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4 PESQUISAR COM CRIANÇAS: SUJEITOS, ESPAÇOS-TEMPOS E O JOGO RPG

4.6 O espaço tempo da escola: aproximações e experiências

O primeiro contato com a instituição consistiu em uma aproximação mais intensa com a professora Rosewhip, a qual gentilmente nos possibilitou esse estudo, partilhando do seu espaço, seus saberes e, sobretudo, a abertura para que pudéssemos nos aproximar das infâncias, dos seus pensamentos. As primeiras vivências também foram marcadas por conversas aleatórias sobre nosso estudo e os objetivos desta pesquisa, além de outras informações que nos foram solicitadas pela instituição. Após o esclarecimento de nossa presença, obtivemos alguns relatos dos docentes sobre dúvidas e algumas incertezas sobre o nosso estudo. Sendo assim, alguns docentes questionaram a capacidade das crianças de participar diretamente de uma pesquisa, considerando se tratar de um estudo de pós-graduação em nível de mestrado; serviram de alegações: a falta de discernimento das crianças; interesse delas; até mesmo a confiabilidade de suas vozes para expor o que seria necessário para uma possível análise dos dados.

P1 “É a primeira vez que vem alguém, logo do mestrado interagir direto com as crianças, sem questionários e entrevistas com a gente. P2 “Então, os professores só vão observar? Não vamos responder nada, ou fazer entrevistas? (Diário de campo -10.08.2016).

A partir destas falas, rememoramos um pensamento de Gallo (2010), acerca da descrença nas crianças, em virtude de suas infâncias, que nos deparamos em seus espaços de acolhimento, ao mesmo tempo que pontua outros fluxos, indicando que não se trata de uma indisposição dos educadores, de todos que compõem a escola, mas é uma questão de olhares, de escuta, posto que para ver, ouvir, sentir a potência desbravadora da infância, seu filosofar, é necessário mudar a forma como se percebe a criança, tanto no olhar como escuta de suas vozes. As crianças não estão na escola alijadas de sua força, de sua potência. Vivem e sofrem os jogos de poder postos em marcha na instituição, mas certamente não estão alheias a tais jogos. As crianças vazam na escola outros fluxos. A questão é que nem sempre estamos preparados para ver, para compreender as crianças como sujeitas de poder, não atentando para suas ações (KOHAN, 2010, p. 117).

O estranhamento manifestado em nossa primeira conversa indicou a prevalência de um pensamento sobre as supostas ausências das crianças. Por isso dialogamos com os docentes, explicando novamente nossa proposta. Após esse momento recebemos permissão, mediante

assinatura dos documentos solicitados pelo programa (PPGEDUC). Desta forma, podemos frequentar a instituição semanalmente, acompanhando as turmas da professora Rosewhip, 3º e 5º ano do Ensino Fundamental I, observando também a culminância do projeto.

Nossa observação nesta turma teve início no dia 18/08/2016; nesse primeiro momento julgamos necessário apenas acompanhar. Os primeiros encontros foram marcados por olhares curiosos, além da crença de que a pesquisadora participaria do cotidiano da turma como outra professora. A recepção dos alunos foi envolta nesta certeza, e a partir do momento que a docente ofereceu uma posição ao seu lado, colocando uma banca próxima ao birô, as crianças nos reconheceram como professoras visitantes, posto que assim fomos apresentadas pela professora.

Tendo em vista que essa não era nossa intenção, definir um lugar para nossa presença, mas, nos decentralizar, solicitamos a permissão da educadora para nos direcionarmos para o final da sala, assim poderíamos acompanhar o que acontece durante as vivências da turma, em distintos polos, momentos de atenção, desatenção, suas expressões. No ato de recusa de uma posição frente às crianças, evocamos o que Galard (1997), dialogando com Ribeiro (2016), nomeia como uma exterioridade desfocada: “A desfocalização ativa um jogo de exterioridade, uma vez que destitui o essencial, dá sentido ao acidental, detém-se no detalhe, deriva na margem” (p. 52). Nesta direção pudemos sentir mais do que a inquietação das crianças, mas aos poucos, nossa presença foi sendo familiarizada, conforme assinalamos na imagem a seguir.

QUADRO 2 – Fotografia da turma do 3º ano do fundamental, no cotidiano de suas vivências, na rede de ensino pública da cidade de Caruaru- Pernambuco.

Na continuidade da nossa observação tivemos oportunidade de vivenciar na data escolhida pela docente seu projeto; acompanhamos a leitura do trecho da novela Issao e Guga25. As crianças se mantinham dispersas em alguns momentos, outras pareciam mais atentas, porém há um ponto em comum, posso destacar a vontade de interferir durante a narrativa, pois havia uma necessidade de se posicionar e obter respostas para as perguntas que vão se formando, que não integram de maneira literal o texto, deflagrando outras interpretação, conforme segue no relato abaixo:

Após a leitura uma das crianças sentadas na frente levanta a mão. Carlos: Guga é nome de menino ou menina? (A professora fica pensativa, então diz que o nome pode ser usado para menino ou menina). Outra criança interrompe. Maria Clarice: Acho que é de menino, tem o Guga da sandália. Logo outra criança, procura responder antes da professora. Jackson: Guga não é nome, e apelido, ele tem outro nome (Diário de campo-18.08.2016).

Esse modo transversal, desconexo, aguça nossa percepção para uma realidade bastante aparente que durante a inquietação de uma criança, outra tenta dar a resposta, e acaba colocando novas questões sobre o mesmo ponto de vista, e que isso se amplia com muita agilidade entre elas. As crianças formulam conceitos, como acontecimentos, elas não se baseiam completamente na realidade que possuímos para traçar seus pensamentos. Os conceitos expostos pelas crianças são conhecimentos plurais, muito provenientes de si mesmos, e se multiplicam, agem em rede com outras crianças, assinalando um conhecimento singular, tal como aponta Deleuze (2000, p. 141), relatando a característica dos conceitos:

Mas o próprio conceito é um tipo de acontecimento, de modo que o rosto é um acontecimento puro quando é tomado como conceito. isso não quer dizer que ele não seja “conhecimento”. Ele é conhecimento, só que conhecimento de si e do “puro acontecimento”. Daí por que a sua função não é recobrir algo de concreto no real, ainda que o real seja a sua matéria de atualização. Em Deleuze, todo conceito é uma virtualidade e uma multiplicidade.

Esse conhecimento descrito por Deleuze (2000) revela uma pura criação, que acontece durante aula, fora dela, está em constante flutuação, colocando em evidência a multiplicidade do pensamento. Todavia, a docente percebeu essas conexões, que dão o tom à sua abordagem, mudando foco, iniciando uma conversa sobre a diferença dos nomes em outros países, algo puramente fora do contexto proposto na novela, mas que indiretamente traçou outra rota, dado exclusivamente pelas crianças sobre a característica exótica dos nomes.

25 Issao e Guga possui introdução e dez capítulos. Este material tem conteúdos para dois anos, ou seja, para o 2º e 3º anos. Foi produzido pelo filósofo Matthew Lipman.

A docente, quando percebe que sua argumentação seguiu o caminho das crianças, tentou pôr fim à discursão, dizendo que esse não era o aspecto mais importante da leitura. Em contrapartida as crianças pareciam ter identificado esse aspecto como uma forma de pensamento, que não estava planejada, ou poderia ser previsto. Após esse momento ela solicitou um pequeno texto feito pelas crianças, sobre a interpretação inicial da novela, com perguntas instrumentalizadas, como: “quem eram os personagens? O que faziam?” Essa atividade foi realizada, mas de forma dispersa, e algumas não conseguiram captar esses aspectos mais instrumentais, dando atenção a outros pontos como a questão do nome, além da questão das férias de Guga, conversando sobre a saudade das férias, o que foi feito nelas.

O momento do projeto causou uma maior descontração, conversas paralelas sobre o que estava sendo proposto na turma. Nas próximas semanas de observações mantivemos o mesmo formato, permanecemos no final da sala, e ainda assim observando o intervalo de 20 minutos, para que pudéssemos acompanhar as expressões de pensamento, do filosofar que acontecem pelas arestas das fileiras de bancas, sem necessária vinculação ao projeto.