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6 CIRANDA DE VOZES: CENAS DE EXPERIÊNCIAS E ENCONTROS COM OS DIZERES E ALTERIDADES DA INFÂNCIA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA

6.4 Uma conversa com Soso: no lado de lá

Tínhamos um jardim, um mago, nosso mundo imaginado estava em ebulição, como uma colcha de retalhos, sendo costurado por pequenos alfaiates, e o mais interessante estava emergindo da escola, sob seus olhares. Assim, as primeiras palavras de Soso partem do jogo, no lado de lá, então, gostaríamos de saber se a nossa presença frente às crianças seria acolhida, já que Soso parte da nossa fantasia, indo ao encontro deles. Como eles lidariam com essa nova realidade? Separamos aqui alguns dizeres sobre esse momento, quando Soso pergunta como poderia ajudá-los. Julia assinala uma vontade: “Fazer eu voltar para a escola de volta”. Nesse primeiro encontro com o mago, Julia expõe a escola, não a criada por eles no jogo, mas a sua, por onde entraram nesse mundo. Alisson aponta outra direção, quando o mago pergunta de onde eles vieram, “Da minha casa”. Julia novamente recorda a escola “que casa menino, a gente estava era na escola”.

A referência dela, a escola, duas vezes nos leva a indagar o motivo porque ela gostaria de voltar, Julia demora alguns segundos para dizer: “Não sei tia, eu gosto de lá”. Julia revela o seu gostar da escola, para onde ela volta quando a brincadeira dá uma pausa, por isso pontuou que a escola também é um lócus da experiência infantil não apenas um lugar para aprender saberes, mas para compartilhar dizeres. Esse primeiro contato com o mago mostrou-nos algo que poderíamos utilizar com base no dizer de Julia. Apesar do RPG ser conhecido por não ter

um fim, podendo ser retomado a qualquer tempo, como uma brincadeira de criança, teríamos que providenciar um encontro com a escola, não deveríamos perder de vista esse detalhe. Após ouvirmos a colocação de Julia e das outras crianças continuamos na linha imaginativa do jogo.

Tanto quanto as animações, filmes e os próprios jogos de RPG, onde o tempo pode ser ampliado, reduzido em dias, horas, anos, acrescentamos uma diferença na passagem pelo escuro, justamente o escuro de Rafael foi a ponte que faltava para criarmos esse elo, dias e noites, semanas, nada disso era uma preocupação para nós. Nessa linha aconteceu a entrega dos poderes, conforme o preenchimento das fichas, e também as descrições de cada um desses poderes nos desenhos:

_Luiz: Soso me deu o poder do capitão américa! _ Eduarda: E eu ganhei o da Dracolaura

_Rafel: O meu é o melhor, sou um super saygin! _Alisson: Eu também peguei do Vegeta!

Os participantes permaneceram com suas identidades e nomes, não assumindo totalmente uma caracterização, ao contrário das sessões de RPG, onde é incorporado totalmente o personagem; presenciamos um movimento singular para eles, uma explanação dos poderes de cada um, mantendo seus nomes, suas peculiaridades, e isso foi o suficiente. Essa inversão ganhou ares de reinvenção, aos poucos, o que conhecíamos como o jogo, sua estrutura estava paulatinamente sendo construída em outros alicerces. Embora houvesse a preservação da escola, como um entremeio, considerando que eles não mencionaram troca de roupas, de aparência, continuaram como as crianças da escola que fazem parte. Nessa direção tivemos os primeiros indícios de que a escola não é apenas do aprender, ela também faz parte do brincar, do fantasiar e do dizer, existe um lugar para a escola no outro lado do espelho da realidade, onde habita a fantasia.

Assim, o interesse de nossos participantes em manter-se no jogo, afirmando tal laço com a escola, foi preservado, e dessa ação, com tais dizeres, começamos a nos questionar sobre esse processo de incursão e criação, pois estava contribuindo com outros olhares para o RPG, pois as alterações realizadas pelas crianças, troca da ideia de personagem para que eles próprios movimentassem poderes, também a troca de cenas entres eles, onde um amigo passava para outro sua vez, dois amigos falando na mesma cena, até mesmo o grupo todo, desse modo a mobilidade do RPG proporcionou as condições, não apenas para ouvir as crianças, mas a sua própria ressignificação.

Atribuímos tais ajustes dados à estrutura como uma manifestação de um devir, que desliza pelos planos, com ou sem convite, resguardando os pensares deste outro infantil, propondo a diferença, mesmo em situações onde já se acredita ter uma diferença em exercício, a criança dá seu tom, mostrando fendas que podem modificar o que tínhamos como um elemento diferente na relação das crianças com jogos, diálogos com os adultos. Neste caso, o RPG foi a diferença proposta às crianças, que acabou sendo dobrado, reinventado, mostrando mais potencialidades para o jogo que antes não enxergávamos, como indaga Lucas: “Pode ser assim tia? Eu quero jogar de eu mesmo”. Essa pergunta desencadeou outras como a de Kaune: “Gosto da mulher maravilha, pode ser eu jogando também?”. A partir dessas vozes nossa ambientação foi modificada para alojar esses dizeres. Kroef (2010, p. 11) também nos fala dessa característica da infância de reinventar, de causar diferenças, ao dizer que

A criança resiste ao enquadramento da ciência. Suas interferências não operam por referentes, deduções, oscilações entre o geral e o específico. Ela afirma a diferença em relação à própria diferença, sem fixar referente, sem estabelecer nenhum par.

Pois enquanto pensávamos no RPG em si mesmo, como um elemento imanente para as crianças, elas nos mostraram uma rasura, estabelecendo um modo completamente outro de vivenciar o jogo. De fato, uma diferença dentro do que já achávamos ser puramente incomum frente às metodologias de pesquisa que tivemos acesso, inclusive pelo fato de dar possibilidades de escrita a partir de suas vozes, de suas de inserções. Não há contemplação passiva quando é dado a elas o direito de mudar, inserir, pois as crianças não ladrilham na linha das expectativas, são orientadas a isso, quando essas linhas saem do escopo, o que resta é sua alteridade, seu filosofar, ou como dirá Foucault, conforme Carvalho (2016, p. 73), uma verdade raio.

Foucault utiliza esta expressão para fazer a contraposição ao que ele denominou de verdade-céu. A verdade-céu é da ordem universal, demonstrável, cientifica, logica. A verdade-céu, açambarca “a serie de verdade descoberta (cientificamente), constante, constituída, demonstrada” (FOUCAULT, 2006, p. 304). Mas o raio corta, invasivamente, o céu. Apesar de sua brevidade, ele é potente, capaz de cindir, de traçar rompimentos, e ate de indenciar. Nele, a verdade-raio diz respeito a uma outra serie de experiências na história ocidental da verdade.

A infância, assim como uma verdade-raio, corta toda a nossa história e cultura construídas sob representações, modos de agir e pensar baseados em uma verdade-céu, que ganha ares de universalidade a qualquer preço, deixando o sentir, o imaginar como secundários, pois não há como enquadrá-los. Desta forma surge a infância, tal como um raio, emana na

existência humana como um contraponto, rompendo com determinadas crenças, nos fazendo ver em nosso pensamento alguns achados, ampliando possibilidades, tais como pontuaram nossos participantes.