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6 CIRANDA DE VOZES: CENAS DE EXPERIÊNCIAS E ENCONTROS COM OS DIZERES E ALTERIDADES DA INFÂNCIA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA

6.13 As últimas crianças de Arken: o feitiço de um dragão

Seguindo nossa ambientação, iniciamos com a trilha, um pouco de poeira e pegadas, deixamos a imaginação dos grupos construir mais esse cenário. Até lemos as cenas da vila dos solitários50, onde há uma coisa que durante todo o jogo não foi revelado para eles, que havia crianças na vila. Elaboramos uma menina como NPC, um dos personagens criados na ambientação, chamada Milena, moradora da vila, que também pode ser consultada pelos jogadores. Como essa vila seria? Não tínhamos muitas referências, mas ainda se valendo do elemento noite, Rafael conta que “Tem poste!”. Cassimiro improvisa uma fonte: “Aquelas coisas com água dos desenhos”. Aproveitamos a indicação dada por eles e falamos que esse NPC estaria próximo à fonte, ao lado do poste.

Dessa forma íamos descrevendo a fala de Milena e notamos os olhares inquietos, e algumas conversas paralelas quando é revelado o feitiço, protagonizado pelo dragão Basik, que rouba as infâncias das crianças, alegando para seus pais que eles estão doentes e precisam se curar. Milena compartilhou isso com o grupo, que sente falta da meninice roubada. Essa falta ganha um sentido na fala de Lucas, ao dizer que “Oxe, minha mãe disse que ser danado demais é doença”. Julia: “chamam até a gente de doido”. Carlos: “Muito esperto esse bicho, falo tudo que esse povo quer escutar”. Os apontamentos feitos pelas crianças, com base no problema de

Milena, assinalam que eles além de não perceberem a suposta doença dela, também indicam que essa é uma criação dos adultos, que associam tanto o silêncio e o barulho como um problema.

Por esse caminho o que prevalece são as práticas, os ofícios, que ensejam posturas, rotulam um modelo típico, unívoco de criança, se não for seguido, levanta inúmeras angústias. Assim, Larrosa (2006, p. 192) acrescenta: “Uma imagem do totalitarismo: o rosto daqueles que, quando olham para uma criança, já sabem, de antemão, o que veem e o que têm de fazer com ela”. Esse saber, certeza do que deve ser uma criança, não silenciosa demais, mas não muito barulhenta, desenhada por especialistas e outras formas de olhar, que mais indicam o que falta, o que pode ser melhorado, sem notar alteridade deste outro, seu comunicar-se, colabora para uma caracterização das crianças apenas por não corresponderem às indicações dessa medida correta. Por isso, Oliveira (2010, p. 2) cita algumas dessas angústias que suscitam no descumprimento desta medida certa:

Enquanto especialistas, rotulamos a diferença de hiperatividade ou dificuldade de aprendizagem, por exemplo. A família chama a divergência de desobediência. Acriança testa os limites e regras. Ela experimenta, verifica os efeitos de suas ações. Nós estabelecemos as regras, não deixando espaço para questionamento, diálogo ou estranhamento, mas a criança rompe com nossas imposições, nos desobedece e cria.

O diálogo na vila com Milena assinala que o dragão usou as nomenclaturas apontadas por Oliveira (2010) para indicar uma suposta solução para esses problemas, embora os relatos apontam que essas prerrogativas de silêncio, baseadas em comportamentos, ideias, não são apenas dos adultos da vila. Carlos pontua que são argumentos que todos querem ouvir. De fato, encontramos nas escolas alguns enunciados, concepções que colocam a criança em certos parâmetros, ainda há uma preocupação com as etapas, se alguma criança, por algum motivo, descumpre essa regra, são traçados vários motivos, que variam entre indisciplina, dificuldades de aprendizagem, e outros fatores, busca-se uma solução para que a mesma acompanhe a fase correta, desenvolva as capacidades que foram instituídas previamente para elas.

Entretanto, talvez falte um detalhe, ouvir o que dizem, reservar espaços para suas estranhezas, doar tempo para suas necessidades, considerar seu próprio modo de agir, ouvir, sentir, parecem ser pensamentos secundários, frente a uma realidade que almeja cada dia mais objetivos e resultados. Todavia, diferente do que acontece fora do jogo, dentro dele, trata-se de um feitiço que pode ser desfeito; no caso desses argumentos, atuando em outros espaços de

convivência, é preciso atentar para a experiência, condições que a preservem junto à alteridade das crianças, que provoquem o que Oliveira (2010) pontuou como Desobedecer.

Rafael em sua ação provoca o rompimento com esse sentimento de impotência, descrito pelo personagem Milena; pede calma, se compromete em resolver o problema dela ao dizer: “Oia, calma, não sei onde tá esse bicho, mas nos mata de boa, todo mundo aqui tem poder. Tu viu uns menino de farda passando por aí?”. Ela faz sinal com a cabeça, e pede silêncio, alertando para o perigo de falarem alto onde estavam os outros adultos que podem chamar Basik para os pegar, posto que o feitiço tem um preço para acontecer, os adultos deixam que o dragão leve a infância para longe, assim eles poderiam aprender mais, atingindo suas expectativas. Tudo fica mais fácil sem infância, no entendimento do dragão. Por isso ele oferece muitas teorias e soluções, ele acha que pode levar a infância para longe das crianças com todo esse aparato que vai deixá-las no caminho correto.

O grupo faz o que Milena disse, alguns levantam de suas cadeiras para mostrar como andam sem que ninguém perceba; na verdade, todos eles ainda fazem sinal de silêncio com o indicador, interpretando a cena. Quando voltam a sentar, aguardam as próximas falas. O mago Soso retorna, para que eles possam saber mais do dragão. Paulo aproveita para perguntar: “Oxe, um dragão se mata com lança, ou gelo...né?”. Precisamos de um tempo para reorganizar as ações, todos queriam falar ao mesmo tempo, obter os segredos para vencer Basik.

Soso aponta o caminho da montanha, os jogadores se preparam para ir até lá por sua vez. Fizemos alguns testes, usando as fichas e o dado para saber quem iria à frente, quem poderia escalar mais rápido, como forma de garantir momentos de fala a todos.

Diante disso, o primeiro encontro com o dragão se deu na entrada da caverna quando ele foi recebê-los com uma boa conversa, deixamos as crianças construírem como ele seria. Surpreendemo-nos com Rafael, que pediu para ir até a sala buscar um dragão que a turma tinha feito junta, produzido com garrafas pet, para uma apresentação que aconteceu na escola.

Novamente, pudemos constatar o quanto o espaço escolar está presente nas brincadeiras e na imaginação, por meio da produção de brinquedos, jogos, ou outros acontecimentos que vão surgindo sem um relação direta com conteúdos, atividades, tal como a lembrança de Julia, assim que pisou em Arken. Por isso, colocamos esse dragão no centro de nossa mesa para ser o Basik do jogo, no caso, representar uma descrição do personagem, já que a peça foi inserida por vontade de Rafael, então, acolhemos a ideia.

O dragão já construído foi pensado para um contexto, deixado no corredor das salas como uma peça de exposição, supostamente apenas para recordar a data do meio ambiente, porém Rafael o requisitou, trazendo para Arken, sem relacionar com a apresentação a qual a

peça foi criada. Assim, Rafael trouxe algo de sua vivência escolar para dentro da imaginação, assinalando uma transitoriedade desligada de conteúdos, demonstrando outra relação com o que é feito na escola.

Algo mais próximo de uma experiência consigo mesmo, que também engloba fatos, acontecimentos, produções da escola, como pontua Medeiros (2010, p. 45): “A experiência na infância apresentada dessa forma estabelece outra relação com o espaço e com o tempo porque parte do pressuposto de que a criança recolhe, no seu caminhar pelo mundo, imagens bem diferentes daquelas recolhidas pelo adulto”. Para eles, aquilo que é produzido como parte de aulas, projetos, possui tantos sentidos que o conhecimento ao qual está vinculado jamais poderia dar conta. O dragão ganhou um lugar em Arken, se tornou o grande Basik, pois é impossível demarcar o que será ou não significativo para as crianças, são elas que escolhem os momentos, são elas que dizem e expõem suas experiências.

Nessa direção, Skliar (2012) ressoa algumas palavras que falam, não explicam, não situam a experiência, apenas dizem algo, considerando que “A experiência é um assombro ainda indefinido, uma claridade um tanto destemperada, uma árida luz que não deixa, entretanto de ser luz. Não há pensamento anterior à experiência, nem na experiência, senão a partir dela” (p. 22). Rafael assinala que uma dessas experiências que acontecem, sem um pensamento prévio, se dá realmente no acontecimento em si mesmo, neste caso, foi a partir desta experiência que teve como lugar a escola, que podemos falar, ver, sentir a presença deste dragão da imaginação.

Assim, demos continuidade, agora tendo um pensamento sobre Basik, então usamos o dado meteoro para saber quem teria ouvido uma voz sussurrante, proveniente dele e que continha um pequeno segredo. Desta forma, Julia recebeu essa informação, percebendo algumas mentiras ditas por Basik, por isso passamos para ela uma mensagem, que só ela poderia divulgar para o grupo em sua ação. Tratava-se de um dizer oculto de Basik, dito por baixo de sua frase inicial, assim segue: “Olá meus pequenos, como estão? Foi longa a viagem? Em que posso ajudá-los? (nesta cena, apenas Julia ouviu – Olá suas crianças bobas, como esqueci de vocês!)”. Julia só poderia falar algo dentro do jogo na sua ação, quando chegou sua vez, chamou os amigos e disse para eles o que tinha escutado

_Alisson: Por isso que o pessoal da vila esta mesmo doente _Rafael: O dragão acha que vai enganar a gente.

_Cassimiro: Esqueceu mesmo! Nos agora está aqui para te pegar.

_Basik (NPC): Passaram pela vila que eu curei? Tudo arrumado, sem bagunça! Sem barulho, mesmo com crianças. Isso não é bom? Incrível?

No entendimento de Basik, ele esqueceu as crianças participantes do jogo, não incidiu nenhum dos seus poderes de “cura” sobre elas, posto que, para este dragão, existe uma postura correta para as crianças, na qual a infância precisa se adequar, pois existe algo nela que não pode ser alcançado por seus poderes, por isso representa uma ameaça. Escrevemos algumas palavras de Larrosa (2006), acerca desta intenção, deste pensamento inclusivo ao dizer que “As crianças podem ser vistas como uma ameaça indiferenciada que tem de ser destruída” (p. 192). Larrosa (2006) destaca neste fragmento que as crianças representam uma ameaça para as práticas totalitárias, para certeza, para os projetos que buscam defini-la, tal como o pensado pelo dragão.

Assim ele se revela enquanto um grande entendedor deste perigo, conforme descrito na cena; ouvimos a voz de Alisson que alerta para o estado da vila sob esse prisma, um lugar que parece adoecido, antes não era, mas depois deste projeto passou a ser. Basik poderia ter o conhecimento ao seu lado, as referências, mas o que os move a uma conversa com o dragão, e o sentimento, de que ele não pode pegar as infâncias.