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CAPÍTULO 2 – PLURALISMO EPISTÊMICO NA FILOSOFIA DA MENTE:

2.3 É possível uma síntese psicológica ampla? Quais as implicações de uma teoria

Porém, a abordagem epistêmica naturalista que estamos nos fundamentando é uma abordagem válida para este tipo de problema? Sempre que um mesmo fenômeno puder ser relacionado a diferentes funções, podemos fazer uso de uma metodologia equacional para tentar relacionar os diferentes conceitos? É possível identificar os pontos similares em teorias diferentes, se tais teorias apresentarem conexões ontológicas? Nesse sentido a função instrumental da equalização meta-teórica (interepistêmica) estaria restrita aos campos de conhecimento que possam (em termos de análise filosófica) fazer parte funcional de um mesmo fenômeno (uma mesma ontologia).

As implicações de uma meta-teoria acerca da mente como estado de conhecimento, afetam tanto a filosofia da ciência (epistemologia da psicologia) quanto à própria epistemologia (teoria do conhecimento), uma vez que o objeto de estudo (empírico- indutivo) das ciências da mente se mesclaram com os objetos conceituais e formais da teoria do conhecimento (questões como a natureza do mental; o conhecimento e experiência; a possibilidade do conhecimento e os limites do conhecimento possível; o problema da

consciência, o sujeito epistêmico, entre outros, ilustram problemas simultaneamente psicológicos e epistêmicos). A interdisciplinaridade teórica parece exigir mais do que integração entre teorias cientificas da mente. Parece envolver também uma discussão sobre a teoria do conhecimento adequada para tal finalidade.

O problema indicado pela questão apresentada do final do capítulo I (como estabelecer critérios para uma discussão interteórica?) é crucial: não podemos buscar parâmetros epistêmicos para uma discussão interepistemológica nos próprios critérios epistêmicos. Se agirmos dessa forma, nunca teremos um critério isento para se sobrepor as demais teorias, porque esse critério surge como condição de similaridade com muitos outros critérios. Uma epistemologia não pode servir de referência a outra. Mas isso não quer dizer que diferentes teorias não possam se relacionar conceitualmente, e ao que parece, tal diálogo só parece possível se nos afastarmos de uma análise epistêmica clássica (conceitualmente fechada à priori, ou em termos alegóricos “modularmente fechada”) e nos aproximarmos de uma análise ontológica do mental, aceitando que diferentes teorias possam falar de modo distinto sobre eventos correlacionados ontologicamente.

Uma das implicações desta questão é se um conhecimento empírico experimental (psicologia cognitiva) e empírico teórico (psicologia evolutiva) podem sustentar uma teoria da mente e da consciência, ampla o suficiente para alimentar uma síntese ou integração interdisciplinar entre as ciências da mente (síntese psicológica), e uma teoria do conhecimento (síntese epistêmica)? Uma teoria do conhecimento que inclua sua própria gênese teria necessariamente que ter bases pluralistas (pois muitas teorias genealógicas da mente se fazem ouvir, e não temos critérios para desacreditar à priori a maioria delas).

Sem dúvida, esta questão tem implicações em uma epistemologia (os termos legítimos do conhecimento) bem como em uma ontologia (demarcação da natureza do fenômeno) sobre o mental, pois precisamos delimitar o que são “diferentes aspectos de um mesmo fenômeno” e como podem se tornar conhecimento sintético. No atual panorama científico, os ditos fenômenos psicológicos são investigados por um grupo diversificado de disciplinas teórico-metodológicas distintas, que a princípio visam estudar o mental (cada uma delas com definições específicas do que venha a ser mental). Podemos de alguma forma equalizar essas diferentes teorias de modo que possam ser compreendidas a partir de um quadro sintético mais amplo? O inconsciente freudiano e o inconsciente neuro cognitivo podem ser equalizados? Discriminação de estímulos e os mecanismos mentais de percepção e

memória podem ser equalizados? O construtivismo Piagetiano e o interacionismo de Vygotysky podem estar relacionados teoricamente? Psicologias humanistas e psicologias naturalistas podem formar algum tipo de síntese teórica? Estas questões conceituais são fundamentais em psicologia e tem implicações filosóficas profundas.

Tal posicionamento integralista implica, sem dúvida, desafios para responder também a muitas questões problemáticas da filosofia da mente moderna, como a questão dos qualias, a questão das descrições incompatíveis de 3ª e 1ª pessoa, a questão da explicação neural do significado mental, entre outras (e sem mencionar em maiores detalhes os problemas de integração conceitual entre as diferentes abordagens psicológicas citadas acima). Particularmente não acho que as ciências da mente já tenham todas as respostas para estas questões filosóficas (se é que alguma resposta definitiva absolutamente irrefutável seja possível), mas seus modelos teóricos estão cada vez mais poderosos (em termos preditivos e explicativos causais) acerca da natureza dos processos mentais, de modo a apresentar possíveis soluções para os problemas epistêmicos acima mencionados (incluindo pistas sobre sua categoria ontológica).

E isto nos permite levantar outros questionamentos epistemológicos ao nos aproximarmos de afirmações ontológicas sobre os estados mentais que reflitam uma natureza pluralista em seus termos descritivos globais. Talvez não seja apenas por acaso (ou por equivoco lingüístico) que a psicologia esteja se movendo em um mar de confusão conceitual (como disse Wittgenstein), mas quem sabe o fenômeno psicológico não tenha realmente um padrão funcional que só pode ser entendido por nós através de uma abordagem multidisciplinar? Um fenômeno complexo que permite vários tipos de explicações plausíveis? Isto sugere uma ontologia relacional e uma metafísica evolutiva para justificar o problema do significado, que até agora se mostrou incapaz de ser solucionado por termos epistêmicos puramente lingüísticos, pois “a semântica não se reduz à sintaxe”, e o significado remete sempre a experiência (demarcação) e a re-significação desta experiência (descrição). É justamente nessa questão de gênese semântica que uma ontologia (metafísica) evolutiva se torna útil.

A proposta metodológica da filosofia da mente em utilizar análise conceitual e resultados experimentais sobre o mental já é em si mesma, uma atitude epistemológica ousada e também interdisciplinar. Resultados empíricos (indutivos) podem demarcar critérios dedutivos para suas próprias teorias científicas? Provavelmente não, mas podem orientar

falseabilidade sobre conceitos, que por sua vez tem valor epistêmico. Mas tal demarcação conceitual pode ter implicações epistêmicas legítimas, ou seja, critérios originalmente indutivos podem ter influência sobre as teorias do conhecimento? Se tais argumentos puderem obedecer a um critério formal e probabilístico, porque não?

Uma versão interessante desta questão foi originalmente pontuada pelo filósofo Ned Block (1995) quando comentou as implicações conceituais e epistemológicas de certos experimentos (como o experimento neurocognitivo conhecido como “visão cega”). Trataremos deste experimento crítico em termos conceituais nas próximas sessões, mas por ora podemos dizer que trata-se de uma investigação neurocognitiva que relaciona lesões nas áreas visuais primárias do cérebro de indivíduos com incapacidade de experimentar qualidades visuais subjetivas referentes ao respectivo campo visual contra lateral, mas que por outro lado, não tiveram problemas em responder assertivamente a testes motores e conceituais referentes ao conteúdo do respectivo campo visual (cego em função da lesão em V1). Como eles puderam acertar o que não tinham consciência? Isto sugere uma diferença fundamental entre consciência e percepção, tanto em termos epistêmicos como ontológicos.

Alguns resultados empíricos, como o experimento acima citado, sobre a consciência (e sua natureza íntima) têm valor de legítimos questionamentos paradigmáticos (e, portanto epistemológicos com implicações ontológicas sobre os termos investigados). O que nos leva a formalizar a seguinte questão: uma nova abordagem epistemológica, um naturalismo pluralista, que surge a partir da filosofia da ciência cognitiva e evolutiva, pode ser justificável em termos de uma teoria do conhecimento legítima? Uma teoria cognitiva da mente pode ser também uma teoria do conhecimento? Vamos resumir essa discussão em algumas perguntas:

1) Um naturalismo epistêmico (Searle, 1997; Thagard, 1992; Moser, Mulder e Trout, 2004) pode ser uma solução parcial para alguns problemas da filosofia da mente, ao permitir uma equalização realisticamente plausível entre diversas teorias do mental (teorias psicológicas e epistêmicas)? Ou seja, o naturalismo precisa caminhar para o reducionismo? Ou o pluralismo oferece possibilidades não reducionistas ao naturalismo?

2) O materialismo não reducionista proposto por um enfoque naturalista e funcionalista do mental, e o dualismo de propriedades inerentes de um realismo subjetivo fenomenológico, apresentam algumas características epistêmicas e ontológicas em comum? (Ou são essencialmente e completamente contraditórias?). Velmans (2000) e Chalmers (1996) com a teoria do fenômeno único com duplo aspecto, de forte inspiração em Spinoza, podem servir de exemplo para uma postura ontológica com respaldo epistêmico para esta questão? Um questionamento ontológico pluralista (necessariamente relacional) pode auxiliar os problemas apresentados por uma filosofia da mente constantemente confrontada com os paradoxos dos resultados neurocognitivos e fenomenológico-filosóficos?

3) Assim sendo, uma ciência da mente pode estabelecer critérios para a própria ciência da mente? A circularidade epistêmica pode ser evitada no caso das ciências cognitivas? Como? Ao tomar conhecimento como objeto de estudo psicológico, as ciências da mente não estão de certa forma legitimadas a investigar tal fenômeno (o conhecimento como estado mental: qual a relação deste estado com o conteúdo mental)?

4) As ciências cognitivas podem estabelecer critérios válidos sobre as condições necessárias e suficientes para termos estados conscientes legítimos? Tais critérios devem ser ignorados em uma investigação epistemológica?

5) Ou seja: cérebro e computação (e sua ontologia evolutiva e informacional) são critérios válidos em uma teoria do conhecimento? Sua gênese evolutiva é uma metafísica?

A questão um (não reducionismo) e a questão dois (o duplo aspecto) estão relacionadas e a solução mais viável para tais problemas parece vir da proposta de analise de experimentos críticos acerca desse fenômeno. As questões três e quatro se deparam com o argumento cético de circularidade explicativa, onde não há avanço conceitual legítimo, mas apenas troca ou atualização de termos distintos para fenômenos enigmáticos. Mas tais enigmas são também relacionados à sua descrição. Para podermos escapar da circularidade conceitual temos de relacionar todos os conceitos envolvidos na definição de um fenômeno e relacioná-los a termos mais amplos (com maior referencia significativa, sem retirar os sentidos menores das referências constituintes básicas), quanto uma relação ontológica puder

ser racionalizada entre seus termos. Este é justamente o método de equalização conceitual que estamos testando nesta tese. A questão cinco toca no ponto central de nosso questionamento epistêmico: conhecimentos de caráter ontológicos relativos ao mental podem abranger relações de longa temporalidade genealógica, como os relacionados à evolução? Isto não seria uma forma de metafísica? E se for, seria uma metafísica plausível?

Vamos agora apresentar de uma defesa prévia dos critérios necessários e talvez suficientes para estabelecer estados mentais e estados de conhecimento (uma discussão mais detalhada será apresentada a seguir, na Parte II desta tese). Afinal, quais seriam as condições necessárias e também suficientes para garantir um legitimo estado psicológico de conhecimento? Resumidamente, os fundamentos do conhecimento e da experiência psicológica seriam relativos a quatro passos epistêmicos. São quatro níveis de descrição do mental: as três primeiras condições são análises de diferentes aspectos ontológicos (físico, biológico e psicológico) para a informação distribuída em um longo tempo evolutivo e a quarta condição corresponde a uma explicação metafísica destas diferenças ontológicas (evolução e informação). As quatro condições necessárias para o mental são:

1) Um mundo com propriedades cognoscíveis; uma ontologia cosmológica (físico- químico) para a informação. Corresponde ao potencial informativo na gênese do universo (ponto zero de entropia indeterminado na incerteza quântica, mas reduzido pelo emaranhamento inerente ao aumento de escala da matéria e avaliado em termos termodinâmicos).

2) Um DNA ou um cérebro com propriedades computacionais; corresponde a uma ontologia biológica (genética e ecológica para a informação). Uma Auto-organização anti entrópica de 1ª ordem (capaz de reduzir sua entropia fundamental). A vida como um sistema informativo capaz de auto-organização através de sua replicação. A vida como estrutura para novas informações através da capacidade de processamento e ação inteligente (funcionalmente adaptativa).

3) Uma hierarquia de sistemas funcionais inerentes ao nível mental: uma ontologia representacional ou intencional em níveis construtivos (é uma ontologia essencialmente relacional3 que envolve a natureza do conhecimento em si e o processamento da informação). Corresponde a uma auto-organização anti-entrópica de 2ª ordem. A informação como uma propriedade representativa ou intencional do mundo, que se torna conhecimento através de seu processamento no cérebro em relação com o mundo. A mente como função de novas estruturas informativas com qualidades de experiência subjetiva. Seus mecanismos básicos (capazes de transformar informação potencial em conhecimento ativo) seriam4:

a) Sistemas perceptivos e motores. b) Sistemas de memórias implícitas. c) Sistemas de memória operacional. d) Sistema de memórias explícita. e) Sistemas lingüísticos.

f) Sistemas interpretativos.

4) Uma contextualização evolutiva ou desenvolvimental como gênese construcionista para estes sistemas informacionais distintos. “Evolução da informação” como uma metafísica válida para que diversos critérios ontológicos posam ser integrados. Evolução como história e explicação causal ampla capaz de integrar três ontologias distintas da informação:

a) físicos (ponto zero): as limitações da entropia termodinâmica demarcam o potencial informativo;

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No nível anterior (fatores ecológicos e genéticos) e mesmo no nível cosmológico (fatores puramente físico- químicos), existem fenômenos com propriedades informativas (por exemplo, o fenótipo de um genoma como inteligibilidade biológica; ou a forma côncava de uma montanha com marcas de escorrimento de lava seguido de reflorestamento como uma informação potencial do mundo físico). Mas somente no nível mental as representações (conhecimento) vão ganhar ontologia relacional explicita tornando-se verdadeiro conhecimento em todos os sentidos (e não apenas fatores informativos).

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Os manuais de psicologia cognitiva não colocam os sistemas de memórias organizados desta forma. Tal organização sistemática deriva de uma orientação evolutiva e desenvolvimental desses sistemas em uma ordem hierárquica de mecanismos que se sobrepõem ao longo da sua gênese.

b) biológicos ou auto-organizativo em 1º nível (bioquímicos, moleculares, celulares, comportamentais e cerebrais) a informação se torna auto-replicável em termos moleculares e molares;

c) cognitivos, como intencionais (experiência privada) com expressões culturais (contextualização social histórica) ou uma auto-organização em 2º nível. A informação se torna auto-replicável por evolução cultural, inclusive em termos intencionais (lamarckista) e não apenas contextuais (darwinista). É a mente humana como a interpretamos, bem como o estado de conhecimento possível ao ser humano.

No inicio desse texto apresentamos algumas implicações epistemológicas de um conhecimento psicológico teria em uma epistemologia formal. Na próxima sessão apresentaremos uma defesa de um possível pluralismo epistêmico capaz de relacionar diferentes visões teóricas sobre o mental. Em todos os casos, tal proposta pluralista se sustenta na concepção de um mesmo fenômeno mental sob diferentes ângulos conceituais e técnicas de investigação. Tal pluralismo (uma alternativa ao modelo determinístico equivocadamente reducionista) só se sustenta em termos de uma análise ontológica que se expressa em vários níveis, e tal posição depende da condição de causalidade mental efetiva (caso contrário, tal nível sem causalidade efetiva não se justifica).

CAPÍTULO 3 – O MUNDO E A MENTE: A QUESTÃO DA DUPLA CAUSALIDADE