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CAPÍTULO 4 – CRÍTICA ÀS TEORIAS QUE NEGAM A INTELIGIBILIDADE DA

4.1 Análise da crítica de Bennett e Hacker

Inicialmente vamos dar atenção especial ao capítulo sobre a falácia mereológica na neurociência, apresentada por Bennett e Hacker. A confusão mereológica citada por esses autores refere-se às confusões lógicas relativas às relações das partes com o todo, sendo um problema similar ao do “homúnculo” (resultante de uma metafísica cartesiana historicamente construída). Nas três primeiras páginas desse texto (p. 83-85), Bennett e Hacker apresentam uma pesada crítica aos principais teóricos das ciências neuro-cognitivas.

Teóricos importantes como Crick (e a noção do papel causal do cérebro, através da edição de interpretações), Edelman (e o conceito de que as atividades recursivas de estruturas cerebrais formam regras ativadas na memória), Blakemore (e o argumento de que neurônios têm inteligência e conhecimento), Young (o cérebro cria hipóteses perceptivas), Damásio (sobre os limites da decisão racional), Libet (acerca da ação pré-perceptiva), Frisby (mecanismos cognitivos de descrição simbólica), Gregory (função ativa dos mecanismos perceptivos), Marr (processamento visual como base das representações) e Johnson-Laird (o cérebro tem acesso parcial a um modelo de suas próprias capacidades: os algoritmos

paralelos), são apresentados como autores (e teorias) completamente equivocados que nem sequer tem culpa se seus erros conceituais, sendo vítimas de uma metafísica deturpada.

Nas páginas seguintes (p., 85-89), Bennett e Hacker apresentam cinco argumentos para sustentar sua concepção:

1) Questionamento lógico da inteligibilidade da imputação de atributos psicológicos ao cérebro.

2) Que a imputação inteligível dos atributos psicológicos ao cérebro é uma questão filosófica e, por conseguinte conceitual, e não científica.

3) A incorreta imputação de atributos psicológicos ao cérebro é uma forma degenerada de cartesianismo.

4) A imputação de atributos psicológicos ao cérebro não tem sentido.

5) A imputação de atributos psicológicos ao cérebro pelos neurocientistas pode ser qualificada como “a falácia mereológica” da neurociência.

Fica obviamente claro o viés epistemológico apresentado neste texto: uma epistemologia comportamentalista fundamentada em um formalismo analítico da linguagem, (principalmente Wittgenstein). O problema analítico aqui é que, tratando-se de teorias lingüísticas do significado, nenhuma teoria puramente formal deu conta de explicar (nos termos de Russell, Chomsky, Fodor e Searle) como a sintaxe pode produzir à semântica. O próprio Wittgenstein abandonou suas tentativas de reducionismo lógico fortemente formalista (o chamado 1º Wittgenstein) e adotou uma postura mais compatível com uma epistemologia naturalista ao justificar o surgimento do significado através dos “jogos lingüísticos” (o 2º Wittgenstein).

Ao que parece toda teria formal do significado esbarra nesse limite conceitual acerca da gênese do significado, cuja possibilidade aponta em duas direções: uma vinculação externalista (que é a concepção defendida pela psicolingüística de Wittgenstein) ou uma auto- organização internalista (que encontramos na psicolingüística de Chomsky). Não há porque adotar, como fizeram Bennett e Hacker, a posição externalista, sem nenhum questionamento mais relevante. Vamos analisar os cinco argumentos apresentados por esses autores, para invalidar a atribuição de propriedades psicológicas ao cérebro.

1) Para negar a validação de atributos psicológicos ao cérebro (um dos fundamentos teóricos da ciência neurocognitiva atual), o primeiro argumento cético questiona “o que é ter uma experiência para um cérebro”. Sua lógica é a seguinte: não faz nenhum sentido atribuir propriedades psicológicas ao cérebro (uma parte do indivíduo) uma vez que a experiência é a priori uma descrição da totalidade desse indivíduo. Ou seja, quem tem experiência é a pessoa e não o cérebro da pessoa. Eles apresentam os seguintes questionamentos psicolingüísticos:

“Será uma nova descoberta saber que o cérebro também se envolve nessas atividades? Ou será uma inovação lingüística, introduzida pelos neurocientistas, psicólogos e cientistas cognitivos? Ou não passará tudo de uma infeliz confusão conceitual? Poderá acontecer que simplesmente não haja essa coisa como o pensar ou o conhecer, o ver, o ouvir, o acreditar ou o conjecturar, o possuir ou usar informações, o construir hipóteses do cérebro, ou seja, que todas essas formas de palavras não tenham qualquer sentido?” (P. 86)

a) Eles estão sugerindo simplesmente negligenciar todas as “descobertas” da neurociência cognitiva? Ou seja, não há nada de realmente revolucionário (métodos e conceitos) na abordagem neuro cognitiva, que não seja mais facilmente explicada pela psicolingüística? O fato epistêmico de que, como bem salientou Putnam (no artigo que vamos analisar a seguir), nenhuma teoria formal conseguiu solucionar, é conhecido como o problema do significado. O externalismo é uma solução lógica viável, mas não é a única, nem é necessariamente excludente. O internalismo de Chomsky também deve ser considerado.

b) Não há semântica possível para os termos mentais como “pensar” e “conhecer”? Se for assim, porque, como pontuou Pinker (em “O instinto da linguagem”) em todas as línguas conhecidas (existentes ou já extintas) encontramos termos referentes a conceitos “abstratos” e “mentais”? Negar a possibilidade de sentido epistêmico e semântico aos termos mentais é muito mais um dogma do behaviorismo lógico (um antimentalismo precipitado) do que um consenso formal acerca do mental.

2) O segundo argumento coloca que a imputação de atributos psicológicos é uma questão filosófica e conceitual, e não um problema científico e empírico.

“A questão com que nos defrontamos é filosófica. Exige esclarecimentos conceituais e não investigações experimentais. Não se pode investigar experimentalmente se o cérebro pensa, acredita, conjectura, raciocina, forma hipóteses, etc., ou não, até estarmos esclarecidos sobre as significações dessas expressões e sabermos o que esta incluído (se incluir alguma coisa) quando o cérebro faz essas coisas e que gênero de provas sustentariam a imputação desses atributos ao cérebro (não se pode olhar para os pólos da terra até sabermos o que é um pólo (...) De outra forma podemos embarcar numa expedição para o pólo Leste)”. Bennett e Hacker, 2003, p. 86.

E, logo a seguir, os autores citam textualmente Wittgenstein (Investigações filosóficas, 1953, § 281), que estaria aprofundando a questão com o argumento: “Só de um ser

humano e do que se assemelha (se comporta como) a um ser humano vivo se pode dizer: tem sensações, vê, é cego; ouve, é surdo; é consciente ou inconsciente”.

a) A afirmação (de Bennett e Hacker) exige um esclarecimento epistêmico e semântico adicional. Eles afirmam que não está esclarecido o que significam as expressões mentais, e qual sua relação com o cérebro. Ou seja, eles (assim como Churchland, 2004) aceitam a importância do problema cérebro-mente na atualidade, aceitando nossa impossibilidade de respondê-lo agora. Mas isto quer dizer que não podemos investigar experimentalmente o tema proposto? Ora, nós investigamos justamente para conhecer mais e não porque não entendemos o suficiente! E isso vale inclusive para as investigações conceituais básicas.

b) O que esta em jogo realmente aqui são as diferentes visões que uma epistemologia do mental pode adquirir. Podemos ser formalistas (e conseqüentemente céticos), mas vejo no naturalismo epistêmico uma alternativa ao problema do argumento “indutivo X dedutivo”: nem todo resultado experimental pode servir de argumento teórico amplo, pois uma teoria ampla deve ter valor dedutivo, enquanto que as experimentações justificam apenas argumentos indutivos. Mas, alguns experimentos de caráter crítico, que estão relacionados com a validação dos próprios conceitos básicos envolvidos, podem adquirir valor de argumento dedutivo, ao solucionarem (pelo menos parcialmente) os critérios de resistência lógica a falseabilidade conceitual. Tais experimentos críticos estabelecem duas ciosas: um resultado empírico indutivo bem como um critério legítimo de falseabilidade epistêmica

e semântica. Se admitirmos o problema mente-cérebro: (a) só poderemos solucioná-lo se houver avanços conceituais e metodológicos (b), caso contrário nós estamos fadados ao ceticismo.

c) A história recente da psicologia cognitiva e os desenvolvimentos técnicos relacionados às neurociências têm possibilitado muitos experimentos críticos sobre a natureza dos estados mentais que não eram possíveis em eras anteriores. O antimentalismo skinneriano fundamentado no dogma lógico de que não se pode investigar cientificamente a mente, e de que mente não teria materialidade (ver resposta de Dennett, 1978) se mostraram fundamentações equivocadas (mas são exatamente essas fundamentações que são apresentadas por Bennett e Hacker, como alternativas para o problema do significado lingüístico dos termos mentais). Não estou apenas me referindo aos experimentos de imageamento cerebral dos anos 80-90, baseadas em técnicas como PET-Scan ou RMf. Tais técnicas não são experimentações legítimas, pois não se pode estabelecer relação de causalidade entre as observações. (É a atividade lingüística que provoca ativação da área de broca no córtex pré- frontal esquerdo? Ou é a ativação dos neurônios na área de broca que provoca a atividade lingüística?). Mas técnicas novas (como a estimulação magnética transcraniana, a magneto encefalografia, ou o registro de múltiplos neurônios simultaneamente) tem permitido investigações verdadeiramente experimentais da relação cérebro-mente. Tais estudos estão completando pouco mais de uma década de existência, e precisam amadurecer para que se possa estabelecer uma analise crítica de seus resultados e implicações conceituais.

d) O argumento de que um comutador não pode servir de base experimental para testar hipóteses sobre a mente humana; ou de que o neurocientista que está estudando o cérebro na verdade está investigando o que sua teoria permite entender o que o cérebro é; são aplicáveis também à própria análise de Bennett e Hacker. Um comportamentalista (mesmo um lingüista lógico) também não esta investigando o comportamento lingüístico, nem a linguagem em si, mas apenas o que sua teoria permite que ele entenda como sendo isso.

e) Uma vez que o cérebro (parte de um organismo, e não sua totalidade) pode representar uma totalidade (uma das funções do cérebro é integrar as diferentes partes do organismo), ele pode ser sim alvo de atributos psicológicos (desde que formalmente contextualizado). Um “ser humano vivo”, mas sem cérebro pode ter consciência? Animais podem ter consciência apenas se comportarem- se como a um “ser humano vivo”? Neste caso, computadores e robôs poderiam ter consciência se comportarem-se como “um ser humano vivo”?

f) Atribuir pensamento ao cérebro é o mesmo que atribuir um pólo Leste a terra? Não faz sentido esta comparação, pois não há evidências de atividade magnética polarizada no Leste terrestre, mas, no entanto existem evidências críticas em relação ao cérebro (partes e módulos) e seu papel causal naquilo que chamamos de mente ou conhecimento.

3) Sobre o “cartesianismo degenerado da neurociência”, os autores comentam sobre as três gerações de neurocientistas: a primeira geração (Sherrington) e a segunda geração (Eccles e Penfield) assumiam um dualismo neurocientífico, mas com reflexões acerca desta postura epistêmica. Porém a atual e terceira geração esta assumindo implicitamente tal dualismo.

a) Sem dúvida existe muita ingenuidade epistêmica nas práticas argumentativas das ciências do cérebro, mas isto não quer dizer que não possa existir um naturalismo não reducionista, sem ser necessariamente dualista. O pluralismo pode ser uma alternativa ao dualismo em uma epistemologia naturalizada? Não sei responder ainda, pois não sei dizer se me parece mais plausível enxergar um possível monismo em um conjunto pluralizado de teorias do que em uma dicotomia polarizada. Em todos os casos teremos que equalizar os conceitos para estabelecer relação inter teórica (que ainda é questionável).

4) A conclusão do quarto argumento “A imputação de atributos psicológicos ao cérebro

não tem sentido” (Bennett e Hacker, 2003, p. 87) nos parece cada vez mais sem

sentido, assim como a frase seguinte: “O cérebro não é um sujeito logicamente

a) É claro que não estamos defendendo um reducionismo biológico extremado, onde cérebro seria condição necessária e suficiente para produzir estados mentais. (Apresentados no início do texto, nossa tese dos três níveis ontológicos irredutíveis epistemologicamente, mas relacionados em uma ontologia e uma metafísica evolucionista - informacionista). Mas um “ser humano vivo” também não parece ser uma condição necessária e suficiente, a menos que tal termo seja reinterpretado em consonância com as três condições ontológicas do mental: “ser” como condição de uma ontologia física, “vivo” como condição de uma ontologia biológica, e “humana” como condição de uma ontologia psicológica (subjetiva e auto-significativa ou em termos cognitivos: mecânica do subjetivo; e em termos de conteúdo: significado em si e independente do contexto). Mas mesmo assim teremos o mesmo problema: como integralizar esses níveis? Não conheço alternativa teórica séria na atualidade que supere uma metafísica evolutivo-informacional para justificar questões como: qual a origem do “ser humano vivo”! Qual o potencial máximo (justificável logicamente) que podemos extrair do termo “ser humano vivo”? b) “Cérebro”, assim como “mente” ou mesmo “comportamento” ou “linguagem”

ou mesmo a “coisa em si” (propriedades independentes do mundo) podem ser, todas elas, condições necessárias para o significado (servindo de metáforas para os termos psicológicos), mas não são em si mesmas condições suficientes. Porém, vistas em conjunto (e como poderiam ser colocadas em uma ordenação racional, senão numa seqüência temporal) podem refletir aspectos ontológicos da “evolução” do “conhecimento”.

c) Porque predicados psicológicos não podem ser atribuídos a partes de um ser, sendo possível apenas atribuí-los ao ser inteiro? Sem dúvida trata-se antes de tudo, de uma convenção lingüística (digamos que resultantes de “jogos lingüísticos” em um contexto cultural), que pode perfeitamente ser modificada se nossa compreensão do que estamos nos referindo forem ampliadas por novos “jogos lingüísticos”. Porque o critério comportamental (organismo como um todo) é mais objetivo ou mais lógico que o critério cerebral? O cérebro sem dúvida é uma parte do organismo, mas uma parte essencial para a criação de uma representação como “totalidade” através da integração das partes do organismo bem como da integração do organismo com o meio. E a ampliação

de nossa compreensão dos fenômenos estudados pode ser resultado tanto de modificações metodológicas e tecnológicas quando de alterações conceituais e lógicas. Mas os aumentos relevantes de compreensão normalmente relacionam tanto alterações conceituais quanto empíricas.

5) E finalizando essa seqüência de argumentos, sobre a falácia mereológica na neurociência, Bennett e Hacker (2003) acabam fazendo uma petição de princípio para justificar sua escolha epistêmica:

“Note-se que há muitos predicados que se podem aplicar tanto a um todo (particularmente a um ser humano) como às partes, e cuja aplicação a uma pode ser inferida da aplicação á outra18 (...). Não há nada aqui logicamente incorreto. Mas os predicados psicológicos aplicam-se paradigmaticamente ao ser humano (ou animal) como um todo, e não ao corpo ou suas partes”. (p. 89-89).

a) Tal paradigma podia se justificar como hegemônico no inicio do século XX, sob influencia das analises comportamentais e lingüísticas e suas legitimações lógicas sobre o mental e o significado. Mas no inicio do século XXI temos um novo arcabouço teórico e metodológico (também logicamente justificável) para estudar o mental, derivado de análises neurais e cognitivas, e suas respectivas linguagens.

b) Predicados mentais podem tanto ser aplicáveis ao todo um organismo como às partes desse organismo (ou talvez fosse melhor dizer sistema, para não sermos “vitalistas”?). Mas se uma das partes do sistema fizer uma representação, simulação, (ou estabelecer um repertório comportamental adequado e global), tal parte estaria funcionando como uma representação (simulação ou repertório) da totalidade do organismo, sendo, portanto tão adaptável para a sobrevivência do organismo quanto à resposta global e objetiva (comportamento), e portanto passível de evolução.

c) A aplicação paradigmática dos termos mentais ao organismo como um todo, nos parece, portanto uma petição de princípio, que só se justifica em si mesma. E pelos argumentos que temos defendido te agora, tal petição não se justifica.

18

Exemplos: um homem pode estar bronzeado, e apenas seu rosto pode estar bronzeado. Pode-se estar com frio por completo ou então sentir frio apenas nas mãos. Um carro pode ser rápido sem que seu carburador seja rápido.

Assim concluímos essa parte de nossa contra argumentação, contrapondo os argumentos formais lingüísticos wittgensteinianos expressos por Bennet e Hacker (2003). Mas uma análise das argumentações céticas contra uma fundamentação legitimada do mental não estaria completa sem apresentarmos os argumentos de Putnam19 (um dos pais do funcionalismo computacional moderno, mas que se tornou atualmente um dos principais argumentadores céticos contrários ao mentalismo computacional).