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QUADRO 3 MAPA PRODUZIDO A PARTIR DAS VIVÊNCIAS DO JOGO.

5.10 O jogo filosofia: uma tentativa de conquista

Eis que surgem gritos isolados e apaixonados. Como não seriam isolados, visto negarem “o que todo mundo sabe.

(DELEUZE; GUATTARI, 2006, p. 191).

Nesta cena nos aproximamos de um final parcial da nossa narrativa, posto que não se pode finalizar um jogo de RPG, tudo que é feito dentro de sua ambientação é passível de ser retomado pelo mestre ou por qualquer participante. Assim, o grupo se encontrar com as crianças que não percebem que tiveram suas infâncias roubadas, trocadas por imagens passageiras, que não desenvolvem o sentimento de pertencimento, tão pouco as toca. Todavia, por meio de Milena, elas conheceram essa realidade, interferindo nela. Neste ponto da narrativa, chega a hora de conhecer o temido dragão colecionador.

A despeito de Basik, como uma adesão ao jogo, demarcaremos algumas indagações, que ainda cintilam em nossos pensamentos, voltadas para a prática de um filosofar que desvela- se na audição das vozes infantis, na experiência de suas palavras (SKILAR, 2012). O dragão como revelado no cenário não usa poderes para realizar seu objetivo, valendo-se do diálogo com suas vítimas, onde seu maior trunfo é o conhecimento, além da crença de seu saber pelos habitantes de Arken.

Ele sempre possui uma resposta para todas as perguntas, tornando-se, assim, o mestre das imagens do pensamento, quando, na verdade, o que mais o assusta é o novo, inconcluso, ou seja, o filosofar em movimento, não controlado ou estático, que emana na alteridade, configura- se como o pai de todos os seus medos. Pensamos para essa cena o encontro das crianças com o dragão. Ao contrário dos sapos que receberam certos conhecimentos que os faziam acreditar nas ausências da infância, Basik é a fonte destes pensamentos no mundo de Arken; por sua vez, almejamos dialogar com as crianças, ouvir o que elas podem nos dizer quando recebem esses argumentos diretamente.

Cena onze: O que posso dizer de Basik é que como todo dragão ele não é pequeno, mas é muito, muito grande, com asas enormes, e claro, ele é bem feroz! Sem esquecer o fato dele ser o último dragão de Arken. E gosta de viver sozinho em sua montanha, não gosta de ser incomodado, é bastante conhecido, também por ser um colecionador de coisas preciosas. Depois que seu feitiço deu certo, ele capturou as infâncias de toda Arken, alegando para todo mundo que isso era uma doença, mas como nada pode ser tudo, sempre falta um pouquinho, as infâncias dos sapos escaparam, se esconderam em suas sombras, e também eram muito travessas para ficar paradas em uma garrafa, na lógica de Basik. A caverna de Basik ficou muito bonita, pois tinha muitas garrafas brilhantes espalhadas por elas, cada uma foi a infância de alguém de Arken. Quando seu corpo grande, escamoso se ergue, a parte de dentro da sua caverna vai ser revelada, lá, onde existem algumas garrafas.

Embora sejam os adultos que se apegam a perspectivas culturais, comportamentais das crianças, desejávamos escutar o que elas podem contar sobre algumas dessas premissas, além da forma como agem. Com isso, revelamos o anseio de Basik, sua tentativa de controlar a todos, até os estrangeiros que chegam desavisados, impedindo o filosofar, a criação de conceitos. Distribuindo imagens do seu saber, o grupo precisaria ficar atento às manobras de suas palavras, ou poderiam acabar tendo o mesmo destino dos primeiros visitantes.

Por essa lógica predatória, esse personagem vai tentar barrar, interromper, guardar, tudo que as crianças pensam sobre sua infância, o pensamento delas sobre si, sobre o mundo. No seu entendimento doutrinário, infância e filosofia são dois polos ambíguos, o primeiro é incapaz de exercer a razão sobre qualquer ação, e o outro pertence ao lócus do conhecimento secular, que

só pode existir no exercício enciclopédico, teorizável, algo que não faz parte e nem rima com infância. Nesta clave, a pergunta “as crianças filosofam?” receberia um não, dificilmente conseguiriam, lhes faltaria discernimento para alcançar esse saber. De fato, nessa compreensão canônica da filosofia, uma eterna repetição de si mesma, com a qual se mantém uma relação mais afastada da experiência, o filosofar encontra-se entre limites.

Todavia, pontuamos com o pensamento de Kohan (2010) um devir característico do filosofar, que diz algo para essa forma de compreender a filosofia. Esse devir torna-se mais próximo desta infância germinada pela meninice, enquanto alteridade e estranheza, filosofar e pensamento. Parece-nos que por esse viés assinalado por Kohan (2010), filosofia não é pragmatismo, possui gritos que negam verdades, capaz de surpreender o dragão e junto à infância podem até mesmo virar esse jogo, que supostamente para ele já foi vencido.

A filosofia escapa a todas as pretensões de captura, inclusive as que surgem desde a própria filosofia. Como conceito e como instituição ela resiste ás pretensões de seu fechamento, de sua totalização ou universalização. Não há como encerrar em um único lugar a filosofia e sua prática, seu movimento histórico, seu devir intempestivo, o que se faz em seu nome (p. 157).

O segredo, então, seria considerar tal devir para repensar o “não”, dada a pergunta sobre possibilidade e impossibilidade do filosofar com as crianças, para que o mesmo possa ser riscado; porém, não se trata de intuitivamente substituí-lo com apenas um sim, mas a partir da audição das vozes nessa cena, daquilo que nos será dito na conversa com o dragão, vislumbrar o quanto esse sim pode ser ampliado, sussurrado de várias experiências e diferenças, assumindo que “poderíamos encontrar uma infância da filosofia em lugar de ocupar-nos tanto da filosofia da infância. Falaria, pois, de um novo início, de um novo começo, em suma, de uma nova filosofia” (KOHAN, 2007, p. 29). São esses pensares que sustentam esta cena, nos brindar das faíscas de novidade, crepitantes das chamas do devir criança, como um filosofar a própria filosofia, a própria sabedoria, exercendo alteridade em todos os momentos de voz, redesenhando palavras, fazendo surgir os gritos que negam as verdades, como bem pontuam Deleuze e Guattari (2003), em seus escritos. Na próxima cena, as perguntas com supostas respostas prontas serão lançadas às crianças, onde o “tudo” que alega Basik poderá ser desafiado pela exterioridade, por aquilo que está à margem, justamente a voz desconhecida das crianças.

Cena doze: Basik, vai dar a volta nas crianças, ele usa seu poder para manter sua atenção nele (fazer os teses com dados, para testa as resistências). Talvez uma boa conversa, alguns pedidos possam resolver essa situação. - Olá meus

pequenos, como estão? Foi longa a viagem? Em que posso ajudá-los? - Crianças, podemos jogar o que eu chamo de filosofia? Sim, filosofia, o jogo da verdade e da sabedoria. Ele é assim, eu vou dizer o que penso, tudo que é a infância, e vocês só podem me vencer se conseguirem escapar das minhas verdades, não adianta inventar coisas, eu tenho como saber, lembrem, eu sei de tudo, minha razão é superior a de vocês. Vamos começar? Ahhh, e claro, se vocês vencerem podem ficar com seus amigos.

Essa é a primeira cena do jogo proposto pelo Dragão, onde a única certeza é sua “sabedoria”, posto que seus argumentos são revestidos de supostos conhecimentos sobre a infância, assumindo pensamentos baseados em interpretações dadas à infância em diferentes períodos. Porém, o filosofar das crianças sobre coisas impensáveis para o dragão o colocou em dúvida, e assim, toda sua argumentação perdeu o sentido de ser; a tal vitória certa foi dissipada pelos sussurros da infância. A forma como aconteceu com as vozes das crianças compõe toda esta cena, por isso alertamos que apresentamos um fragmento inicial nesta parte, sua totalidade encontra-se no decurso do jogo.