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É a Felicidade um Dever?

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 77-81)

Agora que terminámos o estudo da rejeição kantiana do eudemonismo e obtivemos como resultado a impossibilidade de o desejo da felicidade servir de base a um sistema moral, queremos responder à seguinte pergunta: embora a felici- dade seja rejeitada do ponto de vista de uma reflexão sobre os fundamentos da moralidade e, por conseguinte, embora um tal desejo não possa, de todo, constituir o princípio básico de um conjunto organizado de deveres, poderia, apesar disso, constituir objecto de um dever determinado?

Nos termos em que é colocada, esta questão tem da parte de Kant uma resposta explicitamente negativa:

“Um mandamento que ordenasse a cada um procurar tornar-se feliz seria uma loucura; com efeito, jamais se ordena a alguém o que ele quer inevitavel- mente por si mesmo.”103

98 Cf., supra, p. 49.

99 Cf. CRPr, Ak V, 118 (137). 100 Cf. MCDV, Ak VI, 485 (135). 101 Cf. MCDV, Ak VI, 485 (135).

102 Como nos diz Carmo Ferreira (1993), Epicuro “soubera aliar à rigorosa doutrina da virtude a exigên- cia de um amor de si pacificador e regozijante” (392).

103 CRPr, Ak V, 37 (50): “Ein Gebot, dass jedermann sich glücklich zu machen suchen sollte, wäre thöricht; denn man gebietet niemals jemanden das, was er schon unausbleiblich von selbst will.”

Ou, num outro estilo, uma resposta extremamente irónica:

“Se um dos teus amigos, aliás, por ti estimado, pensasse justificar-se junto de ti por causa de um falso testemunho alegando primeiramente o dever, sagrado segundo a sua afirmação, da própria felicidade, e se enumerasse em seguida as vantagens que assim obteve, mencionando ainda a prudência de que deu provas para prevenir toda a descoberta, mesmo a que viesse de ti, a quem ele revela o segredo unicamente para em todo o tempo o poder negar; se, em seguida, pretendesse com toda a seriedade ter cumprido um verdadeiro dever para com toda a humanidade: ou te ririas mesmo na sua cara ou recuarias com desgosto […].”104

Desta última passagem ressalta imediatamente a impossibilidade de a felici- dade pessoal constituir a justificação moral de uma certa acção e, por conseguinte, a impossibilidade de a felicidade pessoal constituir objecto de um dever determi- nado. Ora, a compreensão desta impossibilidade passa precisamente pela com- preensão da noção kantiana de dever. Segundo Kant, é uma contradição estar sob um imperativo que ordene a procura da nossa felicidade: se o dever é sempre uma obrigação em vista de um fim que só relutantemente adoptamos105 e se a felicidade

constitui um fim para o qual naturalmente tendemos106, não faz qualquer sentido

admitir a possibilidade de a procura da felicidade pessoal constituir objecto de um dever determinado, pois uma tal admissão seria tão absurda como ouvir alguém a dizer num tom lamuriento: “Hoje sinto-me tão constrangido a fazer uma coisa que tanto desejo!…”. A procura da felicidade, na sua qualidade de fim natural (e consi- derada independentemente da sua relação com qualquer outro tipo de fins)107, não

pode, portanto, integrar o conjunto dos nossos deveres.

Assim, a resposta à questão de saber se a procura da felicidade pessoal pode constituir objecto de dever parece (pelo menos nos termos em que colocámos a questão) ser negativa. Todavia, ela não o é inteiramente. Basta adoptarmos o ponto de vista da distinção kantiana entre deveres directos e deveres indirectos, para veri- ficarmos que a procura da felicidade não constitui um dever directo, mas pode, no

104 CRPr, Ak V, 35 (48, trad. corrigida): “Wenn ein dir sonst beliebter Umgangsfreund sich bei dir wegen eines falschen abgelegten Zeugnisses dadurch zu rechtfertigen vermeinte, dass er zuerst die seinem Vorgeben nach heilige Pflicht der eigenen Glückseligkeitvorschützte, alsdann die Vortheile herzählte, die er sich alle dadurch erworben, die Klugheit namhaft machte, die er beobachtet, um wieder alle Entdeckung sicher zu sein, selbst wider die von Seiten deiner selbst, dem er das Geheimniss darum allein offenbart, damit er es zu aller Zeit ableugnen könne; dann aber im ganzen Ernst vorgäbe, er habe eine wahre Menschenpflicht ausgeübt: so würdest du ihm entweder gerade ins Gesicht lachen, oder mit Abscheu davon zurückbeben […].”

105 Cf. MCDV, Ak VI, 386 (20). 106 Cf., supra, p. 54.

107 Com este parêntesis pretendemos salvaguardar o significado da felicidade no contexto da temática do soberano bem que abordaremos na Parte II deste volume.

entanto, constituir um dever indirecto108. Naturalmente que o duplo reconhecimento

da felicidade como algo que não é um dever e que é um dever indirecto encerra em si mesmo, no mínimo, uma contradição terminológica e Kant parece, mais uma vez, tropeçar no seu edifício linguístico. Todavia, a inclusão da procura da felici- dade pessoal na categoria dos deveres indirectos acaba por compreender-se à luz da definição de dever como obrigação em vista de um fim que naturalmente não desejamos e da distinção entre fim e meio109.

Se, segundo Kant, dizer do fomento da felicidade que pode constituir um dever indirecto significa, por um lado, subtrair-lhe o estatuto de um fim que temos o dever de procurar (o estatuto de um fim moral), significa, todavia, por outro lado, atribuir-lhe a possibilidade de constituir um meio para a realização da moralidade do sujeito ou para a preservação da integridade da nossa moralidade110. Resta-nos,

pois, determinar de modo preciso quais as razões que justificam a possibilidade de a felicidade constituir um meio para a moralidade ou, o que é o mesmo, constituir um dever indirecto:

“Sob certos aspectos, pode ser mesmo um dever preocupar-se com a sua feli- cidade; em parte, porque ela (compreendendo a habilidade, a saúde, a riqueza) contém meios para o cumprimento do dever, e em parte, porque a carência da felicidade (por exemplo, a pobreza) encerra a tentação de violar o dever. Só que o fomento da própria felicidade nunca pode constituir imedia- tamente um dever, e menos ainda um princípio de todo o dever.”111

A leitura desta passagem permite-nos descobrir as duas razões que, na opinião de Kant, fazem da procura da felicidade pessoal um meio para a mora- lidade do sujeito:

1. A felicidade compreende em si mesma uma série de ingredientes que nos ajudam a cumprir o dever; a habilidade, a saúde, a riqueza e o bem estar em geral, ao permitirem afastar uma série de obstáculos que se opõem à morali- dade (v.g., dor, pobreza, etc.)112, acabam por facilitar uma tal tarefa.

108 Kant fala-nos de deveres indirectos em quatro obras: Liç. Ét., FMC, CRPr e MCDV. Referências explícitas à procura da felicidade pessoal como dever indirecto surgem nas três últimas. Veja-se FMC, Ak IV, 399 (36); CRPr, Ak V, 93 (108-109); MCDV, Ak VI, 388 (23).

109 Cf. Wike (1994) 100-101. 110 Cf. MCDV, Ak VI, 388 (23).

111 CRPr, Ak V, 93 (108-109): “Es kann sogar in gewissem Betracht Pflicht sein, für seine Glückseligkeit zu sorgen; theils weil sie (wozu Geschicklichkeit, Gesundheit, Reichthum gehört) Mittel zu Erfüllung seiner Pflicht enthält, theils weil der Mangel derselben (z. B. Armuth) Versuchungen enthält, seine Pflicht zu übertreten. Nur, seine Glückseligkeit zu beförden, kann unmittelbar niemals Pflicht, noch weniger ein Princip aller Pflicht sein.”

2. Por outro lado ainda, a ausência da felicidade e, portanto, a experiência da dor, da pobreza, etc., podem constituir uma forte motivação para a transgres- são do dever, quer dizer, para o vício.

Em suma, a felicidade constitui um dever indirecto, ou seja, um meio para a moralidade, na exacta medida em que a sua presença facilita o cumprimento do dever e a sua ausência facilita a trangressão do mesmo. Todavia, em ambos os casos, a legitimidade da procura da felicidade está sempre subordinada a uma con- dição – o nosso aperfeiçoamento moral. E este é que é, indubitavelmente, o único dever a que estamos imediatamente vinculados, pois temos o dever indirecto de fomentar a nossa própria felicidade apenas quando isso favorece a nossa virtude ou evita que a negligenciemos.

A primeira e a segunda secções deste capítulo mostraram que o desejo da felicidade, enquanto candidato possível para ocupar o lugar de princípio supremo de um sistema moral, deve ser completamente afastado e, portanto, puseram em manifesto a função negativa da felicidade no âmbito da ética kantiana. Diferen- temente, ao apresentar-nos a felicidade como um dever indirecto, esta terceira secção aproxima-nos já do tratamento kantiano positivo deste conceito. É precisa- mente sobre ele que versará a segunda parte da nossa investigação, ao fazer da análise do problema do soberano bem objecto central de reflexão.

PARTE II

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 77-81)