• Nenhum resultado encontrado

Vontade e Interesse

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 31-42)

Uma reflexão que vise constituir um contributo elementar para uma analítica da razão prática empírica deve ceder alguma da sua atenção ao conceito de von- tade, não apenas porque se trata de um conceito próximo do de faculdade de dese- jar, mas também porque só esse conceito nos conduz de modo mais imediato à temática do interesse, temática sem a qual uma tal analítica se veria amputada.

Efectivamente, o texto kantiano parece, por vezes, sugerir uma certa identi- dade entre as noções de vontade e de faculdade de desejar59. Todavia, não devemos

pensar que a sobreposição de tais termos é absolutamente rigorosa. A Metafísica

dos Costumes torna isso bem claro: nesta obra, termos como “vontade” (Wille)

(entendida enquanto razão prática) e “arbítrio” (Willkür) aparecem a representar diferentes pontos de vista segundo os quais a faculdade de desejar pode ser consi-

56 Provavelmente, e como nos diz Caygill (1995) 300, pouca coisa estaria em causa num debate que procurasse decidir acerca da prioridade da inclinação em relação à carência ou da carência em relação à inclinação. 57 No âmbito da doutrina dos postulados, Kant distingue carência da inclinação de carência da razão, distinção esta que tem como objectivo assegurar a legitimidade da crença nos próprios postulados (crença fundada numa carência da razão). Contudo, e se nos colocarmos num outro ponto de vista (o ponto de vista de uma análise do conceito de interesse), poderemos considerar a carência da inclinação como sendo, a limite, uma carência da própria razão. Veja-se adiante, a este propósito, a secção 3. deste capítulo.

58 Veja-se, adiante, pp. 45-46.

derada60 e é esta diferença de pontos de vista que, de alguma forma, impede que

falemos de uma identidade perfeita entre vontade e faculdade de desejar. O que é, então, a vontade? Em que se distingue, se é esse o caso, da faculdade de desejar? Será que, quando utiliza o termo “vontade”, Kant está sempre a referir-se ao mesmo? A resposta a estas questões obriga, então, a fazer uma pequena incursão pela concepção kantiana de vontade de modo a que, pelo menos, a sua especifici- dade fique também ela definitivamente esclarecida.

No prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em particular, no contexto do problema da eficácia das leis morais na acção humana ou, se se quiser, do problema da entrada dessas leis na vontade do homem, Kant parece colocar-nos perante um esquema triádico de compreensão do fenómeno da vontade humana em que esta aparece como sendo algo determinável ora pela razão ora por inclinações. A concepção de vontade sugerida por um tal esquema (de uma vontade dividida entre a sensatez da razão e a cegueira das inclinações) surge, na mesma obra, e de uma forma mais evidente, quer no momento em que Kant distingue as acções de um ser exclusivamente racional das acções de um ser simultaneamente racional e sensível (isto é, das acções humanas), fazendo radicar na diferente natu- reza da vontade de tais seres o diferente tipo de acções que põem em exercício61,

quer ainda quando aborda a temática do interesse62. Consideremos, por agora, o

primeiro caso. Aí, o raciocínio enunciado pode traduzir-se aproximadamente no seguinte: as acções de um ser cuja vontade é plenamente conforme à razão, de um ser cuja vontade é exclusivamente determinada pela razão, são conhecidas como objectiva e subjectivamente necessárias, ou seja, são reconhecidas pela razão e pela vontade do sujeito como sendo praticamente necessárias; diferentemente, as acções do homem que são conhecidas como objectivamente necessárias são apenas sub- jectivamente contingentes porque, tratando-se de um ser que não realiza em si mesmo a perfeita coincidência entre a vontade e a razão, nele a vontade nem sem- pre opta por aquilo que a razão reconhece como sendo praticamente necessário. Uma tal distinção aponta, portanto, para que digamos da vontade humana que ela é o poder que um certo sujeito tem de agir ou pelo concurso da razão ou pelo con- curso das inclinações, como se o efeito produzido por uma destas duas forças ini-

60 Cf. MCDD, Ak VI, 213 (17). Nesta obra é-nos dito que a faculdade de desejar pode considerar-se segundo dois pontos de vista diferentes: na sua relação com o fundamento de determinação (a fonte de acção) e na sua relação com a acção propriamente dita. E se o conceito de vontade deve ser compreendido a partir da relação entre a faculdade de desejar e o fundamento de determinação, o conceito de arbítrio, diferentemente, deve ser compreendido a partir da relação entre a faculdade de desejar e a acção. Assim, a vontade surge aqui definida como sendo a faculdade de desejar enquanto possui o seu fundamento de determinação interior na razão e o arbí- trio surge definido como sendo a faculdade de desejar enquanto é determinada a agir pelo concurso tanto da razão como das inclinações, distinguindo-se, assim, o arbítrio animal (aquele que apenas é determinável pela inclinação) do livre arbítrio (aquele que pode ser determinado pela razão pura).

61 Cf. FMC, Ak IV, 412-413 (51). 62 Cf. FMC, Ak IV, 413n (52n5).

bisse necessariamente o da outra e, por conseguinte, como se a possibilidade de uma relação não conflituosa entre inclinações e razão estivesse fora de questão: a vitória da razão converter-se-ia sempre numa derrota das inclinações, ou o contrá- rio, e nunca a razão poderia “socorrer” as carências da inclinação.

Todavia, esta concepção kantiana de vontade aparece, paradoxalmente, e neste mesmo texto, a par de uma definição de vontade que explicitamente a identi- fica com razão prática63 e, mais do que isso, aparece a par de uma tal definição com

vista a esclarecê-la. Dizemos “paradoxalmente” pelo seguinte motivo: como é que Kant compatibiliza a ideia de uma vontade que é razão prática com a ideia de uma vontade que não é plenamente conforme à razão? A saída para um tal problema está no esclarecimento da expressão “razão prática”. Vejamos, pois, o que nos diz o autor a este propósito:

“Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática.”64

A vontade é aqui pensada a partir da acção e da razão enquanto faculdade de legislar. A vontade é um determinado poder de agir, o poder de agir que só um ser racional tem, a saber, o poder de agir segundo a representação das leis. A acção do ser que tem vontade é, assim, determinada por si mesmo, já que esse ser, pelo facto de ter razão, pode dar a si mesmo o princípio da sua acção, diferentemente dos seres irracionais que, pelo facto de não terem razão, apenas encontram o princípio das suas acções numa causa que lhes é exterior, designadamente, nas leis da natu- reza. É por este motivo que, diz-nos Kant, “tudo na natureza age segundo leis”, à excepção do ser racional que age segundo a representação de leis. O homem, enquanto ser racional, tem uma vontade. O mesmo é dizer que o homem tem uma vontade apenas porque tem razão e encontra nesta princípios que determinam o seu agir. Assim sendo, a afirmação kantiana segundo a qual a vontade é razão prática deve entender-se do seguinte modo: a vontade é razão prática apenas na exacta medida em que ela é a capacidade de agir segundo a representação de leis. Todavia, mesmo quando a vontade não escolhe aquilo que a razão incondicionalmente reco-

63 Na FMC, Ak IV, 412-413 (50-51), é possível ler num espaço inferior a quinze linhas afirmações como estas: “a vontade [Kant está a referir-se à vontade de um ser racional e, por conseguinte, também à vontade humana] não é outra coisa senão razão prática” (“ist der Wille nichts anders als praktische Vernunft”) e “a vontade não é em si plenamente conforme à razão (como acontece realmente entre os homens)” (“ist der Wille nicht an sich völlig der Vernunft gemäss (wie es bei Menschen wirklich ist)”).

64 FMC, Ak IV, 412 (50): “Ein jedes Ding der Natur wirkt nach Gesetzen. Nur ein vernünftiges Wesen hat das Vermögen, nach der Vorstellung der Gesetze, d. i. nach Principien, zu handeln, oder einen Willen. Da zur Ableitung der Handlungen von Gesetzen Vernunft erfordert wird, so ist der Wille nichts anders, als praktische Vernunft.”

nhece como sendo praticamente necessário (facto sempre possível no homem), a vontade não deixa de ser razão prática, ou seja, não deixa de ser o poder de agir segundo a representação de princípios racionais; só que neste caso a razão dá uma regra, não a favor de si mesmo (isto é, daquilo que ela própria, independentemente das inclinações, reconhece como sendo praticamente necessário), mas a favor das inclinações de um ser cuja natureza é racional, mas também sensível65. E assim,

onde o nosso autor diz, referindo-se à vontade humana, que esta “não é em si ple- namente conforme à razão”66, poderemos ver, com maior propriedade, o desajusta-

mento (ou a não conformidade total) da razão em relação a si mesma, desajusta- mento este no qual radica a ideia da própria finitude da vontade humana ou, se se quiser, da própria finitude da razão humana.

Ainda a propósito deste esclarecimento acerca da natureza da vontade humana, convém estarmos atentos à restrição do poder das inclinações operada por Kant no contexto da distinção que estabelece entre o arbítrio animal e o arbítrio humano: o arbítrio humano, diferentemente do animal, é afectado por inclinações mas não pode ser determinado por elas67. Isto significa que, no homem, num ser

racional finito, nunca há uma adesão imediata ao apelo das inclinações, atitude essa que é própria das criaturas irracionais que apenas sentem impulsos sensíveis: a resposta humana que é dada ao apelo das inclinações, seja essa resposta uma res- posta de resistência ou de acolhimento, é sempre uma reacção protagonizada pela razão.

Em suma: dizer da vontade (humana) que é razão prática significa reconhe- cer a razão (humana) como uma razão cindida entre o que de mais puro (o que de mais racional) há em si e as contingências impostas pela sua finitude enquanto razão dos homens. E, sendo assim, embora existam algumas passagens na obra kantiana que parecem insinuar uma concepção de vontade segundo a qual esta é determinada, do mesmo modo, quer pela razão quer pela inclinação, na verdade, uma análise mais cuidada deste tema permite-nos concluir que, afinal, o que está em jogo é a ideia de uma vontade que é ela mesma razão: uma razão que, não raras vezes, quando ludibriada pelo poder das inclinações, resolve sair de si mesma para se entregar ao encanto que a satisfação daquelas parece prometer. Por conseguinte, dizer da vontade que é razão prática significa reconhecer a inevitabilidade da pre- sença ou do exercício da razão no homem. Embora, no homem, a razão seja afec-

65 Sublinhamos este último aspecto para afastar qualquer hipótese interpretativa que confunda razão prá- tica com razão prática pura. Com efeito, uma coisa é dizer que a vontade é razão prática porque ela é o poder de agir mediante a representação de leis; outra coisa seria dizer que a vontade é razão prática como se a vontade fosse apenas a razão moral em exercício, isto é, como se a vontade fosse sempre a objectivação da razão moral e nunca pudesse ser a objectivação de uma razão empírica, isto é, de uma razão que pondera muitas vezes a favor dos nossos apetites e inclinações.

66 FMC, Ak IV, 413 (51): “[…] ist der Wille nicht an sich völlig der Vernunft gemäss […]”. 67 Cf. MCDD, Ak VI, 213 (18).

tada nas suas escolhas por inclinações, a razão nunca se demite de escolher e é precisamente no interior dessas escolhas que a razão se impõe ou sucumbe ao poder dessa afecção. Assim, e se quisermos ser mais rigorosos, deveremos dizer que, em Kant, a vontade não é tanto o lugar de uma disjunção exclusiva entre as vitórias da razão e as vitórias da inclinação, mas é fundamentalmente o lugar de um conflito travado pela razão consigo mesma, uma razão que é ela própria empirica- mente determinável68.

Feitas estas considerações acerca do conceito de vontade e verificando, simultaneamente, que Kant não nos oferece nunca elementos explícitos para proce- der a uma distinção de fundo entre faculdade de desejar e vontade (dizendo apenas desta última que representa um dos pontos de vista, entre outros, segundo os quais aquela primeira pode ser considerada), é possível, todavia, surpreender um ele- mento diferenciador capaz de justificar, se não uma distinção de fundo, pelo menos a diferença entre tais poderes: se o conceito de faculdade de desejar se centra fun- damentalmente na ideia de uma conduta orientada pela representação de objectos, o conceito de vontade centra-se mais na ideia de um comportamento regulado pela representação de leis, ainda que essas leis possam enunciar acções requeridas para a obtenção daquilo que é objecto de apetites, quer dizer, ainda que essas leis este- jam ao serviço de inclinações.

Encontramo-nos agora no momento adequado para introduzir a noção de interesse (Interesse) tal como ela nos surge no âmbito da filosofia moral kantiana, pois ficou estabelecido que a vontade é razão prática e Kant, entre outras defini- ções69, diz do interesse que é precisamente “aquilo por que a razão se torna prá-

tica”70. Mas façamos, antes disso, uma pequena observação acerca do termo “inte-

resse” na sua acepção mais geral.

Falar de “interesse” ou de “interesse da razão” significa exactamente o mesmo, já que a temática do interesse surge, na filosofia kantiana, indissociavel- mente ligada à da razão. A expressão “interesse da razão” não tem, todavia, um sentido único: com ela Kant pode estar a referir-se ou à razão como supremo inte- resse ou àquilo que interessa à razão71 e, deste último ponto de vista, ou seja, ao

considerar os interesses da razão, o filósofo distingue o interesse da razão no seu uso especulativo do interesse da razão no seu uso prático72. Embora Kant faça uma

68 Esta leitura da vontade kantiana, não como uma vontade cindida entre a razão e as inclinações, mas como uma vontade que é a própria razão cindida entre si mesma e as inclinações, será ainda mais sustentada no tópico do interesse que a seguir estudaremos.

69 Veja-se, por exemplo, FMC, Ak IV, 413n (52n5); CRPr, Ak V, 79 (95).

70 FMC, Ak IV, 459n (96n19): “Interesse ist das, wodurch Vernunft praktisch, d. i. eine den Willen bestimmende Ursache, wird.”

71 Cf. Carmo Ferreira (1995) 299.

72 Note-se, a este propósito, que a discussão kantiana acerca do primado da razão pura prática sobre a razão pura especulativa é perfeitamente redutível a uma discussão acerca dos dois diferentes interesses da razão já

tal distinção, acabará por dizer que “todo o interesse é finalmente prático e mesmo o da razão especulativa só é condicionado e completo no uso prático”73, pois o pró-

prio “interesse lógico da razão (para fomentar os seus conhecimentos) nunca é imediato, mas pressupõe sempre propósitos do seu uso”74. É precisamente no con-

texto da afirmação de uma essência prática do interesse em geral para que apontam estas passagens, que devemos compreender as definições do conceito de interesse facultadas no âmbito do pensamento moral de Kant.

Com vista a esclarecer o sentido da afirmação de acordo com a qual o inte- resse é “aquilo por que a razão se torna prática”, o nosso autor redefine o conceito de interesse e identifica (agora) razão prática com uma razão que é causa determi- nante da vontade, pelo que dizer do interesse que é aquilo por que a razão se torna prática ou por que a razão se torna causa determinante da vontade é uma e a mesma coisa. Dizer do interesse que é aquilo por que a razão se torna causa determinante da vontade significa reconhecer que é só tomando interesse por algo, ou só porque tem interesse nalguma coisa, que a razão determina a vontade a agir e, por conse- guinte, significa reconhecer numa razão desinteressada a sua própria ineficácia sobre a vontade.

Mas antes de irmos mais longe na avaliação das consequências mais ime- diatas da definição de interesse acima equacionada, compete-nos verificar se a nova formulação de praticidade da razão que ela transporta consigo (a razão prática como razão que é causa determinante da vontade) vem colidir com aquela que anteriormente foi enunciada a propósito da concepção de vontade, a saber, que a vontade é razão prática no sentido em que constitui o poder de agir mediante a representação de princípios racionais.

Embora possamos estar perante algumas incoerências terminológicas, não estamos, todavia, perante o estabelecimento ou a admissão de enunciados incom- patíveis.

que a afirmação desse primado mais não é do que o reconhecimento da supremacia de um dos interesses (o prá- tico) em relação ao outro (o especulativo) (cf. CRPr, Ak V, 119 [138]). Segundo a leitura de Beck (1960) 249n, o termo “interesse”, considerado nesta sua relação com os diferentes usos da razão, pode designar o fim do uso de uma faculdade ou o princípio que contém a condição sob a qual unicamente se fomenta o exercício de cada facul- dade da mente (cf. CRPr, Ak V, 119 [138]). Assim, o interesse do uso especulativo da razão consiste, respectiva- mente, “no conhecimento do objecto até aos mais elevados princípios a priori” (“in der Erkenntniss des Objects bis zu den höchsten Principien a priori”) (CRPr, Ak V, 120 [139, trad. corrigida]) e na limitação da desmesura especulativa (cf. CRPr, Ak V, 121 [139]). O interesse do uso prático da razão (e aqui Kant parece utilizar o termo “interesse” no primeiro sentido a que Beck faz referência), consiste “na determinação da vontade em relação ao fim último e completo” (“in der Bestimmung des Willens, in Ansehung des letzten und vollständigen Zwecks”) (CRPr, Ak V, 120 [139]).

73 CRPr, Ak V, 121 (140): “[…] alles Interesse zuletzt praktisch ist, und selbst das der speculativen Vernunft nur bedingt und im praktischen Gebrauche allein vollständig ist.”

74 FMC, Ak IV, 459n (96n19): “Das logische Interesse der Vernunft (ihre Einsichten zu beförden) ist nie- mals unmittelbar, sondern setzt Absichten ihres Gebrauchs voraus.”

Podemos estar perante algumas incoerências terminológicas, já que a propo- sição segundo a qual a vontade é o poder de agir mediante a representação de prin- cípios racionais identifica a vontade com um poder de agir exclusivamente racio- nal, enquanto que a proposição segundo a qual a razão é causa determinante da vontade faz da vontade algo que é diferente da razão (embora esta mantenha com aquela uma relação de determinação) sugerindo por aí a possibilidade de a vontade ser um poder de agir não exclusivamente racional. Mas não estamos, efectiva- mente, perante a aceitação de afirmações incompatíveis se compreendermos esta última como uma afirmação decorrente da análise dos conteúdos da primeira, quer dizer, se compreendermos que a razão é causa determinante da vontade (enten- dendo aqui o conceito de vontade num sentido mais vago, isto é, enquanto poder de agir), justamente na exacta medida em que esta se define como sendo o poder de agir regulado pela razão. Mas aceitar que a razão é causa determinante da vontade na exacta medida em que a vontade é um poder de agir invariavelmente racional obriga à prova da tese segundo a qual a razão é sempre causa determinante da vontade, pois, se assim não fosse, poder-se-ia admitir a possibilidade de a vontade ser por vezes determinada por outra coisa que não a razão e, por conseguinte, poder-se-ia admitir a possibilidade de a vontade não ser um poder de agir regulado pela razão75, facto que tornaria incompatíveis as duas afirmações anteriormente

enunciadas (“a vontade é o poder de agir mediante a representação de princípios racionais” e “a razão é causa determinante da vontade”). A argumentação que sus- tentará a referida prova basear-se-á, por um lado, na recuperação de um dos aspectos que analisámos a propósito da definição do conceito de vontade como razão prática e, por outro lado, no estudo das diferentes naturezas do interesse.

Efectivamente, a análise da definição de vontade como razão prática, anteriormente realizada, permitiu-nos verificar que, num ser racional finito, a razão

não deixa nunca de ser causa determinante da vontade. E porquê? Sempre que um

tal ser desenvolve uma conduta que responde aos seus apetites e às suas inclina- ções, a razão não está omissa, pois são os seus próprios princípios que definem o caminho a percorrer para se alcançar a satisfação de tais apetites e inclinações. Deveremos antes dizer que o que aí está em “prática” é uma razão empírica, quer dizer, uma razão que joga a favor, não daquilo que ela própria reconhece como sendo absolutamente necessário, mas a favor de algo que lhe é estranho e a seduz. Referimo-nos, obviamente, às inclinações.

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 31-42)