cenas. Todavia essas crianças parecem tristes, não interagem, pelo contrário, se escondem logo que percebem que o grupo chegou à vila. Elas não conversam entre si, as palavras trocadas são poucas, ditas em murmúrios, para que o grupo de participantes não possa ouvir. Na descrição desta cena realizamos uma inserção no cenário, alertando para uma praça com muitos brinquedos, mas nem um deles é utilizado, tudo está parado, no lugar de brincadeiras existe apenas um mural de fotos, de outro tempo. Outro ponto curioso é que algumas parecem fingir brincar, e outras tiram mais fotos para colar no mural.

Cena nove: A pequena vila fica dentro da floresta, ela é cheia de vaga-lumes, tem lindas casinhas que vão se misturando as colinas, com ruas de cascalho (paramos aqui, a descrição da vila foi incorporando elementos do pensar infantil). Soma-se praças com brinquedos, também uma fonte no centro, locais onde é possível correr e passear. Inicialmente começamos com uma pequena ideia de um povoado, as crianças conseguiram montar mais do que isso, uma mini cidade, do jeito que gostariam que fosse.

Por tal característica peculiar desta cena, criamos mais um NPC para socializar com o grupo, na figura de uma menina, que podemos inserir em qualquer parte do cenário, após as percepções dos participantes. Milena, o NPC criado, revela mais sobre os poderes e o pensamento deste dragão. Na concepção de Milena, antes era melhor, havia brincadeiras de verdade, mas depois de Basik tudo ficou igual, estático, substituindo por imagens, logo nada novo acontece. O encaminhamento desta cena alude a algumas palavras de Skliar (2008), ao reiterar o desconforto, a sensação de vazio que corresponde à tentativa de subtrair infâncias, dar-lhes outros rumos: “Quando subtraímos as crianças da infância, também algo se perde, se

evapora. E em ambos os casos permanece um certo gesto de desgosto e desconforto” (p. 16). Milena consegue perceber que antes era melhor do que agora, mas seus amigos continuam reproduzindo os males do feitiço provocado pelo dragão.

Cena dez (Milena): Basik diz que ser criança não é legal, a gente acaba muito, como é que ele disse a minha mãe, hummm, deixa eu lembrar, lembrei!. Iludidos, bobos, sem graça, fora de moda, que toda aquela meninice, sabe? Coisas que só agente faz, sonhos, que só a gente parece ter, nomes que a gente inventa, tudo isso não serve para ser adulto, uma perca de tempo total. Nossos pais ficaram loucos de preocupação quando ele disse que estávamos todos doentes, que essas doença veio lá de Arken até aqui, pois um bruxo muito mal chamado Soso fez isso com a gente. Olha, posso dizer uma coisa a vocês, eu não me acho nada melhor, mas meus pais falam que Basik é um dragão, e os dragões sabem o que dizem, eles são sábios, mas do que os bruxos. Ele fez isso usando um feitiço! Ele saiu daqui cheio de garrafas esquisitas levando coisas brilhosas dentro, depois.. pronto, a vila ficou assim, cheia de fotos, para todo lado, gostaram? Eu preferia as coisas de antes.

Milena conta suas angústias sobre crenças na incapacidade das crianças, nos perigos da infância, premissas que fazem alusão à concepção de infância dos escritos da modernidade, ressaltando também a questão da solução, de uma possível cura que seria ofertada pelo Dragão, algo que poderia ser ofertado aos adultos para que pudessem salvar as crianças, conduzi-las melhor. Gostaríamos nesta cena de privilegiar esses aspectos e ouvir o que dizem as crianças sobre esses pensamentos, tendo em vista que a voz infantil, o pensar, até mesmo nas referências contemporâneas não participa significativamente destes debates, iniciando timidamente um processo de ascensão em nossa época.