• Nenhum resultado encontrado

Áudios, cineclube e dispositivo como método: ver, produzir e discutir!

2. Pistas metodológicas Cartografia

2.1 Áudios, cineclube e dispositivo como método: ver, produzir e discutir!

Para pensar a aplicação de dispositivos de criação de imagens funcionando na escola, consultei MIGLIORIN (2015), XAVIER (2005), e LINS (2007). Em “1.1 Introdução esta pesquisa-intervenção”, apresento uma noção de dispositivo a partir de Cezar Migliorin, através de linhas de controle e de linhas de abertura. Essas linhas podem ser deslocadas de uma situação de fazer cinematográfico para outra. Por exemplo, no exercício do dispositivo “Minuto Lumière”, proposto no projeto “Inventar com a diferença” é preciso realizar um plano de um minuto, com a câmera parada, sem utilizar zoom, nem considerar a captação de som. Dessa maneira, trazemos para tal realidade (atual) um contexto de cinema vivido pelos irmãos Lumière, no final do século XIX: câmera fixa sobre tripé, sem som e um plano de, no máximo, 53 segundos. Ou seja, essas linhas não são como regras de um jogo, somente. São forças que atuavam em tal situação de cinema e que podem ser trazidas para funcionar dentro de/com outro conjunto de forças, provocando desvios, crises, desterritorializações. Eles podem nos permitir ver e mostrar coisas do mundo que antes não pareciam disponíveis ao olhar.

Neste texto, estou chamando de “sessões de cineclube”, as exibições - que ocorreram em diversos espaços da escola - de fragmentos (escolhidos por mim) destes três filmes:

Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro / 2010/ 85min/ híbrido)

• Fragmento que vai da minutagem 00:18:31 a 00:20:46

Das Crianças Ikpeng para o Mundo (Kumaré, Karané e Natuyu Txicão /

2001/ 35min / Documentário), do projeto “Vídeo das Aldeias”28

• Fragmento 1 – de 00:04:45 a 00:07:20 • Fragmento 2 - de 00:22:45 a 00:26:37

• Fragmento 3 – de 00:31:17 a 00:35:02

A Paixão de JL (Carlos Nader/ 2015/ 82min/ documentário)

• Fragmento 1 – de 00:00:20 a 00:04:53 • Fragmento 2 - de 00:05:14 a 00:07:54

• Fragmento 3 – de 00:12:13 a 00:13:35

Os dois primeiros estão disponibilizados na internet29 por seus responsáveis.

Quanto ao terceiro, na época em que assistimos seus três fragmentos na escola, estava disponibilizado no portal YouTube30. No entanto, atualmente (20 de novembro de 2017), há uma errata agregada à publicação do vídeo lá, dizendo: “Anteriormente, este vídeo continha uma faixa de áudio protegida por direitos autorais. Devido a uma reivindicação feita por um detentor dos direitos autorais, a faixa de áudio foi permanentemente desativada”. Por isso não indico aqui como encontrar os fragmentos mencionados.

Neste trabalho de campo, tanto os exercícios de criação quanto as exibições foram propostas sempre dentro do contexto de algum dispositivo, tendo como eixo central a atenção ao áudio para impor tanto a nós quanto a um software de computação gráfica (que é mais preocupado com o que se vê do que com o que se ouve) o problema da elaboração de imagens a partir de uma materialidade externa (o som). Assim, o áudio tomaria certa centralidade que poderia nos fazer escapar da imagem. Neste contexto, o som não seria externo só porque não é imagem, mas por ter sido produzido pelos corpos de uma comunidade escolar. Bem como o “quadro de qualidades” (será explicado a seguir) e as massas de modelar, que também faziam parte dos elementos materiais que circulavam por aquele lugar, mas sobre o quais o programa não poderia prever nada.

Sobre a escolha dos filmes dos quais seriam extraídos os trechos assistidos nas oficinas, vale tecer algumas considerações. Quis trabalhar primeiro com um fragmento de filme que fosse somente escutado pelos participantes (ou seja, no começo, eles não veriam as imagens) e que, a partir daí, eles sugerissem adjetivos que julgassem relacionados a esse som. Eu escreveria essas palavras na lousa: o “quadro de qualidades”. Cada participante escolheria uma delas (sem ser a que ele mesmo lançou) para agenciar a deformação do pedaço de massa de modelar que tinha. E, após isso, a escultura de massinha sugeriria a transformação de um cubo 3D no Blender, efetuando um primeiro contato com o programa. Ou, melhor dizendo,

29 “Avenida Brasília Formosa” pode ser assistido no portal YouTube, através deste endereço: <https://www. youtube.com/watch?v=gyMO-Lsupmw&feature=youtu.be&hd=1>, indicado no site do diretor do filme: <http://pt.gabrielmascaro.com/AVENIDA-BRASILIA-FORMOSA>. Já “Das Crianças Ikpeng para o Mundo” pode ser acessado através desta outra publicação, no canal do YouTube do projeto “Vídeos nas Aldeias”: <https://www.youtube.com/watch?v=28r1cj0xwEs>. Acesso: 17/11/2017. 30 Plataforma comercial de compartilhamento de vídeos enviados por seus usuários através da internet, pertence à empresa Google LLC.

talvez as massinhas “sofressem” as forças (DELEUZE, 2007) desses adjetivos, e, posteriormente o cubo 3D sofresse a das massinhas. Para isso, escolhi extrair fragmentos de um filme que fosse tanto ficção quanto documentário, por isso escolhi o “Avenida Brasília Formosa”.

Também procurei um outro filme, que tivesse surgido a partir de um áudio. Mas, de preferência, não inspirado nele, e sim, que ele já fosse boa parte da matéria do filme, “forçando” que as imagens fossem criadas/compostas/mixadas para a funcionar com ele. Como se o áudio tivesse mais próximo das linhas de controle, enquanto as imagens mais perto das linhas de abertura, dentro do mesmo dispositivo. No caso de “A Paixão de JL”, os áudios gravados pelo artista Leonilson surgiram 20 anos antes da composição com as imagens; segundo o diretor, “Não era um diário secreto, ele queria transformar em alguma coisa. Considero uma espécie de ‘parceria póstuma’” (NADER, apud BOLDRINI, 2016).

É como se Carlos tivesse observado uma onda (os áudios gravados por necessidades e afetos próprios de Leonilson) e resolvido surfar nela, se impondo a criação de um filme a partir de/com esses pedaços de matéria; e não sobre o conteúdo deles. Como se ele precisasse se colocar nessa situação para permitir que a obra aparecesse. Não ouve algo que orquestrou/centralizou (como um diretor) e “encomendou” a criação desse áudio e dessas imagens, desde o começo. Foi um rearranjo a partir de ondas que já existiam e que se cruzaram. Numa abordagem de criação que relaciona-se menos com organizar o mundo à feição do criador e mais com permitir aberturas para que o mundo entre com suas forças e formas, surpreendendo o próprio artista; aberturas ao descontrole.

Como propus que as animações criadas nas oficinas surgissem a partir de uma estratégia de criação semelhante - no sentido de editar arquivos de áudio e elaborar imagens que funcionassem com eles – pensei desses sons serem gravados pelos próprios estudantes. Sons que forçariam a criação imagética de outros colegas. Boa parte da matéria-prima que compõe "A Paixão de JL" são imagens de arquivo, o que me faz indagar se poderiamos considerar os .blend pesquisados e manipulados por nós também como sendo “de arquivo” por já terem sido criados por outras pessoas, pois isso nos aproximaria ainda mais do movimento exercido pelo montador desse filme.

A obra do artista Leonilson é predominantemente autobiográfica e está concentrada nos últimos dez anos de sua vida. Segundo a crítica Lisette Lagnado31,

cada peça realizada por ele foi construída como uma carta para um diário íntimo; esta relação entre diário e carta me inspirou a propor que os participantes gravassem áudios-carta e começassem esse exercício conversando com um filme- carta, por isso optei por trabalharmos com o “Das Crianças Ikpeng para o Mundo” antes. Minha aposta nessas estratégias de criação tem a ver com:

a possibilidade de trazer para os exercícios os desafios de igualdade no lugar ocupado entre os estudantes e professores, o desafio da não hierarquização dos discursos e imagens e a necessária abertura para o território, para a comunidade e para a diferença, sem sermos pautados

por discursos ou temas, e tendo o cinema como uma questão central. […].

Sem uma pauta ou uma agenda, reforçávamos com eles nossa crença em um cinema politico na escola. (MIGLIORIN, 2015, p. 78, grifo nosso).

Desta forma, ao escolher os três fragmentos de ‘A Paixão de JL”, não objetivei abordar qualquer tema específico, por acreditar que talvez ele acabasse limitando as possibilidades de fruição para com as imagens assistidas, bem como tendenciando as por fazer. Também não quis que as exibições partissem de um saber precedente, mesmo que fosse sobre algum elemento do enredo do filme. Quis um exercício lúdico de conversa entre uma obra cinematográfica e uma comunidade escolar, uma troca de cartas que ao mesmo tempo jogasse com o diário que estava sendo partilhado e que pudesse provocar a emergência de elementos estéticos fabulados nas tensões entre intimidade e exposição.

Uma conversa que também fosse uma espécie de travessia pelo filme, de experiência direta com ele, de misturas imprevistas. E de impurezas, seja pela falta de filtros prévios impostos por mim, seja pelos contágios decorrentes da experiência de assistir em grupo: que disparariam a criação de outros filmes na escola, que também seriam vistos e conversados. Quando um estudante atravessa um filme, ele passa a ter uma inteligência do filme, uma maneira pela qual se emocionou, uma maneira pela qual foi tocado por ele, uma maneira como colou nele os signos dos quais dispunha para apreendê-lo. Quando assistimos juntos e conversamos sobre um filme, nos tornamos uma comunidade agenciada por ele, uma experiência não mais individual, mas radicalmente coletiva.

Neste trabalho com as imagens, tento abordá-las como cheias de possibilidades, evitando que sejam encaradas como exemplos de se explicar alguma coisa, pois isto que reduziria seus territórios de poder (tornando-as descartáveis no processo). Uma perspectiva dedicada às experiências inauguradas entre elas e outros corpos, bem como, à experimentação do pensamento através deles.

Assim, os fragmentos escolhidos não contemplam assuntos, mas “tipos de imagem” diferentes:

Fragmento 1 – Nele existe um jogo entre imagens de arquivo públicas da

história mundial (como as do Massacre da Praça da Paz Celestial em Pequim, por exemplo) e imagens feitas para o filme (como as da fita-cassete sendo gravada). Também foi critério de escolha para esse primeiro fragmento que ele tivesse algo que apresentasse, minimamente, do que se tratava, para que eu não precisasse explicar nada antes da exibição. Como os três frames da figura da página seguinte.

Fragmento 2 – Imagens de arquivo públicas da história do Brasil mais

imagens públicas das obras do artista.

Fragmento 3 – Imagens de arquivo privadas da história de vida de Leonilson

mais imagens de uma obra de arte que não é dele, como as do filme “Meu pé esquerdo” (Jim Sheridan / 1989).