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6 CIRANDA DE VOZES: CENAS DE EXPERIÊNCIAS E ENCONTROS COM OS DIZERES E ALTERIDADES DA INFÂNCIA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA

6.10 Encontro com os adultos dentro da escola Arco-íris

Levando em consideração um processo de escolarização que ainda separa por idades, muda sua estrutura, pontuamos uma inquietação em torno do acolhimento da alteridade do outro, de sua voz, desvencilhando de certas condutas e práticas ritualísticas que mantêm a tradição escolar ainda viva, porém respirando também outros ares, que partem de outras crianças. Seria a experiência de desvelar alteridade o motivo da fuga dos meninos e das meninas desta escola? Desejávamos nos aproximar das crianças participantes do RPG para ouvir um pouco mais sobre isso. Esse é um dos desafios da nossa presença, no momento em que buscamos nos aproximar dessas alteridades outras, dentro do espaço da escola. Desta forma, lançamo-nos alguns questionamentos em torno do olhar, de como sentir essa alteridade.

Acerca destas inquietações consideramos algumas palavras de Skilar na obra “Pedagogia (improvável) da diferença e se o outro não estivesse aí?” que apresenta alguns pensares para essas inquietações, longe de explicá-las, pontuando, em primeiro lugar, que alteridade parte de um outro, que foi alterizado, por processos exteriores a ele, sujeitado ao mesmo. Assim Skilar (2003, p. 186) nos fala: “O outro foi alterizado e com ele grande parte de

seu corpo ficou pulverizada, anatomizada, desumanizada”. Esse outro teve sua alteridade condenada a se tornar parte de uma mesmidade apresentada enquanto norma, correção.

É nas escolas, nas crianças que esse processo de silenciamento, encarceramento foi conduzido, e ainda resiste em alguns momentos, direta ou indiretamente. Podemos encontrar em algumas ações, falas, gestos e ideias o encontro desta alteridade outra, anormal com a normalidade e suas artimanhas do sujeitar. Lembramo-nos de um dia, ainda na fase de observação, quando Pedro parecia estar copiando as atividades do quadro, bastante atento, sem levantar suspeitas de que estivesse fazendo uma coisa diferente.

A professora começou a passar pelas bancas verificando se as crianças estavam seguindo o que tinha no quadro, então, para os passos, justamente ao lado da banca de Pedro, dizendo: “O Pedro, porque você está copiando o texto do livro, não é esse, é o do quadro”. Habilmente ele diz: “A senhora disse que era para escrever o texto, esse aqui tem os meninos jogando futebol”. O que disse Pedro deixou a professora sem palavras, ela sorriu entregando o caderno. Pedro talvez não soubesse, mas ele tinha acabado de provocar um desaprender na prática de reproduzir tal qual.

Esse mesmo desaprender desafia, está envolto em uma “experiência irredutível, intraduzível e misteriosa, repete, sim, Mas em outro lugar. Copia, é verdade. Mas não o que queremos. Seu corpo se amolda, parece. Mas não como acreditamos” (SKLIAR, 2012, p. 154). No contrariar do desejável, esse outro, no caso deste exemplo, a criança, converte-se em diferença na relação com essa atividade, feita de outro jeito, entendida por um olhar distinto, onde a experiência de familiaridade com o futebol foi mais forte que a orientação de copiar o que estava no quadro, assim, conseguimos traçar um rumo para nos aproximar dessas alteridades, apostamos na presença, na percepção do que vimos no campo, não apenas no jogo, mas também fora dele.

Perscrutamos em nossas experiências de observação para encontrar esse achado, que partiu de uma aula, mas poderia ter acontecido em qualquer tempo ou lugar; por esta via, nos ocorreu uma interpelação dirigida para o RPG. De fato, tínhamos esse receio guardado, não sabíamos qual era a pergunta das crianças para esses adultos da escola Arco-íris, pois conhecemos as nossas inquietações, conhecemos aquelas que lemos nos livros, a que pensamos, mas não há como prever o que virá.

Nada que vem do outro pode ser copiado por nosso pensamento, tão pouco em nossas palavras. O que poderia ser dito aos adultos que estudam esses jardins de mistérios? Será que a mesmidade de seus processos e estudos conseguiria manter-se frente a essa alteridade, esses desaprenderes? Apostávamos que não, que mais dizeres, assim como os de Pedro, apareceriam,

desafiando toda e qualquer normalidade. Levando em consonância os pensamentos de Skliar (2012), lemos a cena, ao relatarmos que não havia nenhuma criança nessa escola, tal como na feira.

Lucas expõe uma premissa quando diz “que Arken parece doente”; apesar de ser uma cidade cheia de fantasias, é na escola que as crianças percebem que está faltando experiências que se relacionem com suas alteridades; sem elas, como deixá-la fluir? Eles não se veem como um modelo de impressões, e nem conseguem estabelecer uma linha de concordância para com o futuro quando se tornarem adultos, eles vivem o tempo do presente, do hoje, da infância.

Para eles é necessária a confecção de brechas, que possibilitem desvios, como aquele de Pedro, que foi acolhido pela professora, não silenciado ou repreendido. Pedro pensou por si, não sendo mal interpretado, indisciplinado, mas aceito em seu pensamento. De tal forma, percebemos que as crianças aproveitam essas suavidades, também os encontros com os amigos para se deixarem guiar pelas experiências, acontecimentos que marcam.

Os adultos, que privaram as crianças de Arken das experiências consigo, com os outros, destituindo gestos de acolhimento, causaram essa desertificação; isso nos fez reviver nossas experiências infantis mais uma vez, longe de serem desfeitas. Por um momento notamos o esquecimento delas, mas não sua ausência, podemos dizer com convicção o nome, recordar a face, os amigos, até os detalhes minuciosos de cada acolhimento que recebemos na escola, de cada acontecimento do nosso pensar que não nos foi subtraído e corrigido.

No convívio com crianças na escola pudemos revisitar nossa infância em uma experiência pessoal, mas que foi desencadeada por eles, e entender quanto é singular, marcante uma experiência de alteridade, de pensamento nas escolas, e o quanto podem fazer falta, causando uma indisposição para pensares criativos. Cassimiro diz algo que se entrelaça a esse nosso pensamento quando discorre um motivo para a fuga dessas crianças: “Claro, criança não é estudo”. Sobre isso, pontuamos uma frase de Martins (2017, p. 218) ao dizer que “Por isso, a explicação embrutece: conduz a regressão ao infinito, pela replicação das razões”. Quando colocamos o plano da experiência, a infância, uma explicação, pode causar esse efeito; o ato de embrutecer, pelo visto, não está alheio às crianças, elas entendem, ao seu modo, o que é este embrutecimento, e dele afastam a infância.