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A Verificação da Validade da Lei Moral e a Sua Relação com a Reflexão sobre o Problema do Soberano Bem

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 105-109)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

1. A Verificação da Validade da Lei Moral e a Sua Relação com a Reflexão sobre o Problema do Soberano Bem

Na Crítica da Razão Prática, Kant justifica a necessidade de se pensar o problema do soberano bem nos seguintes termos:

“Ora, dado que o fomento do soberano bem […] é um objecto necessário a

priori da nossa vontade e está indissoluvelmente ligado à lei moral, a impos-

sibilidade do primeiro deve demonstrar também a falsidade da segunda. Se, pois, o soberano bem é impossível segundo regras práticas, então a lei moral, que ordena promover o mesmo, deve também ser fantástica, e votar-se a fins imaginários vazios, por conseguinte, ser falsa em si.”4

1 Cf., supra, p. 85.

2 Cf., supra, p. 85, n. 1.

3 Ver, adiante, n. 37, sobre o primado da razão pura prática.

4 CRPr, Ak V, 114 (133, trad. corrigida): “Da nun die Beförderung des höchsten Guts […] ein a priori notwendiges Object unseres Willens ist und mit dem moralischen Gesetze unzertrennlich zusammenhängt, so muss die Unmöglichkeit des ersteren auch die Falschheit des zweiten beweisen. Ist also das höchste Gut nach praktischen Regeln unmöglich, so muss auch das moralische Gesetz, welches gebietet, dasselbe zu befördern,

A lei moral, enquanto condição incondicionada da moralidade, obriga todo o ser racional à realização do soberano bem. Se o soberano bem for praticamente impossível, a lei moral, ao determinar como objecto necessário a priori da nossa vontade a realização de algo que em si mesmo é inexequível, só pode ser designada de falsa. Ao afirmar isto, Kant faz então decorrer o dever de promover o soberano bem, imediatamente, de uma exigência da lei moral e permite, simultaneamente, derivar a necessidade de pensar a possibilidade desse dever, a limite, da necessi- dade de provar em definitivo a validade da lei moral.

A resposta imediata à questão de saber de que modo Kant justifica na Crítica

da Razão Prática a necessidade de uma reflexão sobre a possibilidade do soberano

bem está, assim, dada: uma vez que a lei obriga ao fomento do soberano bem, é necessário pensar a possibilidade do soberano bem para que a legitimidade da lei moral possa ser verificada. Mas será esta justificação acertada?

Antes de respondermos a esta questão, poderemos perguntar-nos se, na Crí-

tica da Faculdade de Julgar, também a reflexão em torno do problema da possibi-

lidade do soberano bem surge justificada do mesmo modo que na Crítica da Razão

Prática.

Efectivamente, na terceira crítica, a possibilidade (ou impossibilidade) dos fins ordenados pela lei moral em nada decide acerca da sua legitimidade. Aí, diz- -nos o autor que todo aquele para quem a admissão da existência de Deus (uma das condições de possibilidade daquilo a que a lei obriga, ou seja, do soberano bem) for inaceitável não deve, por essa razão, deixar de reconhecer a validade da lei moral; tem apenas de desistir de visar o fim final (Endzweck) ordenado por tal lei5. Kant

vai mais longe e chega mesmo a afirmar que qualquer homem que se persuadisse da inexistência de Deus, “a seus próprios olhos seria porém um ser indigno, se daí concluisse ser de considerar a lei do dever simplesmente imaginada, sem validade, privada de coercividade e decidisse violá-la temerariamente”6. E porque é que qual-

quer homem convencido da inexistência de Deus não deve deixar de reconhecer a validade da lei? Porque as leis da moral “são formais e ordenam incondicional- mente sem consideração de fins (como a matéria do querer)”7.

Este tipo de afirmações mostra-nos como Kant distingue claramente, na Crí-

tica da Faculdade de Julgar, dois aspectos da lei: uma coisa é aquilo a que a lei

incondicionalmente obriga (ou, se se quiser, a força dos mandamentos da lei phantastisch und auf leere eingebildete Zweck gestellt, mithin an sich falsch sein.” Cf. também CRP, Ak III, 526 (A811/B839 [643]).

5 Cf. CFJ, Ak V, 450-451 (382).

6 CFJ, Ak V, 451 (383, trad. corrigida): “[…] so würde er doch in seinem eigenen Augen ein Richtswürdiger sein, wenn er darum die Gesetze der Pflicht für bloss eingebildet, ungültig, unverbindlich halten und ungescheut zu übertreten beschliessen wollte.”

7 CFJ, Ak V, 451 (382): “[…] sind formal und gebieten unbedingt, ohne Rücksicht auf Zwecke (als die Materie des Wollens).”

moral); outra é a questão de saber se isso a que a lei incondicionalmente obriga é ou não é possível. E esta última questão em nada deve afectar a força daquilo a que a lei obriga.

De acordo com as passagens assinaladas podemos verificar que, enquanto na

Crítica da razão Prática a necessidade de uma solução positiva para o problema da

possibilidade do soberano bem radica na necessidade de provar que a lei moral não ordena em vão, quer dizer, não ordena fins imaginários8, diferentemente, na Crítica

da Faculdade de Julgar, a necessidade de uma solução para o problema da possi-

bilidade do soberano bem não decorre de qualquer tentativa de avaliação da lei moral. Resta-nos, pois, saber de onde decorre.

Antes de avançarmos para uma identificação positiva das razões que poderão ter levado Kant a retomar a problemática do soberano bem na sua última Crítica, deveremos questionar-nos o seguinte: compete (como o faz entender a Crítica da

Razão Prática), ou não, ao problema da possibilidade do soberano bem decidir

acerca da legitimidade da lei moral? Não pressupõe, antes, a solução desse pro- blema a afirmação da validade da lei? Finalmente, qual das duas Críticas justifica de modo mais rigoroso a conveniência de uma reflexão sobre o problema do sobe- rano bem?

Poderíamos responder a este conjunto de questões do seguinte modo: o pro- blema da possibilidade do soberano bem é um problema afim ao estabelecimento da legitimidade da lei moral, não na medida em que lhe compete decidir alguma coisa acerca dessa matéria, mas exactamente porque a sua solução, enquanto solu- ção que decide, sim, acerca do propósito arquitectónico da razão, pressupõe essa mesma legitimidade.

No sentido de uma melhor fundamentação desta resposta, passaremos a justi- ficá-la nos seus três momentos constitutivos, mostrando, em primeiro lugar, por que razão a solução do problema da possibilidade do soberano bem em nada pode decidir acerca da legitimidade da lei moral; mostrando, em segundo lugar, por que razão a solução do problema da possibilidade do soberano bem (tal como é equa- cionada por Kant nas duas críticas referidas) pressupõe sempre já o próprio esta- belecimento da legitimidade da lei moral; e, finalmente, mostrando que a solução do problema da possibilidade do soberano bem se resolve na solução de um pro- blema mais abrangente que é o da arquitectónica da razão pura.

Se o fundamento das obrigações impostas pela lei moral não radica em qual- quer fim (mas pura e simplesmente no dever), já que a especificidade da lei moral, em Kant, é precisamente a incondicionalidade, não se deverá fazer de qualquer condição que seja (de qualquer fim) o critério de reconhecimento da legitimidade

8 No seu texto Orientar-se (Ak VIII, 139 [46]), Kant apresenta uma justificação para a necessidade de se pensar o soberano bem próxima da que acabámos de referir: a razão necessita de admitir o soberano bem para dar realidade objectiva a um tal conceito, de modo a impedir que este se reduza a um puro ideal.

da lei. Por outro lado, se levássemos a sério a razão que Kant apresenta na Crítica

da Razão Prática para justificar a conveniência de uma reflexão em torno da

possibilidade do soberano bem (a saber, verificar se a lei não visa fins vazios e imaginários e se, por conseguinte, não deve ser considerada falsa em si), chegaríamos sem demora à detecção de um círculo vicioso, o qual se deixaria tra- duzir no seguinte: devemos analisar o problema da possibilidade do soberano bem de modo a garantir definitivamente a validade da lei moral; o soberano bem é pos- sível porque cremos nas suas condições de possibilidade em nome de um interesse moral que se fundamenta, a limite, num mandamento da lei que é precisamente o de obrigar ao fomento do soberano bem. Simplificando, o círculo vicioso em que incorreríamos não seria senão este: testamos a validade da lei partindo do princípio de que ela é válida. Ora, o que concluir da análise deste procedimento kantiano? Compreender imediatamente que na solução do problema da possibilidade do sobe- rano bem não pode estar qualquer fundamento para uma decisão acerca da validade da lei9 e, mediatamente, suspeitar que o que leva o nosso autor a pensar o referido

problema não é, de facto, a necessidade de avaliar a lei moral, mas outra coisa (suspeita que ganha corpo se tivermos em conta o retomar da problemática do soberano bem na Crítica da Faculdade de Julgar).

Está assim justificada a primeira parte da resposta ao conjunto de questões anteriormente formulado. Compete-nos, agora, mostrar por que razão a afirmação da possibilidade do soberano bem pressupõe a legitimidade da lei moral. Quer na

Crítica da Razão Prática, quer na Crítica da Faculdade de Julgar, o ponto de par-

tida da reflexão sobre o soberano bem é o de que a lei moral obriga ao fomento do soberano bem. Também o ponto de chegada desta reflexão é o mesmo em ambas as críticas: o soberano bem é possível. Tendo em conta a via apresentada para estabe- lecer a possibilidade do soberano bem (a saber, o soberano bem é possível na exacta medida em que postulamos as suas condições de possibilidade e postulamos as suas condições de possibilidade em favor de um interesse moral na própria lei e naquilo a que esta obriga), facilmente verificamos que ela pressupõe a legitimidade da lei. Quanto à insuficiência da justificação kantiana para a afirmação segundo a qual o fomento do soberano bem é um mandamento da lei moral, essa é outra questão, a qual afloraremos posteriormente10, uma vez que a demonstração de uma

tal insuficiência reforça, sem dúvida, a tese segundo a qual o problema do soberano bem vem responder a um propósito sistemático.

Verificámos já que na Crítica da Faculdade de Julgar, e diferentemente do que acontecia na Crítica da Razão Prática, o problema da possibilidade do

9 Admitir que a decisão acerca da validade da lei depende da solução do problema da possibilidade do soberano bem significaria, de algum modo, subordinar a moralidade à religião, hipótese fora de questão de acordo com aquilo que ficou estabelecido na secção 4 do cap. 3.

soberano bem não se relaciona com a necessidade de testar a lei moral. Depois, mostrámos ainda que a solução de um tal problema nada decide (porque efectivamente não pode) sobre a legitimidade da lei moral – na verdade, a possibilidade ou impossibilidade de aquilo a que a lei moral obriga em nada pode afectar a força (que é a força própria da incondicionalidade) da lei moral. Cumpre- -nos agora identificar positivamente aquela que, na verdade, constitui a razão fundamental que terá conduzido Kant à formulação de um tal problema.

2. A Verdadeira Justificação da Necessidade de uma Reflexão sobre o Problema

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 105-109)