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6 CIRANDA DE VOZES: CENAS DE EXPERIÊNCIAS E ENCONTROS COM OS DIZERES E ALTERIDADES DA INFÂNCIA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA

6.3 Pensares da infância: um jardim em criação

Na continuidade deste primeiro encontro assinalamos o que emergiu após a passagem do escuro. Com isso retomamos ambientação, realizando a leitura da terceira cena, não utilizamos imagens, descrições, mencionamos apenas que era um jardim, posto que nossa intenção concentrava-se em uma incursão autônoma das crianças:

_Julia: Tá, saiu do escuro, e agora?

_Eduarda: Oxe, era uma escola, agora é um jardim, depois vem o que? _Janice: Eu queria saber, mas preciso que vocês me digam o que estão vendo, até para eu saber o que tem aí.

O dizer de Julia revela surpresa por estar em outro lugar. Podemos acrescentar que a inserção de Rafael nos deu esse movimento diferenciado, posto que escrevemos algumas cenas para servir como ponto de partida, mas não criamos uma ideia do que seria todo o jogo, tendo em vista que essa não é a história a ser contada, preenchida por cenas narrativas, mas consiste em um diálogo. Desta forma, nosso olhar também é modificado, passamos a ver a cena como se fosse real, com suas minúcias e pequenos detalhes com ajuda das crianças.

Assim como o escuro, queremos expor nossa percepção sobre essa arte de introduzir começos, de mobilizar o porvir, assim como frisa Kohan (2003, p. 250): “Essa infância é uma figura do começo, no sentido de uma imagem que abre a possibilidade de um porvir aberto, inesperado, inesperável, segundo a lógica prévia à ruptura que ela introduz; um porvir

insuspeito, insólito”. O encantamento que resplandece neste porvir é acompanhado por rupturas, sustentando-se apenas em seus conceitos, desfazendo imagens fixas, nos contagiando com essa arte de recomeçar. Seguindo essa trilha, o próximo movimento foi a composição do jardim. Aqui cabe uma relação com algumas lembranças literárias nossas, tais como “Alice no país das maravilhas”, e o “Mágico de OZ”, considerando que pelas linhas ainda não escritas da infância, algumas de nossas memórias foram evocadas:

Kaune: Esse jardim tem casas, gatos, grama.

Yasmin: Tem um lago com peixes que pulam na grama. Cassimiro: Tem sereia nele!

(Risos)

Cassimiro: Também tem moto

(fazendo o barulho dele em uma moto) Eduarda: Não pode falta rosa

Julia: Nem aquelas amarelas também. Luiz: Girassol!

Carlos (grupo 2): Tem pé de manga tia? Janice: Sim, tem pé de manga!!

Carlos: Vou usar o poder para subir neles e pegar!

Podemos fazer uma imersão nas leituras sobre a importância da fantasia para as crianças neste ponto, mas quando nos deparamos com essas vozes e suas fagulhas de criatividade notamos que tudo que podemos ler ou dizer da nossa compreensão, do que é a fantasia, a imaginação vai estar incompleta, pois a infância nos move no rumo de uma força disruptiva que cinge pensamentos como suscita Kohan (2003), que impulsiona a própria fantasia até a sua origem. No limiar desta existência refletimos acerca de um universo capaz de eclodir desta condição, pelos entremeios da imaginação, vários pensamentos se cruzam. Por isso, ensejamos a fantasia, o movimento do imaginar como um dizer da infância, característico de forma singular para cada criança, como expressou Cassimiro ao relatar sobre o palhaço, Rafael com seu escuro.

De um modo peculiar, destacamos a experiência infantil como portadora de uma condição antagônica ao experimento, que se afasta da reprodução de suas vivências, da fabricação de si mesma, que presa pela fantasia em qualquer tempo e pensamento, sem perder o manejo da criação, que não separa experiência e fantasia. Agamben (2005, p. 34) pontua o perigo de expropriar da experiência a fantasia: “A expropriação da fantasia no âmbito da experiência lança, porém, uma sombra esta última”. Todavia, uma experiência infantil é tão rica deste componente que não corre o risco de ser abalada por essa cisão, ao contrário do nosso tempo, onde a ideia de experiência precisa cada vez mais do apoio da tecnologia, de uma

fantasia projetada esquecendo do próprio sentido dos acontecimentos. São as crianças que nos mostram todos os dias acontecimentos que nos levam a refletir sobre esse possível esgotamento da fantasia enquanto origem, criação de si mesma.

As crianças exercitam tal arte esculpindo suas experiências, sobre esse potencial recordamos uma fala de Paulo: “Brincar não precisa de brinquedo”. Esse dizer nos afeta, nos move a pensar na fruição desta potência, onde torna-se necessário mais que um espaço físico, mais do que grandes avanços tecnológicos, brinquedos de última geração, é preciso sentir, criar, pensar, para de fato viver uma experiência de alteridade. Nisso, as crianças, sua condição, assinalam grandes ensinamentos, pois, se um jardim inteiro nasce em uma sala e nele abriga dizeres, sentimentos e percepções, muito mais pode ser feito. Com efeito, o que pode ser absurdo para o real é contrariado pela imaginação e seus abissais poderes carregando um incêndio de criações, onde o que importa é nunca parar de criar, pois o novo é um alimento do pensamento sem imagens. Fantasiar é um dizer infantil, que fica latente em nossa existência por toda vida, misturando-se à nossa infância.

Enganar-se-á a ideia de que o tempo, as atribuições, o suposto abandono da infância, estancam a fantasia, apagam essa fagulha; basta alguns encontros, onde a intenção não seja afirmar nossa posição frente à condição infantil, para nos deixar guiar, recordando muito do que achávamos estar perdido no baú de memórias. Então, podemos assinalar que na fantasia deles, acabamos encontrando a nossa, esse porvir de começos, como evidencia Kohan (2003), também age sobre nossas crenças e certezas. Assim, o passeio no jardim recebe um visitante, o mago Soso, um NPC criado na ambientação inicial para se aproximar das crianças. Soso carrega um pouco da nossa imaginação sobre ele; podemos dizer que nos baseamos no conhecimento adquirido ao longo dos filmes, séries e livros. Então colocamos um esboço disso para as crianças, nesse encontro de dois mundos, compreendemos que existem outras formas de pensar em um mago, de exercer seu poder, nossa descrição submetida à visão ficcional delas foi reinventada, como dito por algumas dessas vozes;

Janice: Como é esse mago?

Lucas: Roupa preta e tem gorro preto.

Yasmin: Todo atrapalhado parece com aquele da princesa Sofia. Tem capa roxa. Vem voando. As mágicas dele da tudo errado.

Rafael: Grandão, capa roxa, com essas roupa preta, é fico bom.

A cor da roupa, o estilo do chapéu, seu tamanho, haviam sido visualizados por nós com as lentes descritas, porém o nosso estilo passou por uma reformulação. Digamos que o nosso conceito sobre esses personagens das histórias e filmes foi tocado, desmontando; o que achamos

que seria próximo das crianças não era; na verdade, possuía outra direção. Eles nos mostraram um mago atrapalhado, que não realiza bem suas mágicas, ao invés de um adulto sábio que leva artes mágicas às crianças.

A roupa preta pontuada por Lucas surpreendeu, pois, naturalmente, acredita-se que magos são sempre coloridos, apenas bruxas usam preto, mas no relato de Lucas, vemos o quanto pode expor uma diferença do que é convencionalmente reproduzido. Esse alerta nos diz que as crianças produzem criações e não imagens, elementos como brinquedos, personagens, filmes são apreciados por elas, mas nunca absorvidos, substituindo sua fecunda fonte de inovação, ao mesmo tempo em que a imaginação pode redesenhar aquela ideia, criando outra, provocando uma diferença. Por isso o que chamamos de coisas da infância, estabelecendo crenças baseadas em nossas experiências, pode não ter o sentido esperado, o famoso “eu sei disso”, não se sustenta diante da heterotopia desta condição (CARVALHO, 2016, p. 77), tendo em vista que o adjetivo “infantil” não é capaz de dar uma identidade fixa, ou responder com univocidade a todas as suas ramificações e pensamentos.